◀9▶
Depois que Suna saiu do banho, me encontrou à beira de colapso nervoso. Ela sentou-se ao meu lado e começou a conversar sobre nossas vidas antes daquele lugar para me distrair. Acabei descobrindo três coisas muito importantes sobre minha colega de quarto. A primeira é que ela era muito inteligente, além do português e do japonês, ela era fluente em outros cinco idiomas.
— Disseram que minha memória tem a ver com o vírus. Ele melhorou o desempenho dos meus neurônios — explicou ela, encarando minha cara de boba.
A segunda coisa era que ela tinha sido capturada muito cedo, aos quatro anos. E desde então passou por quatro Pirâmides de Cúpulas diferentes antes de parar ali: a dos EUA, Japão, Europa e Alemanha, todas tão secretas quanto a do Brasil. Todo mundo queria saber como ela “funcionava”. Ninguém nunca descobriu.
A terceira e mais importante: ela não gostava de falar sobre o que o vírus M fez com ela, sobre sua imortalidade parcial. Tudo que consegui tirar dela foi o que os pesquisadores teorizavam sobre como o vírus a modificou.
— Eles acham que minha mãe foi infectada enquanto estava gravida e o vírus foi para o genoma dela e foi transferido para o feto — disse ela olhando para o nada. Aquilo não explicava muita coisa além de Suna ser uma guerreira antes mesmo de nascer para sobreviver ao vírus ainda no útero, mas teorias era tudo que tínhamos para explicar como aquele invasor invisível agia.
Quando foi a minha vez de falar sobre mim, Suna fez dezenas de perguntas sobre minha vida luxuosa como filha de um físico famoso e mago da nano-robótica. Fiquei surpresa quando ela me disse que já tinha me visto dando uma entrevista para um programa de TV depois que saí em uma revista sobre jovens cientistas – o que, definitivamente eu não era. Na época eu tinha acabado de ser aceita na faculdade pelo meu projeto com nano-células, a maior parte teórica, resultado do meu esforço em alcançar meu pai. Contei pra ela sobre minhas viagens, sobre hotéis caros e festas onde eu fazia muita idiotice. Quando acabei, me senti a garota mais fútil do mundo, uma patricinha, como a garota do corredor havia me chamado. Ela, entretanto, parecia deslumbrada com meu estilo de vida corrido. Meu antigo estilo de vida.
— E seu pai? — indagou ela, curiosa. — O que ele acha de você? Como ele é?
Entrelacei os dedos e os apertei, fazendo com que as articulações estalassem.
— Bom, apesar do que todo mundo acha, não o conheço melhor do que qualquer outra pessoa. O Dr. Carlos Luz de Castro sempre foi um homem muito ocupado. Desde de pequena vivi cercada por babás e mordomos que cuidavam de mim e eu via meu pai apenas em uma ou outra festa de aniversário ou nas comemorações de fim de ano quando ele me enchia de presentes caros e nenhum abraço, depois sumia até o ano seguinte, fazendo o sacrifício de me ligar a cada dois meses para fingir que ainda se preocupava comigo. Até que eu completei dezessete anos e entrei para a faculdade de nano-robótica. Ele então me comprou uma mansão ultramoderna com um carro extravagante na garagem e uma mesada que eu nem sabia com o que gastar. — Parei e encarei ela que me fitava de volta em silêncio. — A filha do gênio, era assim que me chamavam na faculdade. Não importava o que eu fazia, sempre era lembrada pelos feitos do meu pai. Você tem ideia de como isso é frustrante?
— Não diga isso, Anabel — falou Suna e depois suspirou. — Você deveria estar orgulhosa, a invenção dele salvou milhões de vidas.
— Desculpa por ser tão egoísta a ponto de querer ter tido um pai normal ao invés do grande herói da humanidade. Ele pelo menos poderia ter tentado fazer as duas coisas! — me irritei e soquei a mesa. — Será que salvar o mundo ocupava tanto do tempo dele para não ter conseguido se quer voltar para casa à noite e perguntar como foi meu dia na escola? Nem uma única vez?
— Pelo menos ele ainda está vivo e você ainda pode dizer isso a ele — retrucou Suna. Me encolhi de vergonha. Eu estava reclamando da minha vida dramática cercada de luxo e do meu pai famoso pouco interessado na família para uma garota que nem se quer tinha visto o rosto dos pais que haviam sido vítimas do vírus M logo que ela nasceu. Patricinha fútil! Xinguei a mim mesma. — E sua mãe? — Sunahara quis saber.
— Também morreu quando eu era bebê — expliquei dividindo a minha dor.
— Foi o vírus?
— Não. Câncer. — Engoli em seco, minha boca estava amarga. — Ela resistiu até eu nascer...
— Sinto muito — murmurou ela, me fitando com um olhar compreensível.
Me inclinei sobre a mesa e praticamente colei meu rosto no dela, ela se encostou na cadeira de ferro e fez uma careta.
— O que foi?
— Quero ver seus olhos mais de perto — disse, sorrindo. Ela deu de ombros e voltou para posição de antes, a ponta do nariz dela chegou a tocar o meu. Suna arregalou os olhos de forma cômica e exagerada.
— Tá vendo?
— Nossa — exclamei, impressionada com o violeta cintilante da íris dela. — Parece que seus olhos foram feitos com pedras preciosas.
Ela riu e afastou de novo.
— Uau! Isso foi poético.
— É que... eu nunca tinha visto nada assim. — Ela continuou sorrindo e levantou a camisa para me deixar ver o local onde tinha levado o tiro. Não havia qualquer sinal do ferimento, nem mesmo uma única marca avermelhada. Ela bebia água a todo momento desde que voltamos da sala de paredes escuras, segundo ela, precisava repor líquidos. Fazia sentido a julgar a quantidade de sangue que ela perdeu.
— Você também nunca tinha visto alguém levar um tiro na cabeça e sair andando, não é? — brincou ela. — Vai se acostumando, esse lugar é cheio de gente estranha.
Não duvidei dela, era só meu segundo dia ali e eu já havia entendido que coisas normais eram raras.
— Eles sempre foram assim? Seus olhos sempre tiveram essa cor?
— Não. Quando eu era mais nova eles eram castanhos, começaram a mudar com doze anos. Com dezessete eles ficaram assim.
— E como você descobriu que... não podia morrer? — era outra tentativa de fazê-la falar um pouco sobre seu passado, mas ela desconversou e deu um bocejo alto, enquanto esticava os braços.
— Hora de dormir, Anabel — disse ela, levantando-se da mesa. — Estou exausta.
Não forcei a barra. Se ela não queria falar era porque tinha bons motivos. Tamborilei o dedo na mesa enquanto ela preparava a cama sobre a minha. Não estava com sono, embora meu corpo exigisse uma cama macia. O dia foi estressante e mesmo que eu não fosse dormir, queria pelo menos colocar a cabeça sobre o travesseiro e pensar. Pensar em como seria minha vida dali em diante.
Enquanto me deitava me intriguei com algo:
— Como você sabe que horas são? Não tem janelas aqui ou qualquer relógio. Como sabe que já é noite?
Ela se sentou no colchão e ficou balançando os pés pequenos como uma criança em um balanço.
— Quem disse que não tem janelas?
— Você disse que estamos no subsolo — retruquei.
Sem dizer mais nada, Suna saltou do alto do beliche e foi até a parede no fundo do quarto, deslizou o dedo em um botão luminoso e uma projeção em alta resolução surgiu nela, imitando uma janela que emoldurava um deserto de areia branquinha iluminada por uma lua cheia virtual. Plantas rasteiras e mirradas eram balançadas por uma brisa preguiçosa.
— Um deserto? — franzi a testa. — Escolheram um deserto como ambiente para uma janela virtual?
Ela deu de ombros de novo e voltou para a cama.
— É, acho que eles querem nos fazer sentir que estamos isolados ou coisa assim. E estamos mesmo. A imagem acompanha o horário normal da superfície para que nosso relógio biológico não enlouqueça. Eu sempre mantenho desligada, não faz diferença pra mim.
— Algum problema em deixar ligada esta noite? — Apesar daquela paisagem não ser real, era ampla e tinha movimento, mesmo que pouco. Aquilo me fez sentir menos enclausurada, uma falsa e pequena sensação de liberdade. Quase podia sentir o vento entrando no quarto e deixando o ar mais fresco.
— Problema nenhum, se faz você se sentir melhor... — respondeu Suna do colchão de cima. — Antes a projeção mostrava as florestas gigantes do lado de fora da Cúpula, mas mudaram depois que uma garota se matou depois de ver alguma coisa estranha na imagem. Ela era telecinética aliás, minha antiga colega de quarto.
Me arrepiei dos pés a cabeça.
— Como ela se matou aqui dentro? — Não sei por que perguntei aquilo, me pareceu uma informação importante...
— Ela forçou o bloqueador até o cérebro dela derreter — Suna explicou sem a menor sensibilidade. — Eles atualizaram os bloqueadores depois disso, agora você apaga antes de morrer.
Fiquei calada, imaginando a garota se debatendo no chão enquanto seu cérebro escorria pelos ouvidos e nariz. Tive muito mais medo daquela coisa presa na minha cabeça. Era uma bomba-relógio. Me perguntei quanto tempo eu levaria até ficar tão louca quanto a última colega de Suna, vendo coisas nas paredes e procurando um jeito rápido de acabar com minha vida.
O rosto fino de Sunahara surgiu na beirada do colchão sobre mim e eu me assustei, perdida em pensamentos horríveis. Ela estava praticamente de ponta-cabeça me fitando com os olhos estreitos, seu cabelo negro escorrendo sobre mim como se a noite do deserto tivesse tomado forma.
— Sabe por que te contei isso? — indagou. Eu balancei a cabeça em negativa. — Porque não quero que termine como ela e como outros que passaram por aqui. Agarra-se a sua vida, Anabel, não vamos deixar que eles vençam.
O rosto dela sumiu de novo e ouvi os cobertores farfalhando.
— Agora tente dormir, as luzes vão ser apagadas daqui a pouco.
Fiquei de olhos abertos por um tempo, pensando no que ela tinha dito. Agarra-se a sua vida... Ela estava certa, era só meu segundo dia e a ideia do suicídio já passava pela minha cabeça. Eu não podia desistir tão fácil, talvez conseguisse fugir um dia. Eu precisava pelo menos tentar.
As luzes no teto e nas paredes foram diminuindo até o quarto mergulhar na escuridão quase total. Sobrou apenas a janela virtual, exibindo a desolada paisagem do deserto sem vida. Fixei meu olhar ali até cair em um sono conturbado e cheio de pesadelos sobre gente voltando à vida e corpos banhados em sangue.
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