Capítulo 28
Quando meus olhos se abrem novamente, preciso piscar repetidas vezes até que minha visão se acostume à claridade. Encontro-me em uma sala completamente branca, sem sinal de portas ou janelas, apenas enormes paredes. As dores em meu corpo desapareceram, como se nunca tivessem existido.
-Finalmente você me libertou. -Escuto uma voz grave e animalesca falar, semelhante a um rosnado.
Ao manear minha cabeça, encontro um imenso lobo branco sentado atrás de mim. Sua estrutura física é tão grande que preciso levantar a face para enxergá-lo por completo. Seus olhos amarelos brilham e um sorriso estranho parece se formar em seu focinho.
-O-o q-que é você? -Pergunto e me arrasto para longe do animal. -Onde estou? -Inquiro com desespero.
Em resposta, recebo uma risada longa e grosseira. Apesar de seu tamanho e de sua tentativa de me assustar, não sinto medo ou aversão ao lobo. É como se eu o conhecesse há muito tempo.
A cada segundo, seus contornos e voz se tornam cada vez mais familiar, como em um dejà-vu. Inesperadamente, uma imagem se projeto no espaço entre nós. Nela, meu "eu criança" acaricia com um lobo branco.
-Lykaios, quando você vai sair pra brincar comigo? -Escuto minha voz infantil falar.
-Você ainda é muito pequena, garotinha. Precisa crescer mais. -O lobo fala.
-Não quero crescer. Quero ficar aqui com você para sempre. Ninguém gosta de mim aqui nesse orfanato feioso. -Ela reclama.
-Você precisa crescer, Lelet. É sua obrigação se tornar uma heroína. -Lykaios argumenta.
-Quero ser um lobo, não uma heroína idiota! -A menina contradiz e puxa uma das orelhas do lobo.
Lykaios ri novamente e afaga a criança com seu focinho. Ela se posiciona em suas costas e ambos seguem se divertindo.
Quando a imagem acaba, sinto uma lágrima escorrendo por minha bochecha. Em seguida, uma enxurrada de memórias perdidas sobre ele se projeta, como uma cachoeira feroz e implacável. Provavelmente, todas estavam soterradas na bagunça que se tornou meu coração.
-A dor e o amadurecimento fizeram você se esquecer desse lugar que nada mais é do que a sua consciência. -Lykaios explica. -Conhecemo-nos desde que você nasceu. Quando cresceu e não me visitou mais, permaneci em seus pensamentos, auxiliando-a de todas as formas possíveis. -Ele continua.
-Lykaios... -Balbucio, sabendo que já ouvi esse nome em outro momento, sem contar com minhas lembranças pueris. -Eu costumava ver você enquanto dormia. Naquela época, acreditei que não se passavam de sonhos. Nada disso pode ser real. -Digo com incredulidade.
-A mente também é um local de ataque e criação, então por que não pode ser uma extensão da realidade? Esse mundo pode ser até mais poderoso e destrutivo do que o que é físico e palpável. -Lykaios relata. -Porém, tenho que confessar que senti sua falta, Lelet. -Ele diz carinhosamente.
Seu afeto explícito contrasta com sua imagem opulenta e ferina. Sem conseguir me controlar, corro até o lobo e abraço seu pescoço musculoso. O sentimento de completude que me preenche por estar ao seu lado é tão grande que não tenho forças para soltá-lo.
-O que você quis dizer com "libertei você"? -Pergunto.
-Oras, sua raiva foi o gatilho para minha liberdade e a partir de agora vamos compartilhar o mundo físico. -Ele diz.
Ao se deparar com minha expressão confusa, ele ri novamente. Agora, meus ouvidos parecem extremamente à vontade com sua risada estrambótica.
-Você vai se transformar em lobo, Scarlett. -Ele esclarece tranquilamente.
Não tenho tempo suficiente para assimilar sua sentença. Quando sua frase chega ao final, sou envolvida em escuridão novamente.
-Você tem certeza que a cor do pelo era branca? -Alguém pergunta.
-Para falar a verdade, ela se moveu tão rápido que não consegui acompanhá-la, mas creio que sim. -Outra pessoa fala, semelhante a voz de Magnus.
Permaneço imóvel sobre uma superfície macia com um cobertor sobre mim, tentando assimilar o que está acontecendo. O desenrolar dos fatos é tão frenético que minha cabeça fica zonza.
-Quando você a encontrou, a transformação já havia acabado? -O desconhecido questiona novamente.
-Sim. Ela seguiu o caminho contrário da floresta. Segui para lá somente porque escutei um uivo. Não havia sinal algum da transição. Nenhum osso quebrado e nenhum ferimento. A única mudança foi que esses símbolos no corpo dela haviam sumido, entretanto, agora já retornaram. Kayke relata.
Preciso controlar a vergonha que luta para se externalizar pela notícia de que Kayke me encontrou praticamente nua mais uma vez. Para manter a sanidade, tento montar uma lista de itens que preciso verificar:
1. A existência de Lykaios;
2. Minha capacidade de me transformar em um lobo;
3. Tentar manter a calma ainda que tudo isso seja verdade.
-Esse é um bom começo. Pode confirmar os tópicos 1 e 2. -Escuto a voz animalesca se pronunciar em minha mente.
Meu coração se transforma em um tambor dentro do peito e quase perco o controle do meu corpo. As recordações de Lykaios em minha mente retornam e algo me diz que isso tudo não é invenção da minha mente nem passageiro.
-Esse é o calor de Siena? -Magnus questiona depois de um período de silêncio.
-Sim. Como lhe expliquei antes, Siena ordenou que eu o entregasse a Scarlett. -Rurik confirma.
-E quem deu a Lelet essa aliança e esse anel? -Meu pai inquere.
Sinto um peso cair em meu estômago e um frio se infiltrar em minhas veias. A ideia de que Magnus descubra sobre minha vida no castelo desperta em mim o medo de uma possível rejeição, como se ele fosse me amar menos pelos erros que cometi e pelos preconceitos intrínsecos em sua raça.
Tem certeza que foi um erro?
-Bem, essa história deve ser contada a você pela própria Scarlett, mas... -Escuto Cecília começar a falar próximo ao lugar no qual minha cabeça repousa.
No instante seguinte, abro meus olhos e inicio uma crise de tosse exagerada para encobrir a voz da princesa. Rapidamente, analiso a situação ao meu redor e reparo que estou no quarto que Magnus me deu em sua casa e que há uma plateia me observando.
Até que você se saiu bem!
-Você está bem? -Magnus pergunta se sentando na cama ao meu lado.
Consigo apenas gesticular positivamente e fujo de seu olhar perquiridor. Meus expectadores carregam consigo a mesma expressão, principalmente Cecília.
-Tem alguma ideia do que aconteceu? -Calium fala, surgindo atrás do líder lupino.
Por querer saber mais sobre tudo o que se transcorreu, maneio o pescoço em negativa. O sábio analisa minha expressão com suspeita e, de perto, suas órbitas brancas são mais assustadoras e parecem enxergar minha alma.
-Eu estava em uma reunião quando ouvi você gritar no corredor. Quando lhe encontrei, você saiu correndo e não consegui lhe acompanhar. Procuramos por você por algumas horas até que Kayke lhe encontrou na floresta, extremamente distante da aldeia. -Ele faz uma pausa para respirar fundo antes de proferir sua próxima sentença. -E você... Se transformou em um lobo. -Magnus conta com certo receito.
Mirando sua face, percebo que ele teme por minha reação. É como se o líder dos lupinos temesse ter sua essência rejeitada por aquela que deve seguir o seu legado.
-Então temos mais uma característica em comum? -Pergunto, dando-lhe meu melhor sorriso.
Lentamente, o rosto do meu pai se ilumina e consigo enxergar o jovem pelo qual minha mãe se apaixonou. Ele me envolve em um abraço de urso, ou melhor, de lobo, quase sufocante.
Péssimo trocadilho!
Com um limpar de garganta, Rurik perfura nossa bolha de irrealidade. Afastando-me de Magnus, encaro não só o capitão, mas também a Luke, Kayke, Mirena, Lírida, Calium e, por fim, a tagarela da Cecília. Ela, sabiamente, desvia seus olhos dos meus.
-Fiquei preocupada com você, Scarlett. -Lírida fala e segura em uma das minhas mãos.
-Creio que todos ficamos. -Kayke adiciona com o semblante severo, como se me culpasse pelo ocorrido.
-Na verdade, há mais motivos a comemorarmos do que a lamentarmos. -Calium diz. -Teremos que fazer uma nova celebração de apresentação e, enquanto isso, seu treinamento lupino iniciará. -Ele termina com firmeza.
Nesse átimo de segundo, os olhos de Calium brilham com certa malícia, como se o destino que me espera não fosse nada simples, fácil ou agradável. Contudo, o que o sábio não sabe é que essa não será minha primeira batalha nem a última. A diferença é que agora eu quero lutar.
-Estarei pronta. -Digo e sorrio.
Olá :)
Mais um capítulo saindo. Gostaram?
Boa semana pra todos! ;)
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