I. Certeza
há nada certo senão a morte
e se a morte é a consequência da vida
então, que não viva nem se iluda,
embora sinto que quero viver e me iludir e morrer e renascer, com uma única certeza:
a morte.
olho pros lados e me sinto cercado:
três paredes, um teto, um chão
pouco espaço pra tantos móveis
que nem sei porque existem
se há tempo que não os vejo
e já nem os reconheço mais.
Olho pra frente: a mesma tela
que tenho passado tanto tempo vidrado
e que é indiscritivelmente real, familiar
como um órgão de meu corpo, vital.
Já não lembro como cheguei aqui
como este prato de comida apareceu
em cima de minha escrivaninha preta
com uma camada de pó grossa
que só agora me dá espirros.
levanto da cadeira e as pernas doem
estico os braços, bocejo de sono
olho pela janela e vejo que é lua cheia
"Droga, lá se vai mais um dia!"
Vou até a cozinha, bebo um copo d'água
que dá um alívio na garganta, tão seca
quanto as matas que queimaram e que queimam.
Tiro a camisa e penso em como faz calor ultimamente.
Não há nada mais que prédios, mais à frente da sacada,
cheio de pessoas como eu, de vistas cansadas
que já não tem tempo de pensar e sorrir e amar.
Sento no sofá e tiro o celular do bolso
encaro fotos perfeitas, de gente pensando e sorrindo e amando.
Pergunto o que há de errado comigo
se fui eu quem falhei, se foi o mundo quem falhou
se os loucos se tornam loucos assim
ou se nascem loucos e não pensam em ficar loucos
num espaço tão pequeno, tão sozinho, tão imundo...
o quanto sou diferente de um louco?
Noto o cálice de loucura que bebo
e da tristeza que me rodeia,
quanto tempo estive assim?
há quanto tempo não durmo?
Há sobriedade em meu corpo
embora minha alma esteja tão bêbada
quanto os pinguços que dormem ao relento.
Acredito que eles são uma espécie mais feliz que eu
que perde tempo aqui, rabiscando e amassando, escrevendo e revisando...
Será que há vinho em casa?
Rodeio como barata tonta em volta da mesa
e escuto o silêncio que meus pensamentos atrapalham.
Tenho a sensação de que tudo é um sonho
e que basta levar um susto pra acordar.
Cogito pular da sacada, mas e se isso não for um sonho?
Morrerei sem cumprir com nada?
(Tive pessoas que me levaram àquela belíssima lua cheia,
deram-me instrução, equipamento,
mas eu não consegui respirar,
encontrar o motivo de ter ido tão longe.
E quando voltei até meu apartamento,
nada restou, nem o foguete, nem a lua
tampouco minha vida do preto no branco.)
O sentimento de impotência no meu peito
se agarra às raízes de uma culpa profunda
que não sei desde quando existe ou se sempre esteve ali.
O problema é que já menti tanto pra mim e pros outros que a realidade se perdeu;
e hoje, quando decidi tirar as máscaras,
não sei onde há máscaras. Prenderam-se à carne.
E se um dia poderei tirá-las, qual será minha surpresa?
Prefiro viver num eterno Carnaval.
Volto à frente da tela e penso em algo pra compartilhar,
dividir o que penso com aqueles que nem conheço
e que provavelmente nunca conhecerei.
Escrevo duas linhas e clico em publicar,
checo a cada segundo qual a repercussão,
se há likes, comentários, reações.
Me decepciono: não há. Ninguém se importa.
Só sou mais um, em um mundo tão cheio e hipócrita.
Questiono se há de ser assim pra sempre
ou se é algo momentâneo. Tanta solidão, tanto descaso...
Vou até a cozinha de novo e procuro o vinho.
Coloco em duas taças, brindo sozinho,
dou um berro de saúde ao vento e tomo um gole,
que desce fervendo. (Não sou acostumado a beber).
Encho mais uma taça e outra e outra,
quando percebo: estou bêbado!
Estampo um sorriso no rosto e danço uma música lenta da TV.
Gargalho aos cantos, observo a lua,
tiro os sapatos e deito no sofá.
Durmo mais uma noite, dessa vez um pouco feliz,
tendo a certeza de que as coisas vão melhorar;
e se não melhorarem, bem, fico com a certeza da morte.
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