Capítulo 49
A passos lentos, John se aproxima de mim com cautela, deixando um metro de distância entre nós. A parca escuridão não consegue esconder sua expressão decidida e as alças da mochila em suas costas.
Ah, não!
-O que faz aqui, John? -Questiono.
-Bem, tenho uma história curiosa para lhe contar. -John começa. -Depois de sair da casa de Cecília, dei uma volta pela floresta e, para minha surpresa, vi um certo alguém escondendo uma mala atrás das árvores sorrateiramente e correndo de volta para a mansão. Imaginei que estava se preparando para cumprir sua promessa em relação a Arthur, então decidi executar a minha também. -Ele diz com tranquilidade.
-Sua o quê? -Indago, nervosa que nossa conversa chame atenção e me atrase demais.
-Minha promessa de que vou estar ao seu lado quando matar Arthur. Não tenho dúvidas de que não conseguirei fazê-la mudar de ideia sobre sair dessa aldeia segura de qualquer forma. -John decreta sem piscar.
Seus olhos brilham com uma mistura de apreensão e convicção. A simples ideia de colocar sua vida em risco me apavora, fazendo-me lhe dar as costas e voltar a caminhar.
-Não tenho tempo para isso. -Declaro com indiferença forçada.
-Como planeja passar pela muralha que protege a Pélagus? Como ultrapassará as dezenas de sentinelas que guardam cada centímetro do muro? E, se tiver sorte e conseguir entrar em Aurora Negra, como entrará no castelo sem ser detectada e morta ou pior, capturada? -John pergunta com firmeza.
Estaco no lugar na mesma hora. Meu plano só possui planejamento até a parte em que saio do Bosque dos Álamos. Depois daí, não sei o que acontecerá.
Infelizmente, ele está certo, minha cara. Improvisar não é um talento seu.
-Não pode contar a sorte para matar um rei, Scarlett. -John afirma, aproximando-se de mim. -Conheço cada pedaço daquele reino, cada fraqueza, cada buraco que pode ser usado de entrada e saída. Sei quem pode ser subornado a nos ajudar e quem nos entregaria em busca de reconhecimento da realeza. Deixe-me ajudá-la. Se depois de matar Arthur sua repulsa por mim ainda for maior do que qualquer sentimento existente entre nós, partirei para longe e jamais voltará a me ver. -Ele afirma se colocando a minha frente.
Ah, Alteza, você não sabe de nada.
-Isso é uma promessa? -Inquiro com o máximo de desdém possível.
-Sim. -John responde, trincando o maxilar. -A morte de Arthur também libertará o meu povo. -Ele completa, decidido.
-Então é isso? Quer estar lá para garantir seu precioso trono? Sua amada coroa suja de sangue inocente? -Solto com fúria.
O príncipe demora alguns segundos para assimilar a acusação que faço. Pela primeira vez, vejo seu rosto se transformar em uma máscara de raiva e descontentamento puro.
Um tiro certeiro no alvo errado.
-Errei uma vez com você. Meu erro lançou o inferno sobre nós, entretanto, não foi apenas o seu coração que se quebrou no processo. Pode ter certeza que aprendo muito rápido para cometer a mesma falha duas vezes. -John fala, cada palavra pesando diretamente em meu peito. -Não tenho pretensões de assumir o trono de Pélagus se essa é a sua dúvida. -Ele continua. -É melhor irmos antes que alguém apareça. -O príncipe determina e começa sua trajetória até a floresta sem precisar de uma confirmação da minha parte.
Resignada, sigo-o silenciosamente. Ainda que a perspectiva dessa proximidade entre nós possa ser perigosa, uma parte traidora e cretina de mim está feliz por tê-lo por perto.
Vejamos até onde vai essa felicidade.
Caminhamos em silêncio até que a escuridão na floresta torne impossível distinguir as formas ao nosso redor. Tomamos uma grande distância da aldeia, o suficiente para um descanso de poucas horas.
Pelo caminho, deixei alguns pertences impregnados com meu cheiro e do príncipe em rotas alternativas, iscas para despistar os rastreadores. Na rota em que estamos, misturei um fertilizante potente que roubei do jardim de Adela à terra para amenizar nossos odores.
Estendendo o saco de dormir, sento-me apoiada contra um tronco marrom. John fica com meu saco extra e se acomoda, deixando alguns metros entre nós.
O silêncio nos acompanhou por todo o trajeto. Nenhum de nós possuía algo para dizer além do que já havia sido dito.
-Creio que você queira isso de volta. -John diz e atira um objeto que cai perto de mim.
Ao alcançá-lo, reconheço a espada que Calium me deu, a espada de Siena. Nem ao menos notara a sua falta desde o dia em que a aldeia foi invadida e agora não consigo compreender como conseguir ficar sem ela.
-Você deixou cair quando saiu correndo da clareira. -John explica sem que eu precise pedir.
-Obrigada por guardá-la para mim. -Agradeço com sinceridade.
Ele acena afirmativamente e continua comendo sua maçã. Observo seus movimentos sem saber como lidar nessa situação e com um turbilhão na mente.
-Se você tem alguma pergunta, vá em frente, faça-a. -John afirma, lendo meus pensamentos.
Conexão maldita!
-Por que trouxe Katrina com você? -Pronuncio a frase que me atormenta há algum tempo.
Apesar do escuro, consigo ver seus olhos brilhando e um meio sorriso se estender em seu rosto. Cerro os dentes e tenho vontade de socar sua expressão prepotente.
Elemental idiota!
-Não tive escolha quanto a isso. No dia em que fugimos do castelo, Katrina se escondeu na caleche na qual minha mãe e Suzi estavam. Só descobrimos quando já era tarde demais para voltar. Não podíamos deixá-la no meio do caminho. -John elucida.
Não mesmo?
-Não mesmo. -Ele completa com uma risada e ergue uma das sobrancelhas para mim. Com raiva, lembro-me que não posso ser um livro aberto em sua presença.
Os muros precisam ser fortificados.
Mesmo assim, sinceridade em suas palavras me faz acreditar no que ele diz. Como uma forma de clarear todas as informações entre nós, pego a carta que o rei endereçou a mim e lhe entrego.
-Não estou indo até Pélagus para cometer um assassinato, vou resgatar minha mãe. -Falo, enquanto John lê o texto no papel e parece chocado com seu conteúdo.
-Seu pai capturou a minha mãe. Não sei há quanto tempo isso aconteceu, entretanto, não tenho dúvidas de que sua fixação por mim tem origem nisso. -Continuo.
John se levanta repentinamente, suas mãos tremendo de raiva. Antes que ele queime o papel, retiro-o de suas mãos.
-Aquele maldito, doente, miserável... -John xinga.
-Acalme-se ou queimará a floresta inteira desse jeito. -Intercepto-o em sua caminhada frenética e seguro em sua face.
John foca em meu rosto e parece conseguir respirar novamente, contendo as chamas que tentam se libertar por suas mãos. Meu toque em sua pele parece acordar a nós dois.
-Você não vai precisar matá-lo, Scarlett. Eu mesmo o farei. -John afirma e me puxa pela cintura para si. -Não vou permitir que ele toque em você novamente. -Ele fala com veemência e alterna seu olhar entre meus lábios e meus olhos.
E agora?
Antes de ambos fazermos algo irracional, afasto-me e me deito sobre o saco de dormir, virando minhas costas para John. Não ouso me mexer, porém, continuo sentindo seus olhos em mim.
Os primeiros raios de sol surgem e eu ainda não consegui dormir. Conformada, levanto-me e encaro um novo dia.
O clima dentro do Bosque dos Álamos oscila entre o calor extenuante e o frio extremo. Enquanto cobrimos mais espaço, novos nichos de ambiente surgem, como se a floresta fosse fatiada para se adaptar a cada lugar para uma determinada espécie, moldando-se as suas necessidades.
As cores das plantas são mais numerosas do que a palheta de um arco-íris e todas as frutas parecem suspeitas, mortais ou alucinógenas. Por isso, atemo-nos apenas em nossos mantimentos para as refeições.
Com a passagem dos dias, fico mais tranquila de que ninguém irá nos encontrar. A própria floresta tem se incumbido de desaparecer com nossos vestígios, uma "mãozinha" do destino. Todavia, lupinos são criados para caçar nessas terras, então todas as precauções precisam ser tomadas.
Depois do episódio da nossa última interação, John e eu conversamos apenas o essencial. Como qual direção tomar, o melhoramento do mapa que desenhei sobre o bosque e como racionar os recursos que ainda temos.
Um sinuoso córrego se apresenta para nós quando a noite chega e decidimos acampar às suas margens. A água fresca é uma dádiva para o dia quente que tivemos. Alegremente, lavo meu rosto, pescoço e braços, molhando a roupa no processo. Quando ergo a cabeça, encontro duas fileiras de dentes afiados e escuto um rosnado alto.
Essa não!
-Não se mexa! -John sussurra em algum lugar atrás de mim.
Na minha frente há uma enorme pantera negra, porém, ela possui dois grandes chifres brancos despontando pelas laterais de seus olhos roxos, além de dentes serrilhados como os de um tubarão. Pintas circulares amarelas pontuam seu peito e suas patas, as únicas porções de cores em meio ao preto.
-Ela está com os filhotes na outra margem, sendo assim, não faça movimentos bruscos. -John alerta.
Fácil falar!
A estranha onça emite outro rosnado e escuto patas sobre a água, provavelmente suas crias se aproximando. Quando devolvo seu olhar obstinado, lembro-me inesperadamente de Lykaios, o Espírito Indomável, o espírito da floresta.
Todos aqueles animais fazem parte dessa mesma floresta, estão conectados como uma grande rede de vida. No caminho até aqui, percebi muitos olhos pequeninos e curiosos em mim, acompanhando meus passos, como se algo os atraísse.
Antes que eu perceba, meu corpo vagarosamente muda de forma e Lykaios assume o controle. A onça emite um grunhido e se afasta levemente. Ao fundo, acho que escuto um som exasperado do príncipe.
-Não é uma onça, é uma kaladay, protetora das águas. -Lykaios explica.
-Obrigada, professor. -Gracejo.
Inesperadamente, solto um uivo alto que corta a noite. A kaladay e seus filhotes rugem em resposta. Logo em seguida, eles se curvam diante de mim, seus focinhos cumpridos próximos à corrente de água. Vagalumes de todas as surgem no ambiente, projetando suas luzes piscantes em todo lugar.
Outros animais aparecem, uns semelhantes a corças, porém com apenas uma pata dianteira e duas traseiras, outros maiores do que ursos comuns, completamente cinzas, com os olhos azuis e grandes orelhas pontuando as laterais de suas cabeças. Pássaros com asas gigantes de coloridas a transparentes ocupam os galhos das árvores próximas, veados com grandes galhadas brilhantes e cascos com o mesmo efeito se aproximam com cuidado. Todos imitam a ação de kaladay e me reverenciam.
-Onestruzes, calumbas, palistros e venuris, respectivamente. -Lykaios diz com a voz sábia. -Há muitos outros a nossa volta, mas não se sentem confortáveis com o humano. -Ele prossegue.
-Por que se curvam? -Questiono.
-Porque reconhecem seu sangue e a mim. Somos amigos antigos. -Lykaios graceja.
-O que meu sangue tem haver com isso? -Pergunto sem conseguir deixar de ficar pasma com a beleza daquelas criaturas.
-Você é a herdeira dessa floresta, Scarlett. Não serão apenas os humanos que lhe seguirão nessa batalha. -Lykaios diz, deixando-me ainda mais surpresa.
Lykaios e eu passamos algumas horas perambulando pela floresta e pude conhecer muitas outras espécies, inclusive meus ancestrais lobos, ou laborus como Lykaios me ensinou. Cada animal apresentou uma forma de comunicação peculiar. Alguns se curvavam, outros me cheiraram e houve aqueles que me atacaram em brincadeira, exatamente como amigos fariam. Lykaios, em algum momento de sua vida, havia morado nessa mata e criado uma família. Ele realmente era real, físico e não sei em que ponto deixou de ser.
Quantos anos esses animais têm?
A natureza funciona como um grande paraíso para todos os diferentes tipos de seres. Um harmonioso e antigo berço gerador de todas as formas de vida. Ameaçadas por um único homem egoísta e egocêntrico.
A lista de salvamentos só aumenta, Scar.
Quando retorno para o córrego em que deixei a John, estou na forma humana novamente e completamente vestida. Cortesia de Lykaios que se lembrou de pegar uma muda de roupa para mim.
O príncipe está sentado próximo a água corrente e demora para notar meu regresso. Ao fazê-lo, levanta-se rapidamente e mantém certa distância entre nós com certo receio em sua postura
-Você está bem? -Ele pergunta.
-Estou. -Respondo com um ar perdido. -Isso foi... Diferente. Incrível, porém, completamente diferente. -Confesso com um sorriso bobo.
John perscruta meu rosto em busca de respostas ou de alguma alteração permanente que possa nos colocar em risco. Quando se dá por satisfeito, volta a se sentar e expira profundamente.
-Acho que preciso tirar uma soneca. -Afirmo e organizo meu saco de dormir.
-É claro. -Ele responde simplesmente, sem parecer estar prestando atenção realmente.
-Não! NÃO TOQUE NELA! -Escuto alguém gritar em meio a névoa de sono.
Preciso de alguns segundos para me localizar e compreender onde estou. Concentrando-me, refaço meus passos e um novo grito angustiante de John me desperta completamente.
Que porcaria é essa?
A lua ainda domina o céu com poucas estrelas ao seu redor, dificultando minha busca pelo perigo. Quando meus olhos conseguem se ajustar, encontro o príncipe se debatendo em seu saco de dormir, provavelmente preso em um pesadelo.
Aproximando-me, toco em um dos seus ombros expostos na tentativa de acordá-lo. Seja lá o que for que esteja o atormentando, é forte e faz com que ele revide meu toque, jogando-me para trás.
-Você não vai roubá-la de mim de novo, seu desgraçado. -Ele xinga e se debate um pouco mais, preso com os próprios demônios.
Com um pouco de raiva, ajoelho-me ao seu lado, seguro em seus braços e o chacoalho até que seus olhos se abram. Ao me ver a sua frente, algum sentido de proteção é ativado e ele pula sobre mim, pressionando todo o seu corpo contra o meu e me deitando sobre a grama verde, suas pernas ainda contidas no saco.
Sua respiração ofegante faz minha pele se arrepiar enquanto sua cabeça se acomoda no espaço entre meu pescoço e meu ombro, como se precisasse sentir meu cheiro para se acalmar. Quando ele ergue seu rosto acima do meu, separados somente por alguns centímetros, é a minha vez de resfolegar, principalmente ao sentir o calor do seu peito nu e notar a luxúria refreada no profundo azul do seu olhar.
-Eu estou aqui, estou bem. Nós estamos bem, foi só um sonho. -Certifico com delicadeza.
John não se move nem um milímetro e o tempo parece desacelerar. Sua expressão em parte predadora em parte protetora me deixa moderadamente preocupada. O que se intensifica quando seus olhos focam em meus lábios. Todos os seus medos, dores e assombrações estão estampados em seu semblante, vulnerável e completamente transparente.
Exatamente como sempre deveria ter sido entre nós.
Antes que eu possa expressar qualquer reação, John me beija e o meu mundo se estilhaça em mil pedacinhos. O peso da atmosfera desaparece e me sinto flutuando no instante em que nossas línguas se encontram e entram em uma dança sensual.
Talvez sejam meus próprios medos, dores e assombrações que me levam a retribuir seu toque com a mesma intensidade, ou a saudade ensurdecedora que desperta assim que percebo o quanto me senti vazia sem a sua presença constante. Minhas mãos chegam aos seus cabelos macios e os colocam em uma linda desordem. Uma epifania bem-vinda.
Subitamente, John se afasta, fazendo-me soltar grunhidos de desaprovação. Um sorriso largo e sedutor se desenha em sua face e uma pergunta se projeta entre nós sem precisar ser pronunciada.
-Sim. -Solto em um sussurro rouco.
Sem precisar de mais incentivo, John retorna para minha boca à medida em que suas mãos se espalham por meu corpo, conhecido e desconhecido ao mesmo tempo. Beijos se derramam por minha clavícula, pescoço, bochechas, fazendo-me suspirar incontrolavelmente em êxtase.
Nossas roupas desaparecem em instantes e, seguindo apenas meus instintos, tateio toda a estrutura que compõem o homem a minha frente, sem sentir um pingo de constrangimento. Meus dedos traçam as grossas cicatrizes em suas costas, fazendo com que John enrijeça seu corpo instantaneamente. Dando uma pausa nas carícias, aproximo-me de sua orelha.
-Você é perfeito exatamente como é. -Sussurro com amor.
Com um rugido libertador que se propaga pela floresta silenciosa, John se desvencilha de quaisquer amarras que ainda o detinham. Seguindo seu exemplo, libero minha mente e minha alma de todas as suas travas e me permito amar e ser amada. Perco-me e me encontro em meio a junção de nossos corpos.
Olá, pessoal! Um viva às madrugadas inspiradoras. Kkkkk
Mais um capítulo saindo! O livro está acabando, então preparem-se para o fim!
Gostaram? Logo mais posto mais um.
Um beijão e ótimo domingo.
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