Capítulo 21

Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete... Conto meus passos enquanto caminho na lama. É interessante observar minhas pegadas desaparecendo logo depois de serem produzidas. Uma pequena peculiaridade do Bosque dos Álamos é a de que nenhum vestígio de nossa passagem permanece. Como num passe de mágica, tudo some.

-Scarlett, você está me escutando? -Cecília questiona pela milionésima vez.

A resposta deveria ser "não" ou "nem uma palavra se quer", qualquer uma serviria, mas estamos falando da princesa e sabemos o quanto ela pode ser sensível. Sendo assim, olho em seus olhos e aceno afirmativamente.

Uma mentirinha não pode causar grande estrago, não é mesmo?

Sem precisar de outro incentivo, Cecília continua tagarelando sobre os tipos de árvores, flores e ervas ao nosso redor. Essa é a maneira dela de me mostrar que está nervosa e com medo. Entretanto, estou tentando manejar minha própria cota de ansiedade.

Desde que atravessamos as sequoias e entramos em território lupino, uma crescente apreensão vem me dominando. Uma aflição inquietante que não me deixa dormir.

A verdade é que, em meu âmago, uma pergunta ecoa muito alto: e se meu pai não gostar de mim? Isso não deveria me preocupar, mas, infelizmente, também sou mais sensível do que imaginara. A ideia de ter um pai jamais havia passado em minha mente até o momento e sei que não estou preparada para conhecê-lo.

Uma pena que a escolha não seja minha.

Além disso, minha relação com Rurik e Lírida não está indo bem, contribuindo para elevar ainda mais meu nível de estresse. Aliado a isso, Daisy e Íris não são minhas maiores fãs e demonstram estar decepcionadas com minhas atitudes e decisões.

Nossa lida não tem sido fácil. O terreno do bosque não é plano e a vegetação é fechada. Até mesmo os lupinos evidenciam exaustão, exceto, é claro, Kayke que mais se assemelha a uma máquina de guerra.

Incontáveis vezes, encontro seus olhos grudados em mim. Contudo, ele não havia tentando conversar ou se desculpado.

Sim, a culpa de nosso desentendimento é toda dele.

-A noite já está chegando, vamos descansar aqui. -Rurik decreta assim que encontramos um espaço com uma densidade menor de árvores.

Previsivelmente, as fadas se afastam para seus repousos aéreos e nós permanecemos no solo. A passagem dos dias não conseguiu diminuir a tensão entre os dois povos.

Depois de auxiliar a Cecília a organizar nossos sacos de dormir e a Davi a acender uma fogueira, decido dar início às reconciliações e, indiretamente, buscar respostas para as incertezas que me afligem. Há uma pessoa aqui na qual sempre confiei e que nunca me desapontou quando precisei de conselhos.

-Rurik, posso falar com você? -Pergunto.

A expressão de confusão do capitão é dolorosa. Entretanto, não é surpreendente, já que nos afastamos aos poucos.

-É claro. -Ele diz.

Para que ouvidos alheiros não nos escutem, caminho por entre os troncos mesclados de verde e marrom em busca de um lugar sossegado. Quando chegamos distantes o suficiente e me dou por satisfeita, encaro-o.

-Antes de tudo, quero me desculpar com o senhor. -Falo e vejo seus olhos se alargarem levemente. -Fiquei nervosa ao saber o que você estava pedindo para Lírida fazer e me descontrolei, porém, isso não justifica minha insubordinação. -Declaro.

-Não sou mais seu superior, Scarlett. -Ele afirma.

-Eu sei. -Digo e respiro fundo para conseguir abrir meu baú de sinceridade. -Sempre o enxerguei como um pai, Rurik. Não quero que nossa relação se perca em decorrência de uma situação incontrolável. Quero confiar em você novamente e também que confie em mim, quero ter nossa amizade de novo. -Declaro, remexendo minhas mãos em agonia.

Para meu desespero, uma lágrima escapa pela bochecha de Rurik e ele demonstra que irá desabar. Contudo, o capitão é o mestre do autocontrole.

-Também preciso me redimir com você. O que fizemos sem o seu consentimento não foi correto, sendo assim, sinto muito por tudo o que aconteceu. -Ele diz e segura em uma das minhas mãos, interrompendo meu tique nervoso. -Sempre lhe considerei como uma filha, Scarlett. -Rurik confessa.

Quebrando o protocolo, envolvo meus braços ao seu redor e o abraço. É estranho e incomum, no entanto, tem cheiro de casa. Alguns segundos depois, Rurik cede e me aconchega em seu peito, desencadeando uma familiar sensação de segurança em mim.

Ainda que nossos sentimentos sejam verdadeiros, um embaraço se avoluma entre nós quando nos soltamos. De uma caminhada passamos a correr em nossa relação e isso foi realmente uma mudança veloz.

-Queria lhe fazer uma pergunta também. -Digo limpando a garganta para quebrar o silêncio.

-Fique à vontade. -Rurik fala, mostrando extremo interesse em mudar de assunto.

-Gostaria de saber, , como é o meu pai? -Questiono, proferindo a frase tão rápido que as palavras se enrolam.

Rurik demora para esboçar uma reação e, quando o faz, vejo seu rosto ficar levemente tenso. E com a mesma fugacidade que surgiu, essa expressão desaparece e ele sorri.

-Magnus é um ótimo líder. Desde o início, tratou seu povo com dignidade e respeito, sem se importar com o cargo desempenhado por cada um dentro da matilha. -Ele responde.

-Minha pergunta não se remete a maneira pela qual meu pai gere a aldeia. Como ele realmente é, Rurik? -Pergunto e o fito com intensidade.

Encarando meu rosto, um turbilhão de pensamentos parece assomar na mente do capitão. Dando um longo suspiro, ele coloca uma de suas mãos em meu ombro direito e veste seu semblante paciente, exatamente da mesma forma de quando eu questionava o porquê de não haver sobremesa no quartel.

-Seu pai é um dos melhores homens que já conheci, Scarlett. -Rurik fala com veemência.

Respirando fundo, assimilo a ideia de que Magnus pode ser tudo aquilo que imaginei de um pai nas minhas memórias mais antigas. Alguém para segurar minha mão nas noites de pesadelo e para me envolver em abraços quentes nos dias mais frios.

-Acredita que ele ficará feliz em saber que estou viva? -Inquiro, colocando para fora o pensamento que vem me assombrando.

-É com isso que você está preocupada? Havia notado que sua cabeça estava dispersa, mas essa opção não me ocorrera. -Ele argumenta e apenas gesticulo afirmativamente. -Não há menor possibilidade do seu pai sentir menos do que felicidade ao te encontrar, Scarrlett. Há anos ele espera por isso, há anos ele espera por você. -Rurik assegura, capturando minhas mãos entre as suas.

-Já se passaram dezessete anos desde a última vez que ele me viu, não sou mais um bebê. -Contraponho.

-E Magnus amará imensamente a mulher que você se tornou. -Rurik garante com afeição.

Sua certeza acalma meu coração, ainda que momentaneamente. Nunca senti uma insegurança tão grande quanto agora, nem mesmo ao conhecer o rei de Pélagus. Respirando fundo, aceito a confiança dada por Rurik.

-Tudo dará certo. -Ele me garante. -Agora, vamos voltar ao acampamento, estou com muita fome. -Rurik diz e sorri.

-Vá na frente. Quero aproveitar um pouco mais o silêncio preciso e incomum para quem fica rodeado o tempo todo pelo falatório incessante de Cecília. -Respondo, gracejando.

Quando retribuo seu sorriso, Rurik parte e me permite desfrutar da solidão, tão escassa nesses dias. Para onde quer que eu vá, há sempre uma companhia, exatamente como Kayke ordenou.

O que é imensamente irritante!

-Redimindo-se de seus pecados, Alteza? -Ouço alguém falar.

Olho em todas as direções do pequeno círculo em que me encontro, mas não identifico o invasor do meu momento particular. Quando estou quase me convencendo de que fiquei maluca, a fada Arian pula de um galho alto e aterrissa ao meu lado.

-Creio que escutar a conversa alheia não é um ato muito educado. -Digo encarando seus olhos lilases.

-Só estava descansando, vocês é que invadiram minha árvore. -Ela contra-ataca.

Sem saber o que dizer a isso, dou-lhe as costas com o intuito de me afastar. Privacidade havia se tornado um conceito desvalorizado por todos.

-Há boatos de que você desistiu de fazer parte do meu povo. -Arian diz.

Sinto um leve ressentimento em sua voz. Entretanto, isso é encoberto pela raiva que ela tenta controlar.

-O que está insinuando? -Questiono.

-A verdade. -Arian fala e se aproxima. -Você não queria estar aqui, nem mesmo ter sido libertada daquele castelo. Seu amor pelos Elementais é tão grande que não conseguiu se desfazer de sua adorada princesinha, mesmo tendo nosso sangue em suas veias. -Ela acusa.

-Não ouse indagar sobre algo do qual você não sabe nada. -Respondo, sentindo minha ira crescer.

-Ou o que, Alteza? Você vai chorar ou usar seus dons fajutos contra mim? -Ela caçoa.

Inesperadamente, Arian segura em um dos meus braços e levanta a manga da minha blusa, utilizada para esconder as marcas negras em meu corpo. Seu olhar é tão penetrante que não me dá chances de reagir.

-Você tem vergonha dos símbolos que a identificam como nossa. Desde que eles surgiram em sua pele, são escondidos por baixo dessas roupas. -Arian fala. -Todos os nossos anciões morreram. Sua avó morreu nos protegendo e minha família morreu para que eu continuasse viva. -Ela conta. -Encontrar você pareceu ser uma esperança em meio ao caos, mas não seguirei a alguém que nos renega e não se orgulha de ser uma de nós. É melhor refletir se não há mais iniquidades para confessar. -Ela indica.

Arian larga meu pulso e se vira para ir embora. A impressão de seus dedos pulsa ali e me deixa ainda mais enraivecida. Todavia, um suave farfalhar atrás de mim chama minha atenção em meio à mata e ao olhar nessa direção, um calafrio me percorre.

-ARIAN, ABAIXE-SE! -Grito e pulo sobre ela.

Um gigantesco lobo salta sobre nós, parando exatamente no lugar em que Arian estaria se prosseguisse. Rapidamente, levanto-me e me coloco entre a fera e a fada.

Esse lobo é maior do que qualquer um do bando de Kayke e seu pelo é tão escuro quanto a noite. Quando seus olhos amarelos se encontram com os meus, ele hesita e parece ficar confuso repentinamente. Aproveitando a deixa, puxo Arian pelo braço, enquanto ergo uma parede de fogo ao redor do animal, encurralando-o.

-CORRA! -Brado para ela.

Arian nem ao menos pisca antes de partimos em disparada para o acampamento. O lobo uiva, provavelmente chamando seus amigos.

Bem, o que eu preciso é encontrar os meus amigos!

As batidas no solo recomeçam, indicando que o lobo conseguiu se livrar das chamas. Apertando o passo, tento acompanhar Arian que acaba de se lembrar que possui asas e levanta voo.

Espertinha!

-ELES NOS ACHARAM! -Berro desesperada, assim que entro no acampamento e tropeço em uma raiz.

Todos me fitam com surpresa e Kayke começa a correr para me ajudar. Contudo, antes que ele me alcance, o lobo preto avança sobre mim e rosna para o outro lupino. Tento fugir para o outro lado, mas uma barreira de lobos me impede.

Quando o lobo negro entende que Kayke não irá interferir, ele me afronta e coloca seu rosto a centímetros do meu. Seus olhos são mais inteligentes do que um animal deveria parecer e, contra todos os meus instintos de sobrevivência, estendo minha mão e toco seu focinho impulsivamente, hipnotizada pelo seu olhar dourado.

Ele aceita a carícia e me cheira. Sua rendição a mim é tão inesperada que seus companheiros começam a uivar. Desviando minha atenção para o acampamento, vejo todos os lupinos presentes com um dos joelhos dobrados e o outro contra o chão, suas faces se voltam ao solo em sinal de reverência e subordinação.

Meu coração palpita com a situação que se desenha ao meu redor e me afasto rapidamente do animal, causando-lhe certo sobressalto. Rurik caminha até nós e o que seus lábios proferem faz o meu corpo tremer.

-Olá, Magnus. 

Olá, pessoas! Desculpem pela demora. Aqui está mais um capítulo novinho! 

Provavelmente, daqui para frente não vou conseguir manter  a postagem semanal porque estou com um sério problema de tempo para escrever. Porém, vou me esmerar ao máximo para cumprir essa meta e voltar a responder a todos os comentários. 

Espero que gostem do capítulo. Um beijão!

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