Capítulo 37

Fico levemente zonza pelo "vai-e-vem" que minha cabeça faz ao alternar o olhar entre Kayke e John. Ambos se encaram como se medissem suas forças para uma luta iminente.

Talvez eu mesma devesse surrar os dois!

O lupino dá um passo a mais, deixando uma curta distância entre seu corpo e o do príncipe. Imprudentemente, coloco-me entre eles, afastando-os com meus braços.

-Vocês têm noção de que estão em um hospital, não é? -Questiono. -O príncipe de Pélagus está doente, ou seja, você não pode iniciar uma briga com ele. -Indico a Kayke e volto minha atenção a John. -Quanto a você, deveria retornar ao seu leito para não agravar seu estado de saúde. -Digo com firmeza.

Como esperado, eles continuam trocando olhares cortantes. Sinto-me entre duas montanhas prestes a se chocarem. Suas expressões duras me deixam ligeiramente preocupada.

-Quem é você para determinar com quem ela pode ou não falar? -John inqueri, seus olhos ficando um tom mais escuro pela raiva e sua voz, mordaz.

A resposta de Kayke é tão rápida que não consigo acompanhar: ele me empurra para trás, fazendo com que minhas costas se choquem contra a parede, roubando-me o ar momentaneamente. Com o caminho livre, o lupino se aproxima do príncipe. Por alguns segundos, eles apenas se analisam para logo em seguida se resumirem em uma bagunça de socos e chutes.

Era o que me faltava para completar minha lista de "acontecimentos bizarros da minha vida".

Petrificada com a violência desmedida e sem motivo de ambos, só consigo observar como uma completa idiota. Motivados pelo barulho de luta, alguns enfermeiros correm até onde estamos.

Para meu alívio, nenhum deles hesita ao se depararem com a cena ridícula e, por fim, conseguem desvencilhar os dois descerebrados a minha frente. Eles respiram com dificuldade e exibem machucados em suas faces.

-O QUE ESTÁ ACONTECENDO AQUI?! -Dário grita, transtornado com o que vê.

-Eles já estavam brigando no meio do hospital quando chegamos. -Um dos enfermeiros acusa, ressentido, enquanto segura os braços de John.

-FORA DAQUI VOCÊS DOIS. -Dário berra, apontando para mim e Kayke. -E você, seria mais prudente retornar ao seu quarto antes que eu o expulse do meu hospital. -Ele ameaça a John.

O homem que segura a Kayke começa a arrastá-lo para fora, enquanto outro me fita sugestivamente, mostrando que não possuo outra alternativa a não ser acatar a ordem de médico.

A cada passo que dou até a saída, meu ódio por Kayke aumenta. Sinto uma pulsação atrás dos meus globos oculares, predizendo uma futura e indesejável dor de cabeça. Assim que meus pés tocam o solo arenoso da parte externa da construção, dou um empurrão em Kayke para chamar sua atenção, já que ele pretende se afastar sorrateiramente.

Como se eu fosse deixá-lo sair ileso!

-O que pensa que está fazendo? -Questiono com raiva e o indicador em riste para seu rosto com hematomas ficando cada vez mais evidentes.

-Ah, desculpe-me, princesa! Acabei estragando seu encontro amoroso? -Ele contra-ataca com desdém, fugindo descaradamente do cerne da questão.

Um arrepio perpassa minha espinha com a possibilidade de que Kayke saiba de algo sobre mim e John. Os segredos sobre nossa história precisam permanecer exatamente assim, secretos, até que eu mesma tenha coragem de encará-los.

-Sua imaginação não tem limites, Kayke. -Afirmo, ficando tensa.

-Bem, pelo que Luke me contou, esse príncipe foi um dos responsáveis pela prisão sem provas de vocês. Sua gentiliza em relação a ele é, no mínimo, suspeita. Talvez a história de vocês não se resuma somente ao que Luke possui conhecimento. -Kayke insinua, perspicaz.

É como se Kayke fosse capaz de ler minha mente. Sua desconfiança eleva minha irritação a um nível inimaginável, não só pela intromissão audaciosa em minha vida, mas porque suas suposições estão próximas de mais à verdade. Seus olhos castanhos faíscam quando ele percebe que acertou o alvo em cheio.

-Seria mais sábio se você cuidasse somente dos seus próprios problemas, Kayke. -Ameaço, minha voz saindo tão afiada quanto o fio de uma navalha.

Sem outra alternativa, já que, claramente, não possuo mais argumentos para ganhar essa discussão, dou as costas a um lupino furioso e parto em direção a casa de Magnus. O cansaço dos acontecimentos do dia faz com que meu corpo desabe sobre a cama.

Minha cabeça gira em uma repetição contínua das palavras de Kayke. Não era minha intenção em momento algum desempenhar qualquer ato meramente gentil em relação a John e, se não fosse pela interrupção desse lupino incontrolável e irritante, não tenho certeza de qual rumo aquela conversa teria seguido.

Isso é realmente assustador!

Com o passar do tempo, acreditei que o único sentimento guardado em meu coração em relação ao príncipe fosse ressentimento. Contudo, ao mirar seus expressivos olhos azuis, perdi o controle das minhas ações. Seu toque em minha pele foi tanto familiar quanto doloroso, despertando uma miscelânea de sensações esquecidas ou, mais precisamente, bloqueadas. Infelizmente, não posso negar que uma parte de mim desejou não termos sido interrompidos e poder ouvir o que ele tinha a dizer.

Continuo uma completa idiota pelo jeito!

Sentindo o peso do sono inquieto da madrugada passada, vigiando o estado de Suzi, permito ser tragada pela inconsciência. Pelo menos ali, posso confraternizar com meus demônios ao invés de fugir deles. 

Magnus deu aos nossos visitantes exatos sete dias para recuperação suficiente para participarem de uma audiência com a finalidade de "esclarecimento da situação atual", colocando em suas palavras exatas. Em contrapartida, Dário me concedera o mesmo período de castigo, indicando que eu não poderia me aproximar do seu hospital. Por um lado, essa distância está sendo benéfica para manter meu autocontrole.

Como se o hospital não fosse patrimônio de todos da aldeia!

Cecília me abastece com notícias de Suzi que, para minha felicidade extrema, está se recuperando rapidamente. Em todas as vezes nas quais a princesa tentou desviar o assunto para os outros membros de sua família, elaborei uma evasiva perfeita.

Nada de informação é igual a zero pensamentos inoportunos, ou deveria ser.

Para manter minha mente ocupada, entrei em um treinamento intenso a partir do primeiro dia da minha penitência. Adotei a clareira com a cachoeira como arena de treino e desenvolvi uma rotina de acordar antes do nascer do sol e retornar para casa somente quando as estrelas estivessem brilhando no céu escuro.

Finalmente decidiu fazer algo útil!

No meio da tarde do segundo dia, o sábio Calium passou a me observar. Sem qualquer conversa, ele acompanhou meus exercícios para domar de forma mais eficaz meus dons e de luta. Estranhamente, sua presença não me incomodou e ele passou a ser a única companhia que recebi, tendo em vista que Cecília passou a se revezar entre cuidar dos doentes e reorganizar seu casamento ainda sem nova data para acontecer.

-Você já treinou o suficiente o seu físico, agora precisa nutrir sua mente. -Calium diz, deixando-me completamente surpresa por sua manifestação.

Este é o quinto dia em que sigo me exercitando na floresta e o sol já está alto na abóbada celeste. Até o presente instante, não havia notado a chegada do sábio ali. Intensificando ainda mais meu estado de espanto, ele traz consigo uma cesta e uma toalha, a qual é estendida sobre o solo verde.

Calium possui os traços comuns a um lupino: ombros largos, braços fortes e a pele bronzeada pelo contato contínuo com a natureza. Sua idade é salientada por marcas em seu rosto, pequenas rugas ao redor dos olhos e dos lábios destacadas enquanto ele fala.

Entretanto, seus olhos carregam uma suavidade e gentileza que não encontrei em mais ninguém da sua espécie. Seus cabelos longos e brancos lhe concedem uma aura angelical, encaixando-se perfeitamente em seu título de sábio do Comando de Canys.

Calium retira sanduíches e fatias de bolo do cesto e os organiza meticulosamente sobre a colcha. Com um movimento de mão, ele indica para que eu me acomode ao seu lado.

-Se nutrir a minha mente significa me entupir dessas delícias, posso me acostumar facilmente com isso. -Brinco, sem conseguir lhe arrancar um sorriso sequer. -Para falar a verdade, minhas refeições estavam se resumindo a uma maçã e uma garrafa de água. Sendo assim, agradeço a cortesia de dividir sua comida comigo. -Declaro com simplicidade, sentindo-me grata diante do banquete a minha frente.

O sábio começa a se alimentar, mastigando com uma paciência e lentidão que chega a ser irritante. Em compensação, assemelho-me a um dragão faminto engolindo um sanduíche atrás do outro sem intervalo para deglutir.

Quando me sinto satisfeita, recosto-me em uma árvore e aproveito a moleza pós-desjejum. O céu azul e límpido nos presenteia com sua visão, parecendo uma obra de arte tamanha a sua beleza.

-Você precisa praticar meditação. -Calium determina depois de alguns minutos de silêncio tranquilo. -Pela manhã, continuará com os exercícios que desejar, porém, à tarde aperfeiçoará sua capacidade de concentração. -Ele ordena, sem dar espaço para reclamações.

-Não sou muito boa em ficar parada. -Declaro, fazendo com que ele levante uma de suas sobrancelhas criticamente.

-Eu sei, por isso estou aqui. A transformação para lobo é um processo que pode roubar sua mente. Se a fera dominar sua consciência, poderá jamais retornar ao controle e se perderá para sempre dentro de si mesma. Sendo assim, antes da sua próxima lua cheia, é necessário controlar completamente seu espírito. -Calium esclarece serenamente.

Lykaios não seria capaz disso, não é? Ou seria?

Seguindo suas ordens, acomodo-me perto dele, sentando-me de pernas cruzadas. Calium explica que o objetivo de meditar é desanuviar a mente, encontrar o nosso "eu" verdadeiro e desvendar seus mistérios, tornando-o mais poderoso do que o outro ser que vive em nosso corpo. Ele não me dá mais nenhuma instrução além de: feche os olhos e concentre-se.

Depois de quinze minutos, estou impaciente e espiando o ambiente por uma fresta formada por minha pálpebra direita. Inesperadamente, recebo uma pancada com um galho espinhoso em minha coxa esquerda. Por pouco, o tecido da minha calça não foi danificado.

-Concentre-se. -Calium exige sem abrir seus olhos.

Ótimo, assim você não constata meu grau de infantilidade ao mostrar a língua em sua direção.

Para minha infelicidade, esse episódio se torna um hábito para o sábio. Ao completar uma semana do treinamento, carrego diversas marcas vermelhas nos braços e pernas, resultado de suas constantes intervenções em meu comportamento agitado. Aprendi a duras penas o quanto pode ser dolorosa a mania de revirar os olhos, ainda que a pessoa a sua frente esteja, aparentemente, distraída.

-Scarlett, Magnus solicita sua presença na audiência com os nossos visitantes. -Um lupino fala, interrompendo o segundo discurso sobre controle da mente de Calium dessa tarde, outro costume consolidado naquele diminuto período de convivência entre nós.

-Não era para isso ocorrer apenas amanhã? -Inquiro, nervosa.

-Dário atestou o bom estado de saúde de todos, sendo assim, nosso líder não encontrou motivos para adiar mais. -O homem informa.

Engolindo em seco, alterno meu olhar entre o mensageiro e o meu professor. Nenhum dos dois demonstra que permitirá uma fuga da minha parte. Resignada, levanto-me e parto para enfrentar mais uma possível batalha. 

Olá! Olha quem apareceu: o capítulo da madrugada! 

Gostaram? Espero que sim!

Não esqueça de deixar aquela estrelinha bonita e o comentário com a sua opinião!

Até o próximo capítulo :)

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