19 - É torto, é feio, dá um pouco de medo... mas é bonito
Era algum sábado. Eu tinha passado a tarde inteira com a bunda pregada na cadeira, o rosto colado no livro e a mente em um relacionamento abusivo com as formulas da física. Naturalmente, depois de tanto tempo sendo traído e espezinhado, cansei-me! Resolvi me separar da física. Deixei-a de joelhos, se rasgando em lágrimas, e fui procurar quem saberia melhor me valorizar – fui começar uma nova vida. Lembrei-me de uma animação japonesa chamada Angel's Egg (ou, na língua do Naruto, Tenshi no Tamago) que uma semana antes eu encontrara por acaso, mas a qual eu não tinha dado a chance; apenas trocamos um papo por alguns minutos. Então, naquela hora, decretando-me livre, resolvi ir vê-la.
Foi uma surpresa! Foi coisa de uma noite, porém, saí da experiência completamente maravilhado e, ao mesmo tempo, um tanto zonzo. O que eu tinha acabado de assistir?
Descreverei a obra de modo breve: uma mistura de coisas estupendas e estranhas, com uma trilha sonora magnífica e assombrosa, e que passa uma mensagem simples e complicada – sim, os opostos podem se relacionar muito bem e isso não é mentira.
Pelo fato de a animação não ser nem um pouco didática e quase não conter diálogos, para muitas pessoas que, quem sabe, venham a vê-la, eu suponho que ela possa parecer esquisita. Também imagino que fora assim para muitos que já a viram. Mas há um encanto nessa esquisitice, algo belo como uma pintura surrealista, isso eu afirmo com uma emocionada certeza.
O sentido da visão, em geral, sempre busca por algo belo, limpinho e arrumado para poder admirar. Os outros sentidos costumam fazer o mesmo, todos aos seus modos. Mas vou contar algo que não deveria ser – e tomara que para você não seja – novidade: aquilo que vivemos não é feito somente de coisas belas e cômodas. Tudo está longe disto; na verdade, se você olhar direito, vai ver a bizarrice espalhada em todo canto por aí. Ela pode estar num gesto, num aperto de mão maldado, no olhar demasiadamente demorado de alguém à outra pessoa a quem nunca viu, no choro que às vezes vem junto com risos e até gargalhadas, pois está tudo tão ruim que até parece ter graça. E está, sobretudo, naqueles pensamentos ou desejos, conscientes ou inconscientes, desonrosos e repugnantes, aos quais eu creio que todos têm e aos quais sempre arrumamos um jeito de trancar no armário – mas que sempre arranjam um jeito de aparecer nos sonhos. Há muita coisa deformada, desconexa e repelente nos rondando, até mesmo dentro daquela pessoa perfeita, capa de revista, com musculatura tonificada e bumbum sem estrias. Também naquela torta de limão branquinha, bonitinha e apetitosa, que pode muito bem esconder uma barata morta enterrada em seu creme.
Algumas dessas coisas "fora do comum" são belos exemplos de arte. Na minha opinião, que é leiga, mas vem sendo aperfeiçoada, Tenshi no Tamago é isso.
Como eu já disse, o filme passa uma mensagem, e é uma mensagem muito bonita, mas você só vai conseguir entender se conseguir se encantar com sua casca de estranheza. Olha... de fato, você nem precisa entender para se encantar com a atmosfera sobrenatural que o mundo construído por esta obra passa. Estamos falando de arte caramba! Quem precisa tanto da razão assim?
E se a experiência com o esquisito for uma confusão, que seja. A confusão, a (aparente) falta de sentido, a incógnita, são itens passíveis de ser expressivamente bons e belos – aprendi isso com o livro O Processo, do Franz Kafka. As vezes a mensagem tem que vir como uma porrada, tem que bater como um trem louco que quer sair de seus trilhos. O estranhamento e a confusão podem incitar a busca por entendimento, ou por uma resposta, a espécie de dor causada pelo esforço nessa busca conferirá ainda mais valor a recompensa.
Ou não.
O não sempre vai ser uma possibilidade.
Falamos de expressão, de arte, mas arte ainda é vida, e a vida ainda é real, ainda que seja tudo uma grande e misteriosa mentira.
Texto originalmente escrito em 17/12/2017.
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