Capítulo 41

-Morgana? O que faz aqui? -Questiono, com certa desconfiança.

-Como eu disse, precisamos conversar. -A mulher responde, laconicamente.

Intrigada, analiso seu rosto que permanece inexpressivo. Morgana carrega muitos mistérios por trás dessa máscara de tranquilidade e não sei se estou disposta a mergulhar tão profundamente em suas histórias.

-Por favor, sente-se. -Digo, indicando uma poltrona e me acomodando em outra na frente de Morgana. -Estou ouvindo. -Afirmo seriamente.

-É muito gratificante saber que você encontrou o caminho de casa, Scarlett. Sua mãe ficaria extremamente satisfeita com o rumo de suas escolhas. -Morgana declara.

-Você conheceu minha mãe? -Questiono afobadamente, interrompendo-a.

-Infelizmente, não. Contudo, sei que ela foi uma grande mulher. Cuidou de seu povo nos momentos mais difíceis. –Ela diz. -Quero lhe agradecer por interceder por minha família hoje, Scarlett. Não sei o que faríamos se não fosse por você. -Morgana fala, parecendo genuinamente sincera e sorrateiramente tentando mudar de assunto.

-Você não precisa me agradecer. Fiz apenas o que julguei ser o correto. -Alego, minha mente trabalhando em formas de retornar o foco para minha mãe.

-Nem todos dirão que sua atitude foi a mais correta, minha cara. No entanto, não vim até aqui para isso. -Morgana anuncia. -Meu sobrinho me contou recentemente que você encontrou meu diário, assim como eu esperava que ocorresse. Lembra-se do seu conteúdo? -Ela inquere, erguendo uma sobrancelha audaciosamente.

A ideia de que John conversou sobre mim com sua tia me choca momentaneamente. Revirando as memórias, tento relembrar o teor do diário de Morgana, porém, como todos os outros objetos que possuía, o livro também foi abandonado no castelo durante a minha fuga.

Lembranças perdidas para sempre.

-Você explicava a real estrutura entre lupinos, fadas, bruxas e elementais. Além de relatar sua busca por respostas e alguns fatos envolvendo ao rei Arthur e a motivação para o seu exílio em Amarante. -Rememoro. -Desde o dia em que me deparei com as suas anotações, questiono-me a razão pela qual você tê-lo deixado para mim. Provavelmente, seu sobrinho deve ter lhe contado que somente eu consegui lê-lo. -Aponto, sem conseguir pronunciar o nome do príncipe.

-Sim, ele me contou. -Ela confirma. -As páginas foram programadas para se revelarem aos seus olhos. Minha justificativa para tanto se apoia em dois pontos: alertar você sobre o caráter de Arthur e verificar se você realmente era a criança da profecia. -Morgana anuncia.

Algo pula em minha mente quando a compreensão das palavras de Morgana me atinge. A lembrança de um dos trechos dos seus registos: uma profecia que proclama o nascimento de uma criança que mudará nosso destino. Uma menina que abrirá mão de suas escolhas para amparar a todos que precisam de sua força. Espero ainda estar viva para conhecê-la.

-Somente quem está destinado poderia vencer o feitiço que estava sobre o diário e desvendar seu significado e, mesmo antes disso, eu já sentia que era você. -Morgana completa.

-De qual profecia você está falando, Morgana? -Inquiro com um turbilhão de sensações se assomando em meu peito.

-Essa profecia data do tempo em que as bruxas ainda faziam parte do Conselho Eterno, antes de nossa expulsão da sociedade. Uma das bruxas mais poderosas da época levou ao Conselho suas visões nas quais um mal terrível estava predestinado a tomar essa terra e devastá-la. -Morgana inicia. -Ninguém lhe deu ouvidos e, pouco a pouco, nosso povo foi descredibilizado e desagregado pelas fadas. Entretanto, antes que tirassem sua vida, essa bruxa invadiu uma das reuniões das fadas e proferiu a seguinte sentença: 

"As trevas dizimaram esse planeta e tomaram seu controle porque o seu povo continua a ser cruel e a roubar a vida daqueles que são mais fracos ou considerados inúteis nas engrenagens dessa sociedade corrupta. Vocês optaram por fechar seus olhos e ouvidos para a verdade, por isso, estão condenados. Todavia, nas próximas gerações, nascerá uma alma pura capaz de restaurar essa nação, cortando pelas raízes os preconceitos mais arraigados em seu cerne. Essa criança carregará em seu sangue o toque de cada espécie existente e, sendo um elo comum, seu sacrifício expurgará a escuridão desse mundo. Essa menina reunirá a coragem escassa nos líderes desse povo e garantirá o futuro que os seus ancestrais destruíram. A liberdade está no sangue, meu próprio sangue, nosso sangue". -Morgana termina, sua voz estranhamente melodiosa.

Um arrepio toma meu corpo quando Morgana profere a última frase. Aquelas palavras estão gravadas profundamente meu ser, como se tivessem sido marcadas com ferro em brasa. Elas também estiveram em um lenço, a única prova do meu passado deixada comigo no dia em que fui abandonada no orfanato em Marina Azul.

O único fragmento da minha mãe.

-Naquela época, as fadas praticamente escravizavam os lupinos e, seguindo o exemplo, os elementais julgaram que também detinham esse direito. Os lobos se revoltaram e forjaram um lar na floresta. Para as bruxas, não restou nenhum lugar para a construção de uma habitação, por isso, os diversos clãs se distribuíram pela mata. -Morgana relata com tristeza.

-O que aconteceu exatamente com essa líder das bruxas? -Pergunto.

-Uma das fadas do Conselho presente naquela convenção a acertou com uma flecha diretamente no coração assim que ela terminou de falar. Nada poderia macular o mundo perfeito do povo do céu ou os seus planos para o futuro. Eles preferiram acusar as bruxas por insanidade. -Ela responde.

Talvez eu também deva ser acusada de portar esse distúrbio!

Ansiosa, não consigo mais ficar parada na mesma posição. A adrenalina galopa em minhas veias, forçando-me a caminhar sem rumo pelo quarto.

-Por que eu? Por que deixar seu diário enfeitiçado para mim? Por que me contar sobre essa mulher e a sua suposta profecia? -Questiono, sem saber se realmente desejo a resposta.

-Você é descente de Runa Hekate, a mais poderosa líder das bruxas que já existiu e que previu a profecia sobre você. -Morgana desvela.

Como é que é?

-O que? -Indago praticamente em um sussurro, pasma demais para conseguir continuar me movendo.

-Runa Hekate se apaixonou por um lupino e, desse amor, foi gerada uma filha, Jasmim Hekate. Uma mulher metade lobo, metade bruxa. Jasmim Hekate é sua... -Morgana diz.

-Avó. -Falamos em uníssono.

O destino e as suas malditas coincidências.

Encarando o céu escuro pela janela, tento controlar a respiração saindo em lufadas por meus lábios. Aparentemente, quanto mais tento me afastar das loucuras desse mundo, embrenho-me mais agudamente em seus segredos.

Inesperadamente, Morgana aparece ao meu lado e segura em minha mão, deixando a palma virada para cima. Um calor confortável surge onde ela toca e o símbolo de uma estrela envolta em um círculo se desenha em minha pele, tracejada por uma linha fina e dourada.

-Essa é a marca que todas as pessoas que possuem o sangue das bruxas carregam em si, revelada apenas pela magia. Em nosso primeiro encontro em Amarante, pude ver que você a continha. Depois que o diário se revelou ao sentir o seu toque, não havia mais dúvidas sobre você ser a escolhida, Scarlett. É sua missão liderar essa guerra. Meu objetivo de vir até aqui, não só ao seu quarto, mas também ao Bosque dos Álamos, é lhe assegurar de que as bruxas lutarão ao seu lado quando o momento chegar. -Morgana declara com veemência.

Meu estômago se revira em meu abdômen. É como se mais um peso fosse depositado em meus ombros. Não me sentia prepara para comandar quem quer que fosse. Aprendi a ser um soldado e é a isso que me resumo.

-E se eu não quiser liderar? -Interpelo, sentindo-me cada vez mais presa em meu próprio corpo.

Agonizando sob minha pele.

Os olhos de Morgana se dilatam levemente, como se ela jamais tivesse considerado aquela possibilidade. A bruxa solta meu pulso e se afasta alguns passos, aparentemente, procurando as respostas das quais necessita em meu rosto.

Se encontrar algo esclarecedor, avise-me!

-É normal sentir medo, Scarlett. Contudo, ele não pode nos dominar ou a vida se sintetiza em arrependimentos e tristezas. Você é originária de uma longa linhagem de guerreiros que deram suas vidas para que chegássemos nesse momento. Não esqueça de que ninguém pode livrá-la de sua sina, criança. -Morgana diz.

Dando-me as costas e um aceno, Morgana me deixa sozinha com a avalanche de sentimentos tentando me sufocar. Recosto minha testa contra o vidro frio na tentativa de impedir que a dor crescente ali se espalhe.

Fadas. Lupinos. Bruxas. Elementais. Mestiços.

Quem eu realmente deveria ser?

O calor do sol me desperta algumas horas depois. Minhas costas rangem pelo tempo em que fiquei sentada na poltrona perto da janela. Estendendo a mão contra um raio luminoso, brinco com a luz entre meus dedos.

Apesar das poucas horas de sono, sinto-me estranhamente alerta. Minha mente não havia descansado, reproduzindo constantemente cada nova informação dada por Morgana. Chegara à conclusão de que ninguém seria capaz de fugir da guerra iminente e, se eu tentasse me esconder no Bosque dos Álamos, mais mestiços morreriam.

Não há um atalho fácil para seguir.

Arthur deixou explícito de qual lado está. Sendo assim, somente a força militar mestiça não seria suficiente para me ajudar a acabar com o Reino Sombrio. Se as bruxas desejam ajudar, que mal pode haver, não é mesmo?

Contanto que as surpresas se findem, está tudo perfeito!

Quando a guerra acabar e o meu povo estiver livre de seus grilhões, fugirei para a floresta e criarei meu próprio paraíso. Sem raças, espécies ou classes sociais. Mentalizando essa perspectiva, posso sobreviver ao que está por vir.

Ou pelo menos tentar.

Uma batida na porta me sobressalta no quarto silencioso. Dando a liberação, Mirena coloca seu rosto para dentro e parece incrédula com a bagunça com a qual se depara. Meus lençóis estão embolados sobre a cama, a penteadeira está caída no chão com o vidro quebrado e minhas roupas ocupam cada canto do cômodo. Realmente, ataques de raiva não são bonitos e o meu, em particular, havia sido feroz.

-Colocarei tudo em ordem assim que possível. -Afirmo com um pouco de vergonha. -Precisa de algo? -Pergunto.

-Cecília está lá embaixo aguardando você para mostrar a aldeia aos visitantes. Pedi que aguardasse lá enquanto eu lhe acordava. Quer algo para comer ou ajuda para se aprontar? -Mirena questiona, ainda parecendo descrente com a desordem a minha volta.

Melhor uma confusão por fora do que por dentro.

-Não, obrigada. Já estou descendo. -Aviso.

Vestindo preto da cabeça aos pés, como um bom soldado, e prendendo meu cabelo em um coque, saio do quarto. Enquanto me desloco pela escada, tento não pensar na composição que engloba os "visitantes" para quem Mirena afirma que serei guia turístico, focando no ruído do meu coturno contra o piso encerado.

Quando alcanço o último degrau, dois corpos se chocam contra mim, quase me derrubando. Os braços de Cecília e Suzi me rodeiam em um abraço sufocante. Suas exclamações de felicidade se misturam, tornando impossível a compreensão.

-Também fico imensamente feliz em revê-las, mas ainda preciso de meus pulmões para poder respirar. -Alego, sorrindo.

Em meio a risos, sou liberta do afeto asfixiante de ambas. Suzi tem lágrimas em seus olhos enquanto afaga minha bochecha.

-É tão bom vê-la, menina. Meu coração ficou apertado com a sua partida. -A doce senhora afirma.

-Senti muito a sua falta, Suzi. -Declaro com sinceridade.

Ela amplia ainda mais seu sorriso e aperta minha mão. Até esse momento, eu não tinha consciência do quanto a ausência de Suzi me abalara. A falta do seu carinho deixou um buraco em meu peito.

-Scarlett, quero lhe agradecer por tudo o que você fez pela minha família e por mim. Jamais poderei lhe recompensar pelo cuidado que concedeu a minha filha no período em que estive distante. -Eleonor fala, surgindo com Morgana ao seu lado.

A presença da rainha me deixa tensa. Suas acusações em relação a mim durante a audiência ainda ressoam em meus ouvidos. Sabiamente, desvio os olhos de Morgana para evitar sua possível inquisição sobre minha decisão em relação à guerra.

Preciso de mais tempo para calibrar meu estoque de coragem.

-Fiz somente o que julguei ser certo. Além disso, Cecília passou a ser como irmã para mim há muito tempo. -Declaro, devolvendo seu olhar, sem desviar nem sequer um centímetro.

Aguardo pelo instante em que ela me repreenderá por não me corrigir a sua pessoa corretamente e com o devido respeito. Entretanto, consigo identificar apenas gratidão em sua expressão.

-Bem, eu irei lhe agradecer pelo resto da minha vida! -Cecília exclama afetadamente e me abraça de novo.

-SUZI! -Alguém grita do topo das escadas.

Em uma corrida vertiginosa, Davi se atira nos braços de Suzi que o apanha e o gira no ar. O menino pula, dança e fala de forma incoerente tamanha a sua felicidade de reencontrar Suzi que, por sua vez, volta a chorar copiosamente.

Antes que eu consiga impedir, Davi rapta Suzi e ambos somem a caminho da cozinha. Ao que tudo indica, ela perderia de bom grado e espontaneamente a expedição pelo Bosque dos Álamos.

Luke, que seguiu os passos de Davi com menos alarde, chega ao nosso pequeno grupo no vestíbulo. Ele deposita um beijo na testa de Cecília e me dá uma piscadela.

-Mais alguém se juntará a nós? -Indago, sentindo um frio no estômago.

-Não, seremos só nós. Aliás, devemos nos apressar porque os doces da barraca da Tâmila acabam em um piscar de olhos! -Cecília anuncia, empurrando-nos para fora.

De uma forma misteriosa e com peculiar facilidade, a princesa passou a socializar com todos na aldeia. Ainda me surpreendo com a sua capacidade me memorizar tantos nomes.

Meu coração desacelera aos poucos com a passagem dos minutos e a consolidação da afirmação de que nenhum outro integrante aparecerá. Cecília, como de costume, preenche o espaço com a sua fala desenfreada. Ela parece conhecer cada porção do acampamento e cada pessoa que cruza nosso caminho.

Passamos pelo centro da aldeia próximo à casa de Magnus, a vila na qual a maior parte da população reside, o alojamento militar, destinado tanto aos soldados quanto àqueles que não possuem uma família ou uma casa ou, ainda, possíveis visitantes de outras matilhas, e, para alegria extrema de Cecília, alcançamos a área de comércio.

Os moradores lupinos não lidam unicamente com dinheiro, em seus negócios é aceito a troca de mercadoria e favores. Por todos os lados, há barracas de comida, vestimentas, ervas e até mesmo um ferreiro.

Não suponha que havia tanta gente nesse acampamento!

Mais do que eu esperava, os cidadãos lidam com simpatia com seus hóspedes indesejados. Confiante de que nenhuma calamidade ocorrerá, afasto-me dos demais, aproximo-me da tenda do ferreiro e observo com interesse as espadas em exposição. Uma em particular chama minha atenção: o pomo escuro se continua em cabo dourado e curto, o guarda-mão ostenta diminutas safiras decorando-o em ambos os lados e a lâmina prateada de tamanho médio cintila com o reflexo do sol.

-Gostou dessa? -Uma voz familiar de dentro da cabana pergunta.

-Calium? -Indago, espantada com sua presença.

O velho sábio traja um macacão surrado e luvas grossas. Seus cabelos cinzas estão firmemente atados e gotas de suor escorrem por sua testa.

-Você trabalha aqui? -Prossigo o interrogatório, sem conseguir me conter.

-Sim, sou o único ferreiro da vila, além do meu filho desajeitado que está tentando aprender o ofício. -Ele conta e, simultaneamente, escutamos o som de objetos se chocando contra o chão. -Menino desajeitado! -O sábio xinga, voltando sua atenção para mim. -Por que a surpresa em relação a minha profissão? -Ele inquere com curiosidade.

-Acreditava que você vivia em um templo, recluso da sociedade, imerso em livros antigos e, sem dúvidas, sem filhos. -Digo, sem acionar meu filtro verbal e enrubescendo instantaneamente.

Felizmente, não se paga imposto para passar por um vexame.

-Você é uma criatura peculiar, Scarlett. -Ele afirma, tentando conter um sorriso. -Essa espada pertenceu a sua mãe, foi um presente meu após o casamento com seu pai. Magnus permitiu que eu a expusesse aqui, como um lembrete da presença de Siena. -Calium revela, indicando a arma que eu admirava segundos antes.

Meus olhos se voltam novamente à bela espada presa por um arame ao tablado de madeira que agora parece ter assumido um significado diferente. A informação de que minha mãe tocou naquele objeto é como um imã para os meus dedos e, com reverência, traço seus contornos. Talvez aguardando para que algo espetacular aconteça.

-É sua, se assim desejar. -Calium decreta.

Mirando seu rosto, percebo que ele está sendo sincero. Minha garganta se fecha com a emoção que luta para chegar à superfície impulsionada por sua gentileza desinteressada e uma sensação de euforia maravilhosa me invade.

Antes que eu consiga agradecer adequadamente, o som de algo se quebrando chega até nós. Blasfemando, Calium me abandona para controlar os danos.

Soltando a espada, seguro-a com cuidado, como se fosse um delicado cristal. Testado seu peso e contornos com suaves movimentos, percebo que ela é perfeita para o tamanho das minhas mãos.

Forjada especial para mim.

-Atrapalho? -Alguém pergunta, desencadeando um arrepio intenso que atravessa meu corpo. 

Olá, pessoal! Olha quem apareceu nesse início de quinta-feira!

Esse capítulo ficou mais longo. Gostaram? 

Um excelente restinho de semana para vocês! Beijão. 

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