CAPÍTULO DOIS
A filha perfeita
"Cada qual sabe amar a seu modo; o modo pouco importa; o essencial é que saiba amar." — Ressurreição, Machado de Assis.
Meu telefone tocou, corri para atender...
Número estranho.
Será que era ele?
— Alô? — atendi apreensiva.
— Central de atendimento Grupo Gian, gostaria de falar com Dulce? — falou a atendente do outro lado da linha.
— Não tem ninguém com esse nome! — gritei ludibriada e desliguei.
Tentei voltar para a minha leitura.
Passei várias páginas e não prestei atenção em nenhuma, minha mente sempre voltava para aquela cafeteria.
Olhei mais uma vez para o meu celular.
Cinco dias...
Sem ligação, mensagem ou qualquer tipo de contato.
Será que ele tem rede social?
Peguei novamente meu celular e entrei no Facebook em busca de seu perfil, apertei a barra buscar e digitei teu nome: Vitor Fontela.
Ao entrar em seu perfil notei o motivo dele não ter entrado em contato comigo, viajou com os amigos para alguma cidade no interior. Pelas fotos em que ele foi marcado, identifiquei rápido Vitor nas fotos, sempre segurando alguma cerveja na mão e olha só, ele fuma também.
Achei estranho esse outro lado dele, não combina em nada com o rapaz elegante e educado que conheci aquele dia no campus.
Chateada, sai da rede social e resolvi fazer a janta, daqui a pouco papai estará em casa e não tem nada pronto ainda.
Era bom demais para ser verdade...
É claro que aquele dia ele estava querendo apenas uma companhia, provavelmente achou que eu faria muito mais que uma presença para um café. Tenho certeza de que encontrou outra pessoa mais interessante do que eu.
Enquanto lavava a louça que sujeito no preparo da comida, papai chegou.
— O cheiro está maravilhoso, minha princesa — ele entrou na cozinha e veio me cumprimentar com um abraço como sempre fez.
— E hoje nem estou caprichando — brinquei.
— Não tem uma comida que você faça que não fique uma delícia — ele comentou com compaixão — Vou tomar um banho e já volto para jantarmos juntos.
Enquanto eu arrumava a bagunça que fiz na cozinha em sua espera, minha irmã chegou em casa.
— Nossa, estou sentindo o cheiro lá da rua — Anne comentou.
— É apenas uma carne com legumes, nada de mais.
— Poderia ser só um ovo frito, estaria delicioso de qualquer forma.
Apenas agradeci seu elogio e perguntei sobre o seu dia.
Anne não era tão preocupada com os estudos, passou no ensino médio com notas razoáveis para não ficar retida e não quis ingressar em uma faculdade. Como papai conhece muitas pessoas, por ser um homem muito comunicativo, pediu auxílio a um amigo para conseguir um emprego em sua empresa para minha irmã. E ela, como é uma pessoa conformada com o que já tem, não pensa em fazer mais nada além de trabalhar lá e gastar seu dinheiro com coisas inúteis.
Papai não tenta controlar tanto a vida dela como tenta com a minha, tudo bem, eu permito isso e Anne já luta mais por sua independência. Mas me chateia como somos tratadas com diferença. Enquanto tenho que ser a filha perfeita, ela é ainda jovem e não sabe ainda o que quer.
Arrumamos juntas a mesa e esperamos o papai para jantarmos.
A noite foi tranquila, conversamos e rimos bastante. Apesar de ser uma regra, sempre almoçamos e jantamos juntos.
— Alguma notícia sobre a entrevista? — papai perguntou.
— Não recebi nenhuma resposta, talvez eles nem tenham gostado tanto assim de mim. Mas não vou ficar parada esperando, já mandei meu currículo para outras vagas — comentei.
— Tenho certeza de que você conseguiu essa vaga, só precisa esperar — disse papai otimista.
Gostaria de acreditar nisso, pois trabalhar na editora Timblado é um sonho desde o dia que iniciei meu curso. Li todos os livros do catálogo e isso impressionou a entrevistadora.
A noite avançava, e enquanto recolhíamos a mesa após o jantar, eu não conseguia ignorar a sensação de vazio deixada por Vitor. O celular permanecia mudo, sem sinal de qualquer mensagem ou chamada. Com o semblante entristecido, subi as escadas, deixando Anne e papai na sala com a desculpa que estava trabalhando em um novo projeto pessoal.
No meu quarto, a solidão era acompanhada pelo silêncio que pairava entre as quatro paredes. Encarei o celular por alguns instantes, como se, ao fitá-lo, pudesse fazer aparecer alguma notificação de Vitor. Mas o visor permanecia impassível.
Decidi navegar pelas redes sociais novamente e fuçar mais afundo a vida do Vitor. Ao buscar seu perfil no Facebook, deparei-me com mais imagens dele na festa, cercado por amigos, segurando cervejas e mais uma foto com um cigarro entre os dedos. O Vitor que conheci na cafeteria veio em minha mente a imagem do cavalheiro elegante destoava com aquele que estava na tela do meu celular.
A discrepância entre os dois lados de Vitor gerou uma mistura de emoções em mim. Sentimentos de decepção e confusão competiam pela minha atenção. Será que ele escondeu esse lado propositalmente? Teria eu sido vítima de uma encenação cuidadosamente elaborada?
Chateada com a descoberta, fechei o aplicativo e me concentrei em outras atividades para afastar os pensamentos negativos. Decidi fazer uma bebida para me aquecer. A cozinha ainda guardava os aromas do jantar, e decidi preparar um chá, sendo uma bebida que aquece o coração e ajuda a curar a tristeza, como mamãe falava e isso só me fez sentir ainda mais saudades dela...
Enquanto a água ferveu, meus pensamentos vagaram tantos pensamentos que eu não sei como consegui pensar tantas coisas ao mesmo tempo, e lá estava eu me martirizando de novo e ponderando sobre a entrevista na Timblado. O silêncio da resposta pairava sobre mim como uma sombra, e a incerteza sobre o meu futuro profissional se misturava à turbulência da vida amorosa, que me fez pensar no motivo que me fez ficar encantada por um homem bonito que só conversou comigo em uma cafeteria.
Por que fiquei tão afetada com a falta de contato?
Nem deu tempo de sentir algo por ele.
Perdida em turbilhões de devaneios, meus olhos se fixaram na janela, perdidos em algum ponto distante. Notei um vulto rápido, uma sombra que atravessou a sala em direção à porta de saída. Curiosidade me fez largar a xícara na mesa e me dirigir para a porta, questionando o que poderia ser tão urgente a ponto de Anne sair tão apressada e discretamente.
A porta rangeu levemente ao abrir, e me deparei com Anne, vestida de maneira impecável como se estivesse prestes a sair para um evento importante. Seus olhos se arregalaram, surpresa por ser flagrada em sua fuga.
— Anne, aonde você está indo? — minha voz saiu em um sussurro.
Ela pareceu se encolher por um momento, antes de suspirar e se render à verdade.
— Não faz barulho, vai acordar o papai — ela sussurrou.
— Você fala como se essa porta não fizesse barulho suficiente — suspirei entediada com mais uma vez ajudando minha irmã a fugir no meio da noite — Tente voltar antes que ele acorde.
— Obrigada — ela me abraçou — Conheci alguém. Mas você sabe como o pai é. Não aceitaria bem, então resolvi sair sem que ele soubesse.
— Não é mais um perdido na vida querendo viver de criptomoedas, não é?
Ela riu.
— Não, ele trabalha com internet.
— Tecnologia da Informação?
— Não, alguma coisa com trabalhar em casa com o celular e ficar enviando e-mail, não entendi bem, mas é isso.
— Realmente, um perdido e papai não vai ficar feliz.
— Por isso preciso de sua ajuda para cobrir minha ausência. — A confissão dela carregava um misto de medo e empolgação.
Eu apenas assenti.
Compreendendo a situação única em que Anne vivia a vida do jeito dela, em que a busca pela própria felicidade se chocava com as expectativas do pai autoritário. Era um lembrete vívido de quão diferentes éramos, ela, ousada e disposta a viver, enquanto eu, mergulhada em ser a filha perfeita.
Ao fechar a porta novamente, retornei à cozinha, onde o chá já estava morno. Minha mente, agora, absorvia o contraste entre nós duas. Anne, com sua juventude vibrante, correndo em busca de experiências e paixões, e eu, contida, ponderando sobre a vida monótona e chata que levava.
Aquela situação me levou a questionar minhas próprias escolhas. Será que eu deveria viver mais? Meu histórico com relacionamentos era mínimo, um breve namoro do ensino médio que nunca foi além de beijos inocentes.
A falta de experiência me tornaria uma velha de 40 anos, virgem e que ainda mora com o pai.
Deitada em minha cama, as dúvidas ainda persistiam, e eu me via pensando qual é o gosto da liberdade... Poder fazer o que realmente gostaria sem medo de ser julgada e criticada pelo pai.
Preciso urgentemente de um emprego e sair de casa.
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