20 - Destinados a não parar

"De fato, se a natureza tivesse destinado o homem a pensar, ela não lhe daria ouvidos" – estas palavras, retiradas dos escritos de Arthur Schopenhauer, me levaram mais uma vez a refletir um determinado ângulo da condição humana. No livro "A Arte de Escrever", uma compilação de ensaios retirados de uma obra maior, o "Parerga e Paraliponema", o pensador alemão fala sobre a vida intelectual, sobre o pensamento, e, dentre críticas e mais críticas aos filósofos de sua época e aos maus costumes de sua nação, fala também sobre a escrita. No entanto, a frase citada fala mais especificamente, e ao meu ver, sobre o silêncio, e é sobre ele e sua relação com o pensar que pretendo discorrer aqui.

Já escrevi alguns textos – prosas e versos – sobre o silêncio e a quietude, e os tipos de situações de pouca ou nenhuma palavra. Como sou naturalmente, ou melhor, como escolhi intimamente ser dado a isso, não havia para mim como não concordar com o filósofo de aspecto mal-humorado. Esse tema possuiu uma grande importância em minha subjetividade, então, posso prever que sempre retornarei a ele.

Sem dúvidas, é preciso silêncio para ter o pensamento assentado, ainda que seja por alguns instantes, e momentos de quietude são para mim objetivos que com constância se repetem, que exigem uma batalha entre minha razão e minhas necessidades para serem conquistados. Minha cabeça é um tanto confusa. Anda meio inerte e seca esses últimos dias, mas mesmo assim, ainda permanece confusa. Momentos silenciosos, de solidão – ou solitude, para não soar tão opressivo – ajudam a regular isto. As circunstâncias, no entanto, me trazem coisas bem diferentes. Sempre haverá barulhos, ruídos. Sempre haverá os outros, a preocupação com os outros que eu, mesmo que possa fingir não ter ou tente evitar, tenho e agora admito. Preciso pensar nos meus atos, nos benefícios e malefícios que eles vão causar a mim e àqueles no mundo – e ao próprio mundo. Preciso pensar no que tenho para escrever, nos meus projetos, na habilidade de desenho que está enferrujada há anos, e que eu temo que esteja morrendo, que é o mesmo que a morte da parte boa de minha infância. Preciso pensar nos estudos, nos livros, nas cópias de livros da faculdade, e no dinheiro que preciso para ter tudo isso e ainda me alimentar direito. Preciso me preocupar com as ideias e o impacto do que escrevo, preciso pensar se isso me dará algum futuro, preciso pensar sobre a próxima palavra que será escrita, sobre o porquê de eu fumar quatro cigarros seguidos mesmo sabendo que passo mal, sobre o motivo de eu temer falar em público, sabendo que estou fazendo licenciatura e, em breve, falar em público será praticamente inevitável. Preciso pensar em não focar nos barulhos dos carros e das motos assediando meus ouvidos mesmo de madrugada, que é o período de tempo mais silencioso que tenho. Preciso pensar na próxima coisa que devo pensar para não me ver distraído. Preciso pensar em um momento propício para parar, simplesmente parar. Preciso pensar na vida e se tudo que eu preciso e faço e penso tem de fato algum sentido.

Talvez não tenha.

Talvez eu não precise pensar em todas essas coisas que fabricam minhas circunstâncias – essas circunstâncias cheias de estardalhaços e desarranjos, longe de serem somente físicos. Posso escolher renegá-las, e se as renegar me causar incômodo, posso escolher e agir de modo com que eu suporte o incômodo. Mas não é tão fácil, ou é, e ao mesmo tempo não é. É simples na formula, mas bem difícil na aplicação. Uma vez que se entra nesse redemoinho caótico que te afeta por dentro e por fora, sair é terrível – e sair definitivamente me parece ser algo utópico. Você tenta cair fora, e talvez consiga se afastar e sentir uma sensação de paz crescendo, mas as circunstâncias te sugam de volta. Não nego que possa ter existido quem de fato conseguiu sair, no entanto, e se esse alguém existe, adoraria trocar algumas horas de conversa com ele.

Toda essa confusão do lado de fora e do lado de dentro, que ocorrem simultaneamente, é mais notável e intensa nos tempos de agora, mas os homens do passado, alguns ao menos, disto também padeciam. Schopenhauer não teria escrito o que foi exposto acima se não houvesse empecilhos à reflexão e a organização do pensamento e de si mesmo já em pleno século XIX. Aliás, acho que posso afirmar que, mesmo que em diversos níveis para cada indivíduo, essa confusão é elemento inerente à existência.

O momento de introspecção, quase sem sons, é uma necessidade. Não são muitos que reconhecem isto, e os que estão fora da exceção se afundam mais e mais em ruídos, os do mundo externo ou os de seu mundo de dentro, que no fim me parecem gêmeos idênticos em condições perceptivas distintas. A distinção sujeito e objeto é balela – mas isto é assunto para outros escritos. O certo é que, ao menos para mim, a ciência de que tantas pessoas não conseguem enxergar o que precisam, e mesmo as que conseguem podem não conseguir desfrutar o suficiente do que lhes faz bem, me faz indagar se não é muito possível que o filósofo alemão estivesse correto ao escrever, ao final do mesmo parágrafo onde consta a citação do começo, que "o homem é um pobre animal, cujas forças são suficientes apenas para conservar sua existência". Infelizmente, para se conservar a existência é necessário que sacrifiquemos esses momentos ociosos e de intimidade, que com grandes chances vão se tornar cada vez mais raros.




Texto originalmente escrito em 10/08/2018.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top