29 - Sobre o Remorso
Há alguns anos atrás, depois de certas pequenas, ínfimas, catástrofes existenciais, comecei a levar a sério a possibilidade de que, em um futuro de distância desconhecida, irei morrer sozinho. Sozinho mesmo, totalmente, não só num nível interior, em que uma pessoa se sente só apesar de estar cercada de gente. Não dispenso as outras possibilidades da vida, as que o fato de eu simplesmente existir, de estar aqui, me entrega. Mas, tomando pelo que sou agora e pelo que fui, a possibilidade de encontrar meu fim desta maneira é a mais plausível. É palpável. A crença nela é mais forte.
Ainda não consegui ir muito longe na estrada que me separa desse meu zumbificado ponto de referência, aquilo que fui.
Essa perspectiva, essa crença nessa perspectiva, envolve determinada pessoa. Alguém que talvez não ligue mais para mim e nem se pergunte muito se eu existo – o que é compreensível –, mas que me deixou um sentimento carrasco, que guilhotina partes de mim de vez em quando – e pode ser que eu me importe mais com esse sentimento do que com a própria pessoa.
Não desejo insinuar, de modo algum, que fui uma vítima. Sou responsável por minha cruz e um tanto culpado pela cruz dela, dessa outra pessoa. Tampouco vou dizer que fui um crápula. No máximo direi que sou... um serzinho bastante defeituoso. Realizei certos atos e obtive deles as consequências. Consequências que, por acaso, foram péssimas.
Daí a culpa que levo comigo. Daí o nascer daquele pensamento e da crença na possibilidade de perecer isolado. Minha vó foi-se embora assim. Quem sabe não seja um mal de família? Assim como a boca suja da minha tia e o vício em cigarro do meu avô.
A vida não acabou, no entanto. Ainda sou e pretendo continuar sendo – mesmo que seja impossível seguir sendo o mesmo. Aquele sentimento carrasco, também maciço e mórbido, que insidia sobre mim, perdeu um tanto do peso. Não sumiu, somente emagreceu. Embora pareça estar comendo demais de mim, de novo.
É um estorvo lidar com o remorso. Ainda mais quando ele avança sobre seus limites e passa a se esticar sobre sua vida inteira, como uma gigantesca e suja lona de circo, deixando tudo negro até onde a vista tem alcance. Como disse, não me distanciei muito daquilo que fui, apesar de ter mudado: ainda sou um baita de um serzinho defeituoso. No entanto, por outro ponto de vista, esse contato com o ontem que pode ser lucrativo. Se se tiver cuidado.
Trata-se de tomar consciência.
Trata-se de trazer de volta ao presente aquilo que de pior fora cometido outrora. Resgatar da memória o que de pior você fora, aquilo que te trouxe o peso da culpa, de maneira a poder encarar seu antigo ser com os olhos do seu ser de agora, para buscar não tornar a sê-lo. Seu ser do passado, então, poderá se transformar em um aviso. Como uma placa de trânsito que evita que você cometa uma infração e consequentemente receba uma multa. Se modelará em um conselho duradouro que retornará espontaneamente ou poderá ser trazido de volta por uma boa reflexão, quando chegar a hora de se lembrar de quem você foi e não se repetir.
Isso não significa viver no passado, mas não é óbvio que o passado pode ser ao menos um razoável professor?
Deste modo, creio que a cicatriz do remorso, sem que se precise realmente reabrir a ferida, pode ser um tipo de tratamento – não de prevenção, pois se você tem o remorso, significa que a doença já entrou em você. É um tratamento para impedir que a coisa má que você foi ganhe força e volte a aparecer. Mas, sim, existe um outro remédio que pode apresentar uma cura. Perdoar a si mesmo. No entanto, acho que não possuo a verba necessária para o comprar: na farmácia o seu preço está caríssimo!
Portanto, fico com o tratamento paliativo – ainda que a crença na possibilidade de morrer sozinho persista forte, como a corrente que me liga ao meu passado. Talvez eu consiga mudar as chances e obter outro resultado.
Texto originalmente escrito em 21/01/2019.
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