Capítulo 24

Um pouco incerta, inicio minha caminhada até o vilarejo lupino. A trilha é íngreme, sendo assim, todo o cuidado é pouco. Davi e Cecília permanecem próximos a mim, o que me leva a constatar que o pequeno futuro lobinho possui muito mais destreza em seus pés diminutos do que o resto de nós. Enquanto isso, no céu aberto e azul celeste, Velikaya acompanha os passos do garoto, como uma mamãe ganso zelosa.

Ao atingirmos o solo plano, começo a perceber os indícios da dominação do território por parte da sociedade lupina: plantações, hortas, esculturas de lobos e flores decorando a tudo nos encontram pelo caminho até o centro da vila.

Casas modestas começam a pontuar a paisagem e, enquanto passamos, seus moradores nos acompanham com olhares curiosos. Quando atingimos o coração do vilarejo, encontramos um extenso círculo de estátuas brancas de mármore representando lobos em tamanho real e, em nosso encalço, uma multidão se forma.

Não tenho tempo de analisar melhor os animais esculturados porque um grupo de lupinos nos aguarda na entrada da maior casa que há ali, posicionada um pouco além do anel de monumentos e na coloração de um branco muito claro e imaculado. Os homens se mantêm sérios e atentos, como um gavião escolhendo sua próxima presa.

-Bom tê-lo de volta, Magnus. -Um deles fala ao nos aproximarmos. -Vejo que trouxe muitos visitantes. -Ele completa sua observação com um olhar especulativo.

-Bem, nem todos são visitantes. –Magnus argumenta. -Ancião Alicator e demais anciões, tenho o prazer de lhes apresentar Scarlett, minha filha. -Ele declara.

Como que em sintonia, todas as pessoas a minha frente abrem caminho para eu passar e sou obrigada a prosseguir. Os homens de vestes negras me fitam intensamente. É como se até mesmo o ar parasse de fluir naquele segundo.

Os anciões possuem faces marcadas pelo tempo e cabelos grisalhos. Entretanto, seus corpos imponentes e musculosos continuam a ilustrar a força que neles habita.

Inesperadamente, todos se ajoelham em minha frente, inclusive os lupinos residentes do vilarejo que nos seguiram até ali. Em virtude da atitude geral, meus acompanhantes lobos e fadas também me reverenciam, restando somente Magnus e eu em pé.

Um frio se infiltra em minhas veias pela responsabilidade que tal manifestação irá desencadear. Mais uma vez me é dado um cargo em que não possuo a menor capacidade de desempenhar. Meu pai ostenta o maior sorriso que já o vi esboçar e captura uma das minhas mãos.

-O povo lupino recebi a ti, Scarlett Protego, minha única e amada filha. -Magnus fala em uma voz potente que preenche o povoado. -Nesta noite, festejaremos seu retorno ao lar! -Ele declara e vejo seus olhos marejarem levemente.

Surpreendentemente, todos ao meu redor disparam vivas e uivos de comemoração. Magnus me embrulha em seus braços e me gira em seu abraço. É como se todos estivem a minha espera.

-VAMOS COMEMORAR! -Alguém grita ao meu redor.

-FINALMENTE NOSSA MATILHA TEM UMA HERDEIRA! -Outro brada.

-A FELICIDADE DE NOSSO LÍDER RETORNOU! -Uma voz exclama.

Subitamente, encontro-me rodeada de pessoas que não conheço e distante de todos os rostos familiares. Meu pai praticamente me arrasta para o interior da construção branca reluzente. Não consigo visualizar a estrutura interna da mansão porque rapidamente, , depois de subir algumas escadas, sou encaminhada até a porta de um quarto e me instruem a entrar.

Magnus e sua comitiva desaparecem no fim do corredor e me deparo sozinha em frente a madeira escura do portal. Respirando fundo para acalmar meu coração, seguro a maçaneta e adentro o cômodo.

Não é nada luxuoso quanto no palácio real, composto por uma cama marrom com um dossel de madeira, uma penteadeira de aparência velha e um armário de roupas. Uma ampla janela permite que a luz do sol preencha o chão e forme figuras indistinguíveis. Aproximando-me, consigo enxergar o círculo de esculturas lupinas e as pessoas correndo de um lado a outro na tentativa de organizar tudo para os festejos.

Em meio a multidão, encontro a Kayke. Ele conversa com Luke e Rurik em um ponto mais distantes quando, sem precedentes, uma mulher de cabelos loiros corre em sua direção e lhe abraça com uma vontade exagerada. De repente, um aperto toma conta do meu âmago quando identifico quem é a garota: Juliette, minha antiga colega de quarto no quartel de Marina Azul.

Kayke retribui seu abraço com o mesmo entusiasmo, fazendo seus companheiros se afastarem. Juliette segura em uma das mãos do lupino e o arrasta para longe do meu campo de visão.

Uma sensação estranha de traição corrói meu ventre e me xingo mentalmente por permitir que esses sentimentos façam morada em mim novamente. Deslealdade é uma lição que deve ser aprendida e memoriza uma vez só.

Espero que todos os homens queimem no fogo eterno!

-Olá, querida. -Uma voz feminina me faz dar um pulo para longe da janela. -Chamo-me Mirena e, por enquanto, serei responsável em lhe auxiliar para se aprontar para os festejos. -Ela explica.

Seus olhos e sorriso transbordam bondade e me recordam de Suzi. Contudo, sua aparência se distingue muito da criada real: alta e esguia, com um longo cabelo negro caindo em cascata por seus ombros, uma pele com um bronzeado escuro e brilhante e um rosto bonito e maduro completam a mulher a minha frente. Ela provavelmente tem a idade de Magnus.

-Oi. -Respondo de forma desengonçada. -Sou Scarlett. -Digo debilmente e estendo uma de minhas mãos em cumprimento.

-Provavelmente, todos na aldeia já sabem seu nome. -Mirena responde rindo e aceita minha saudação.

-É, imagino que sim. -Falo sem esconder um certo descontentamento.

-Com o tempo, você acostuma com a atenção. -Ela tenta me consolar.

Moça, você está redondamente enganada.

-A senhorita gostaria de se banhar? Acredito que a jornada tenha sido longa. -Mirena indaga.

-Com certe... -Inicio até que uma certa palavrinha adentra minha mente. -Vamos combinar algo? Nada de "senhorita". Não desejo esse tipo de tratamento, por isso, você pode me chamar somente de Scarlett. -Declaro com intensidade.

Mirena parece surpresa e logo depois me dispensa mais um dos seus sorrisos, como se soubesse de algo desconhecido a mim. Ela gesticula afirmativamente e me leva até uma porta que eu ainda não havia notado no fundo do cômodo.

Ao abri-la, deparo-me com banheiro completo: chuveiro, banheira, vaso sanitário, toalhas felpudas. Tudo muito limpo e organizado.

-Como vocês tem eletricidade para isso em meio à floresta? -Indago.

-Não é só porque vivemos na mata que a tecnologia não chegou até aqui, só escondemos tudo sob o solo. Prezemos a natureza acima de tudo. -Mirena explica.

Chocada, somente aceno positivamente. Mirena me ajuda a preparar meu banho e me avisa que roupas novas estariam sobre a cama. Quando sou deixada sozinha, retiro minhas vestes surradas e imerjo na água quente da banheira, deixando até mesmo a cabeça submersa por um tempo.

Meu corpo cansaço relaxa em contato com os sais de banho e, por alguns minutos, penso em Cecília e em como ela está sendo tratada. Conseguir essa informação será minha prioridade assim que sair desse quarto. O sono pesa em minhas pálpebras e permito que minha consciência seja tragada para um mundo de escuridão, nele sonhos de uma guerra se apossam de mim. 

Sangue se espalha e encharca a grama verde enquanto corpos sem vida se chocam contra o solo. Vejo Morgana vir em minha direção em seu vestido lilás esvoaçante, indiferente às mortes a sua volta.

-Prepare-se, as trevas estão se aproximando. -Ela avisa.

-Trevas? Por que essas pessoas estão se matando, Morgana? Temos que pará-los! -Exclamo em desespero.

-Eles estão aqui por sua causa, Scarlett. É por isso que você não pode falhar nem se desviar de sua missão. -Morgana explica.

-Que missão? -Inquiro segurando em seus braços.

-Extirpar o mal que está se apossando desse mundo! -Ela diz e seus olhos brilham.

No instante seguinte, o rosto de Morgana some e em seu lugar está o da mulher que apareceu para mim quando recebi as marcas de caçadora e julguei ser minha mãe. Inesperadamente, seu corpo é atingido por uma faca exatamente no lugar em que seu coração deve estar.

Seu vestido é tingido de vermelho, seu olhar se apaga e seu corpo pende em minha direção, e é aí que consigo visualizar quem a atacou: um feiticeiro sombrio com suas órbitas vazia e cicatrizes profundas. Atrás dele, uma nuvem negra se propaga pelo ambiente e consume a tudo que está ao seu alcance.

Gritos explodem em meus ouvidos e me desorientam. O feiticeiro se aproxima de mim e se segura minha cabeça.

-Não adianta mais lutar, Alteza. Não há esperança para vocês. -Sua voz rouca e grave ressona.

Abruptamente, a imagem se altera novamente e encaro o rei de Pélagus na minha frente. Ele toca seus lábios secos nos meus e me paralisa. Inerte, assisto a vida abandonar meu corpo.

-Adeus, amor. -Arthur sussurra.

-SCARLETT, SCARLETT! -Escuto alguém me chamar e sinto meu corpo ser balançado.

Abrindo os olhos, sinto minha garganta comprimida por água e começo a tossir freneticamente em busca de ar. Passados alguns minutos, consigo me situar no espaço e encontro os olhos preocupados de Mirena.

-O que houve? -Pergunto.

-Eu não sei. Retornei ao seu quarto para saber se você precisava de alguma ajuda e lhe encontrei submersa na banheira desacordada. Não estava respirando quando lhe retirei da água e pensei que estava morta. -Ela conta, tropeçando nas palavras com o nervosismo.

-Estou bem, apenas adormeci. -Tento acalmá-la.

-E quase morreu por isso! -Mirena reclama. -O que são essas marcas em seu corpo? -Ela indaga um pouco mais calma.

Nesse momento, reparo que estou nua na frente de uma desconhecida. Rapidamente, alcanço uma toalha e cubro o máximo de pele que consigo.

-São marcas das caçadoras das fadas, a linhagem Venatrix. -Respondo sem rodeios e a encaro.

-Elas estavam brilhando quando cheguei. -Mirena fala e franze as sobrancelhas, sem demonstrar surpresa em relação a minha resposta.

Mirando os enigmáticos desenhos intrincados em meu corpo, rememoro o terrível sonho que quase me arrancou a vida. Sem dúvidas, isso tudo está interligado de alguma forma.

-Podemos manter esse ocorrido entre nós duas? -Pergunto e fito Mirena de forma sugestiva.

Ela morde o lábio inferir e suas bochechas ficam rosadas. Imediatamente, entendo que mais alguém já possui conhecimento sobre o que aconteceu e não demora muito para eu descobrir quem é.

-Mirena, um dos meninos me chamou dizendo que você estava desesperada por ajuda. O que houve? Por que você está nesse trancada nesse banheiro? -Kayke questiona enquanto distribui socos pela frágil porta de madeira.

-Está tudo bem agora, Kayke. Consegui resolver sozinha, sendo assim, você já pode ir. -Mirena responde um pouco aflita.

-É a Scarlett que está nesse quarto, Mirena? Estou vendo a mochila dela. Aconteceu algo com ela? -Ele pergunta, aumentando o grau de aflição em sua voz.

Com mais um tapa, Kayke faz com que a porta ceda e, com um barulho audível, ela se choca contra o chão. Mais rápido do que consigo acompanhar, Mirena se coloca a minha frente, enquanto ainda permaneço sentada no solo parcamente coberta com uma tolha e incrédula com o que se passa a minha volta.

-O que houve? Onde ela está? -Kayke adentra o espaço e começa a me procurar.

-Você não ouviu o que eu disse? Ela está bem, só adormeceu no banho e eu não conseguia acordá-la. Se uma porta está trancada, você não deve colocá-la abaixo! -Mirena exclama aborrecida.

Ignorando-a, Kayke me enxerga e vem em minha direção, driblando Mirena. Ele se agacha diante de mim e segura meu rosto próximo ao seu, sem se importar com meu constrangimento.

-Você está bem? -Ele pergunta de maneira gentil.

Consigo apenas gesticular positivamente. Provavelmente, a água que quase me afogou danificou a parte responsável pela cognição em meu cérebro.

Tranquilizando-se com minha resposta, Kayke desvia seus olhos para o restante do meu corpo e, para meu desalento, os mesmos se demoram analisando minhas pernas e braços desnudos. Logo em seguida, vejo suas bochechas se enrubescerem. Quando seu olhar retorna ao meu, ele parece tão embaraçado quanto eu.

Ligeiramente, o lupino se levanta e vai embora sem pronunciar qualquer outra sentença. Ao escutar o som da porta da entrada se fechar, deito-me novamente no chão.

-Deveria ter morrido afogada, Mirena. -Resmungo.

-Não diga tolices, Scarlett! Kayke irá esquecer o que houve aqui e jamais fará um comentário sequer sobre isso. -Mirena me censura.

Não estou tão certa disso!

-Agora, levante-se. Precisa se arrumar, já está atrasada. -Ela continua como um general.

-Atrasada para o quê? -Inquiro cansada.

-Para os festejos, menina! -Mirena responde levemente irritada e me deixa sozinha no banheiro.

Ah, sim! Os festejos. Mais uma tortura a qual serei submetida e forçada a participar.

Talvez eu devesse ter ficado na banheira!

Oláááá! Olha quem apareceu de novo!

Mais um capítulo fresquinho saindo do forno! Gostaram? 

Provavelmente, o próximo irá demorar mais do que esse. Infelizmente, estou em final de semestre da faculdade e o tempo está curto. Mas não desistam da gente!!

Espero que tenham um excelente final de semana! Um beijão. 

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