Capítulo 36
Um frio se dissemina por minha espinha e faz minha pele se arrepiar. A vergonha por ter sido flagrada em um momento de fraqueza me corrói intimamente. Lentamente, viro-me e encaro os olhos confusos de Rurik.
-O que você está fazendo? -Ele questiona.
-Nada. -Respondo rápido demais.
Determinada, afasto-me de John sem olhar para trás. Colocando-me na frente de Rurik da forma mais indiferente possível, engulo o nervosismo.
-Estava apenas verificando o estado dos pacientes. -Afirmo serenamente. -Você precisa de algo? -Pergunto inocentemente.
-Não. -Ele diz, avaliando minha postura minuciosamente. -Magnus determinou que serão feitas rondas periódicas aqui no hospital para que não corramos o risco de ocorrerem fugas. Montamos uma guarda ao lado de fora e estou no primeiro turno. -Ele explica. -Você tem algo para me contar, Scarlett? -Rurik indaga de forma perspicaz, desviando seu olhar ligeiramente em direção ao príncipe.
As palavras me faltam nesse instante. Sua expressão indica que serei apanhada se optar por uma mentira. Rurik me conhece há muito tempo para cair em uma encenação da minha parte.
Sejamos sinceros, você é uma péssima mentirosa!
Um pensando pula em minha mente e percebo que não há melhor situação do que essa para trazê-lo à tona. Já havia adiado demais essa conversa.
-Na verdade, tenho uma pergunta para lhe fazer. -Declaro, aguçando ainda mais a sua curiosidade. -Por que você afastou o Kayke de mim enquanto estávamos no quartel? -Falo, preferindo ser direta.
Seus olhos se dilatam levemente por ter sido pego de surpresa pelo assunto levantado. Repentinamente, o semblante de Rurik fica marcado por exaustão e suas diminutas rugas parecem mais salientes.
-Será que podemos nos sentar um pouco? -Rurik pergunta.
Acenando afirmativamente, sigo-o até um conjunto de cadeiras pretas fixadas no chão do corredor, próximo à parede. Apoiando seus braços nos joelhos, o capitão fita o piso liso e branco quando retorna a falar.
-Acredito que tanto você quanto Kayke merecem uma explicação sobre isso, não é mesmo? -Rurik começa. -Sempre desconfiei que minhas ações gerariam grande dano a Kayke. Ele sempre foi uma criança excepcional, precoce em suas conquistas. Recorda-se de quando lhe disse que ele era filho de um grande amigo meu? -Ele questiona, sem esperar por uma resposta ou olhar para mim. -Não fui inteiramente sincero, esse "amigo" era meu irmão mais novo, minha única família. -Ele revela.
Um pequeno suspiro de incredulidade escapa por meus lábios. Agora, Kayke estar posicionado atrás de Rurik durante minha audiência com o Comando de Canys passa a fazer sentido.
Sem dúvidas, segredos lupinos são muito bem guardados.
-A esposa dele morreu durante o parto de Kayke. -Rurik prossegue. -Essa foi a maior perda na vida do meu irmão. Ele não soube como lidar com a situação e renegou seu filho. Alguns meses depois, encontramos seu corpo enforcado em uma árvore na floresta. -Uma pequena lágrima escapa pelo canto do olho de Rurik enquanto ele pausa para respirar. -Fui o único parente vivo que sobrou para cuidar da criança, a família da mãe dele também já estava morta. Minhas funções eram inúmeras naquela época, não possuía tempo nem jeito para cuidar de um bebê. -Ele confessa com tristeza. -Uma grande amiga da mãe dele se ofereceu para cria-lo na aldeia. Foi a melhor opção para o problema e eu o visitava eventualmente. Quando ele atingiu idade suficiente, levei-o para o quartel para treiná-lo e me ajudar a cuidar de você. Contudo, a proximidade que se criou entre vocês poderia trazer problemas iminentes. A família de Kayke nunca teve uma posição no Comando de Canys e meu irmão desonrou sua memória por conta do suicídio. Eram nítidos os sentimentos de carinho que ele nutria por você e passei a temer na evolução do que isso poderia produzir num futuro próximo. Sendo assim, decidi interferir porque um amor não correspondido para acabar com a sanidade de um homem. -Rurik decreta com firmeza.
Seu rosto permanece voltado para o chão, impedindo a leitura de sua expressão. Cada uma de suas sentenças estão carregadas de uma dor profunda, daquelas que são guardadas por um longo tempo e nunca se curam completamente. Inúmeros pensamentos perpassam em minha mente num turbilhão sem fim.
-Kayke sabe que é seu sobrinho? -Pergunto.
-Sim. Contei toda a história de seus pais quando ele amadureceu. A partir daí, passei a ser a maior autoridade em sua vida e isso exigia sinceridade da minha parte. Relações criadas a partir de mentiras não se solidificam. -Rurik explica.
-Isso explica o porquê de ele seguir absolutamente todas as suas ordens sem questionar ou duvidar. -Indico. -Por mais que você possa não acreditar em mim, jamais magoaria a Kayke. Ele era tudo o que eu possuía naquele quartel e você o tirou de mim. Minha vida mergulhou em uma profunda solidão e, hoje, ele acredita que decidi me afastar por causa da minha origem ser superior. -Digo. -Sabe o que mais odeio nesse mundo, Rurik? Os rótulos dados às pessoas. Seu sobrinho e eu poderíamos ter sido felizes juntos e esses malditos estereótipos e hierarquias destruíram nossas chances. -Declaro com uma raiva fervendo em meu peito.
Os ombros de Rurik se dobram um pouco mais, como se o peso em suas costas fosse pesado demais. Minha atitude pode ser cruel, porém, não consegui refrear a decepção a me preencher enquanto escutava seu relato.
-Você a amava, não é? -Inquiro subitamente, fazendo com que sua atenção se volte para mim. -Amava Siena? Não soube o que fazer quando ela não retribuiu seu sentimento e acabou envenenando seu coração em relação ao amor. -Alego com veemência.
Rurik não se dá o trabalho de negar. Somente maneia sua cabeça em afirmativo. Seu olhar melancólico e triste me fere por dentro.
-Sia nunca soube sobre isso. Ela não permitiria que eu assistisse sua felicidade enquanto ruminava minha desgraça, teria se afastado sem dúvida. Todavia, a ideia de não vê-la era pior do que a de não tê-la. -Rurik revela, expondo-se por completo diante de mim. -Quando ela se casou com seu pai, decidi me tornar alguém digno dela para que, se a vida mudasse em algum momento, nós pudéssemos ficar juntos. Foi uma ideia tola, eu sei. Magnus sempre foi o amor da vida dela. -Ele desabafa. -Alcancei minha posição no Comando de Canys, mas não foi a tempo. Siena desapareceu dias antes da minha nomeação como conselheiro. Nunca desisti de encontrá-la, tornei esse meu objetivo, até que você apareceu. Foi seu último pedido e eu não podia recusar. -Ele diz com honestidade.
Permanecemos em silêncio por alguns minutos, ou foram horas? Perdi a capacidade de mensurar o tempo depois de tantas informações desconcertantes. Os mistérios envolvendo minha mãe são mais numerosos do que posso estimar.
-Ele se apaixonaria por você. -Rurik decreta de súbito. -Kayke não poderia evitar, do mesmo modo que eu não consegui me impedir de amar sua mãe. Assim como ela, você possui algo de mágico e puro que atrai as pessoas e não percebem o efeito disso. Não posso permitir que meu sobrinho tome a decisão do pai dele por uma desilusão amorosa. -Ele determina.
-O que o faz pensar que eu seria uma desilusão para Kayke? -Indago, sem saber se quero a resposta realmente.
Rurik analisa minha face minuciosamente. Sua inspeção é inquietante e começo a torcer minhas mãos em meu colo.
-Seu coração está disponível, Scarlett? -Rurik questiona seriamente.
Não precisava ser tão direto!
Engolindo em seco, não consigo formular uma redarguição. Seus olhos astutos não deixam de notar minha hesitação. A verdade é que nem mesmo eu sei o que há em meu coração nem imagino como fazer para descobrir.
-Foi o que pensei. -Rurik diz laconicamente.
Kayke foi, por um dos períodos mais felizes da minha existência, meu melhor amigo. Ele era o alicerce para os dias em que ser uma órfã era insuportável. Agora, compreendo que ele entendia de fato como eu me sentia. Ambos acabamos magoados pela distância imposta por meio das decisões tomadas por Rurik.
-Espero que um dia o seu coração se cure, Rurik. Não posso dizer que concordo com suas ações do passado, porém, reconheço sua atitude em tentar protegê-lo. Aprendi há algum tempo que somos capazes de fazer tudo ao nosso alcance por aqueles que amamos. -Falo e me levanto.
A passos lentos, retorno para o lado de Suzi. Sua respiração continua em um ritmo lento e seu semblante, sereno. Depois de depositar um beijo em sua testa, acomodo-me na cadeira desconfortável e observo através da pequena janela no alto da parede o céu se tornar laranja vagarosamente pela chegada do sol.
O som de uma tosse seca me desperta após algumas horas. Afastando o sono, vejo Suzi se revirando e me movo mais rápido do que achei que era capaz.
-Suzi! Como está se sentindo? -Digo, segurando em uma das suas mãos.
Ela parece surpresa ao me ver, o que intensifica a irritação em sua garganta. Em pânico, saio correndo pelo hospital atrás de Dário, motivada pelo medo dela parar de respirar. Encontro-o avaliando a John e, ignorando sua presença deliberadamente, dirijo-me ao médico.
-Preciso que ajude a Suzi, ela não parece bem. -Declaro angustiada.
Ele não precisa de mais incentivo do que isso. Sigo em seu encalço, mas Dário impede minha entrada no pequeno quarto onde Suzi está.
-Preciso de espaço para trabalhar, fique aqui. Assim que possível, lhe darei notícias. -Dário instrui, distribuindo outras ordens a alguns enfermeiros.
Contrariada, caminho de um lado para o outro sem conseguir me conter. Aguço os ouvidos na tentativa de descobrir se Suzi conseguiu voltar a respirar.
-Ela está bem? -John pergunta, surgindo a alguns metros de mim.
Tento com todas as minhas forças não olhar para seu rosto, entretanto, é inútil. Meus olhos tem vida própria e decidem me torturar ao encará-lo. Suas olheiras estão um pouco menos salientes e sua postura mais tranquila.
-Não sei, Dário não permitiu minha entrada. -Respondo, minha voz carregada por um nervosismo incomum.
-Esse médico é muito bom, tenho certeza de que Suzi logo estará melhor. -Ele afirma dando um sorriso contido, o que torna a atividade de manter uma conversa coerente mais difícil.
Em contrapartida, gesticulo em afirmativo, não confiando na minha capacidade de falar. John começa a se aproximar de mim e, a cada passo, sinto meu coração acelerar. Ele para quando apenas alguns centímetros nos separam.
-Nós precisamos conversar. -Declara com suavidade, quase em um sussurro.
-Não, não precisamos. -Asseguro, dando um passo para trás.
O príncipe captura uma das minhas mãos entre as suas e não consigo mais me mexer. Fico paralisada com a sensação quente de sua palma na minha pele, encarando o ponto no qual seus dedos encostam e acariciam.
Internamente, odeio-me intensamente por permitir que sua presença ainda me desestabilize. Sua proximidade desata o nó responsável por aprisionar todos os sentimentos que um dia me permiti sentir por ele.
-Pelo que consegui escutar, ela disse que não quer falar com você. Sendo assim, creio que seja mais prudente soltá-la. -Kayke fala, aparecendo atrás de mim.
Ah, perfeito! Agora o circo está completo.
Olá, pessoas! Mais um capítulo saindo nessa tarde de terça.
Gostaram? Espero que sim!
Um aviso: minhas provas estão chegando, sendo assim, passarei um tempo longe porque preciso estudar. Assim que possível, postarei mais. Sei que é ruim esperar, mas infelizmente não posso viver para escrever.
Espero que compreendam e não abandonem a história! Eu não os abandonarei, só vai demorar um pouco mais para aparecer por aqui!
Um beijo e uma semana maravilhosa!
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