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Agora falarei um pouco sobre o carrasco da humanidade, o vírus M, vírus Mórfico, Morfeu, ou só M. Ele tem vários nomes, mas não importa qual você escolha usar, todos carregam duas possibilidades: morte ou mudança. Pelo menos para 97,2% da humanidade.

Antes os cientistas apostavam no vírus da gripe para ser o protagonista de uma segunda era das trevas, mas o vilão surgiu do nada e foi bem pior. Ainda me lembro da minha professora de biologia do colegial explicando sobre o vírus: Morfeu, o grande deus dos sonhos, segundo a mitologia grega, tem o poder mudar sua forma, e o vírus que recebe seu nome tem o poder de mudar qualquer coisa... até um planeta inteiro. A Sra. Do Carmo sempre fora um pouco apocalíptica, mas ela estava certa. O vírus mórfico transformou o mundo inteiro, de uma forma que a ciência não era capaz de explicar. E ainda não pode.

Contaminou o ar, a água, o solo. Cada forma de vida conhecida sofreu o que os especialistas chamaram de SSM, sigla em inglês para Super Mutação Seletiva. O nome parece complicado, mas o conceito é bem simples. Em resumo, o vírus infecta um coelho muda seus genes e os filhotes desse coelho passam a nascer com três chifres (só um exemplo, não sou bióloga, mas até onde sei não existe um mórfico coelho com chifres). Se os três chifres forem úteis para os novos coelhinhos, ótimo, a mutação segue adiante. Por outro lado, se os chifres atrapalharem o desenvolvimento deles, eles morrem e essa mutação para por ali. Assim, em tempo recorde, o vírus criou selecionou milhares de novas espécies de animais e plantas ao redor de planeta e também extinguiu outras.

No caso dos humanos a coisa é mais séria, já que nosso sistema imunológico ataca o vírus M de forma agressiva. O resultado é uma morte dolorosa nojenta.

Sabendo disso, quando o diretor de segurança disse que eu estava infectada, eu quase ri. Mordi o lábio para não fazer isso e apenas o desafiei:

— Se eu estivesse com o M não acha que eu estaria vomitando meus órgãos agora?

O Diretor, ainda confortavelmente acomodado em sua cadeira acolchoada, fez um gesto para o homem de terno prata, Vladimir, de pé atrás dele e ele lhe passou um projetor como um mordomo solícito. Com um toque de seu dedo gordo na tela, uma parte do vidro que nos separava passou a exibir uma imagem ampliada que eu já havia visto em sites médicos e nos informes da Cúpula. Era o vírus, com seu formato de estrela polvilhando os neurônios da imagem. Me remexi desconfortável na cadeira.

— Não está no seu sangue, querida. Está no seu cérebro — informou o Diretor em tom professoral.  — Nunca se perguntou como consegue fazer o que faz? Nunca ficou curiosa em saber como consegue brincar com a gravidade à sua volta? — Ele esticou o braço para a imagem no vidro. — Essa é a resposta. O que você está vendo é uma amostra que coletamos do seu tecido cerebral assim que chegou aqui.

Lembrei-me do rosto do médico de óculos inclinado sobre minha cabeça e institivamente, levei a mão ao bloqueador na minha têmpora.

— Não se assuste. Não infectamos você aqui. Está no seu genoma. Você nasceu com ele. A hipótese mais provável é que o herdou da sua mãe.

Do que ele estava falando? Minha mãe morreu devido às complicações de um câncer no pulmão. Descobriram a doença quando ela estava grávida de mim, ela passou praticamente toda a gestação em um hospital.

Vladimir me encarava tão sério que quase desejei por aquela personalidade debochada que ele me mostrou quando invadiu minha casa. O diretor se inclinou sobre a mesa e cadeira rangeu de novo.

— Você é uma garota esperta, já deve saber por que está aqui. Ou a Ritsuko deve ter contado, não é mesmo, senhorita De Castro?

Ela contara, mas ainda me recusava a acreditar.

— Nós vimos o que você fez naquela festa. Você é perigosa para nossa sociedade. Está carregando o vírus mais mortal que a humanidade já viu. Por outro lado, você pode ajudar a lutar contra ele.

— Essa amostra pode ser de qualquer um — eu o desafiei de novo. — Pode ser de décadas atrás. Ninguém é infectado desde que as barreiras foram erguidas.

— Está correto. Mas você deve saber que o vírus mórfico é um mistério total, mesmo depois de tanto tempo. Nunca encontramos uma cura ou tratamento eficaz, nem entendemos como ele é capaz de interagir com qualquer tipo de célula e remodelar até mesmo DNA. Há alguns anos ele nos surpreendeu novamente. Descobrimos que o uma forma diferente do vírus simplesmente surgiu atrelado ao código genético de pessoas dentro da Cúpula, pessoas que nunca tiveram qualquer contato com a atmosfera exterior.

Isso se quer era possível? Um vírus não brota do nada nas pessoas. Na verdade, quando se trata da aberração microscópica que é o M, tudo era possível. O diretor continuou a falar:

— Imagine a crise. O que faríamos se houvesse uma pandemia dentro das Cúpulas? Outras Cúpulas também relataram a mesma situação assustadora. Japão, Estados Unidos, Índia. Mas logo descobrimos que as pessoas infectadas não adoeciam e não transmitiam o vírus. Como já nascem com ele, o sistema imunológico não o ataca e dá tempo para que a SSM possa acontecer. Essas pessoas, então, desenvolvem habilidades que mudaram os padrões do que era possível para humanos.

Ele não precisou dizer mais nada. Quando eu era mais nova, me comparava com os mórficos monstruosos fora da Cúpula, era só uma brincadeira que eu inventava para explicar aquela maluquice de poder levitar coisas e esmagá-las. Quem diria que eu estava certa? Eu era um tipo novo de mórfico humano. O Diretor continuou com sua explicação elaborada, com as especulações de cientistas de todas as áreas que levavam a lugar nenhum. Eu, entretanto, não ouvia, estava distante demais para reagir a tudo aquilo. Até que ele mencionou algo que me trouxe de volta:

— As modificações que o vírus causa em humanos são, na maioria das vezes, no encéfalo. Porém tivemos conhecimento de uma única jovem que apresentou a mutação em alto nível de todas as células do corpo e mesmo nela não conseguimos qualquer avanço nas pesquisas.

— Eu não acredito em você — neguei. — Isso não faz sentido nenhum.

O diretor e homem de terno se entreolharam, planejando algo. Ele continuou sua explicação:

— O bloqueador na sua cabeça libera uma toxina sintética que inibe as células infectadas do seu cérebro. Não é uma cura, mas, em casos como o seu, atrapalhamos o vírus de agir por alguns segundos. Com isso conseguimos impedir que os internos ativem suas habilidades. Algo para proteger vocês, acredite. Mantê-los aqui é melhor para todo mundo. Apesar de saber que o vírus em vocês não é contagioso, não podemos arriscar. Basta uma nova mutação e o inferno dentro das Cúpulas começa. Não quer isso, quer, senhorita De Castro?

Uma droga injetada diretamente no meu cérebro. Que tipo de vida seria aquela? Servindo de rato de laboratório para algo que eu sabia que não daria em nada. Durante todos aqueles anos, ninguém chegou nem perto de criar uma vacina. Desejei que aquele vidro não estivesse ali só para estrangular aqueles dois e escapar de algum jeito.

— Ninguém escapa daqui Anabel. — O aviso do tal Vladimir foi firme e direto.

— Ela pensou nisso? — indagou o diretor, se contorcendo na cadeira para ver o rosto dele.

— Passou por sua cabeça, apenas por um segundo — Vladimir respondeu, ainda me encarando.

Era verdade o que Sunahara disse, ele sabia no que eu pensava. Só então ele inclinou a cabeça levemente e me deixou ver o objeto brilhante em sua têmpora, antes oculto pelo cabelo lambido de gel. Um bloqueador.

  

— Que droga vocês querem de mim? —  Me esforcei para não gritar e atrair o guarda no corredor ansioso para atirar em mim com aquela arma atordoante.

— Queremos que coopere — o diretor ficou de pé e se aproximou do vidro, bem ao lado da imagem do vírus M nos meus neurônios. — Vamos treiná-la e mandá-la para buscar espécimes que ajudaram na guerra contra o vírus.  Queremos criar, a partir de vocês, humanos melhores para sobreviver fora das Cúpulas e repovoar o planeta. Esse não é um bom motivo para dar sua vida? Ou prefere sair daqui e continuar ferindo pessoas em suas bebedeiras?

Eu deveria ter sido inundada pela raiva, deveria ter xingado aquele homem nojento de todos os palavrões que eu conhecia, mas não pude. Ele estava certo. O que impediria que eu matasse pessoas por acidente? Cheguei bem perto disso naquela festa. E quanto ao vírus mórfico? Se ele continuava mudando e se adaptando, poderia muito bem evoluir para uma nova cepa mais contagiosa e letal.

Me deixei cair novamente na cadeira gelada, cobrindo meu rosto com as mãos. Desde o começo achei que tinha sido capturada apenas por causa da minha habilidade estranha, mas eu finalmente entendi: estava ali para evitar outras milhares de mortes que eu poderia causar.

— Meu pai sabe que estou aqui? — perguntei, a voz abafada pelas minhas mãos.

— Seu pai tem outras preocupações no momento. —  Foi tudo que ele respondeu.

A julgar pelo posto que meu pai ocupava no governo, duvidei que ele não tivesse conhecimento daquele lugar e do que faziam nele. Será que ele concordou quando decidiram me trancar ali ou simplesmente teve que aceitar ordens de gente ainda mais poderosa?

— Podemos contar com sua cooperação, senhorita De Castro?

Lentamente tirei as mãos do rosto, me levantei e fiquei bem perto do vidro, frente a frente com o diretor. Ergui o dedo do meio bem na cara dele.

— Vai à merda — grunhi entredentes.  — Vão à merda, vocês dois!

O diretor me encarou com uma expressão de desprezo, como se eu fosse uma paciente terminal que não aceitava o diagnóstico definitivo. Com um suspiro ele se virou e cochichou com Vladimir:

— Coloquem a senhorita Ritsuko na sala de testes. Já que ela se recusa a entender, vamos mostrar a ela. — Falou em alto e bom som, para que eu ouvisse o tom de ameaça em sua voz.

— Senhor, não acho que seja necessário, vamos dar um tempo a ela — Vladimir retrucou, mas o diretor não cedeu.

— Não temos tempo, apenas obedeça!

Com isso Vladimir saiu, contrariado, por uma porta atrás da mesa. Não fazia ideia do que se tratava aquilo, algo me dizia que não era bom. O guarda que me esperava no corredor entrou depois de um tempo e mandou que eu o seguisse de volta para o elevador. Achei que ele fosse me levar para meu quarto/cela, no entanto, o console mostrava que havíamos parado no andar #3.

Ali eu vi menos gente, menos cientistas, mas muitos guardas armados. As paredes eram escuras e as portas enormes pelas quais passávamos pareciam ser capazes de suportar a explosão de um míssil. Eram duplamente reforçadas. Que tipo de coisa eles faziam ali para precisarem de tanta contenção?

Vladimir aguardava ao lado de uma dessas muralhas de última geração, com seu terno perfeitamente alinhado, o bloqueador dele brilhava sob a iluminação fria do teto. Ele mantinha uma expressão de desagrado, olhando para mim.

— Espero que esteja satisfeita, Anabel. Eu avisei para cooperar — disse ele assim que me aproximei, foi quando pude ver a arma em sua mão. E não era a pistola branca de atordoamento, era uma pistola de verdade com munição letal.

— O que vai fazer? — perguntei sem conseguir esconder o medo em minha voz.

Vladimir passou o dedo pelo console e porta abriu-se em camadas para que eu visse a sala por atrás. Era ampla e retangular. O piso e as paredes eram escuros como carvão, iluminados por seis fileiras de lâmpadas indiretas no teto. Uma das paredes era parcialmente ocupada pelo mesmo vidro grosso da sala onde vi o diretor em uma transmissão de vídeo do lugar onde estive há poucos minutos. O que mais me assustou, entretanto, foi ver Sunahara de pé bem no centro, os braços apertados ao lado do corpo. O guarda, Vladimir e eu entramos.

— Suna, o que vão fazer? — indaguei desesperada, enquanto me posicionavam bem na frente da garota.

Ela deu de ombros e suspirou.

— O que sempre fazem aqui, Anabel. — Apesar da situação ela estava calma e evitava olhar nos meus olhos. — Sinto muito que tenha que ver isso, mas eu avisei para você cooperar com eles.

Ver o quê? Quis perguntar. Vladimir se adiantou em ficar ao lado de Suna com a arma destravada. Meu coração foi parar na boca. Eles não iam matá-la apenas para me punir pelo meu comportamento, iam?

O rosto rechonchudo do diretor, materializado no vidro da parede, apenas assistia a tudo pelo projetor.

— Espero que com isso entenda com o que estamos lidando aqui, senhorita De Castro. Poderíamos ter explicado isso apenas nas suas aulas, mas já percebi que você é cabeça dura como seu pai, então vamos mostrar na prática que não estamos dispostos a joguinhos. Vladimir, vá em frente.

Sem hesitar, Vladimir ergueu o braço e colou a arma no peito de Suna. Minhas pernas bambearam.

— Espera! Não faz isso. Não precisa matar ela por minha causa! —  Dei um passo na direção de Suna, mas o guarda colocou seus músculos de aço em ação e me segurou, prendendo meus braços nas costas.  — Não faz isso. Eu vou cooperar. Eu vou cooperar!

Me esgoelei e me debati. Suna apertou os olhos e se encolheu um pouco, preparando-se para o tiro. E então o barulho agudo de um disparo. Depois outro. Vi sangue salpicar o chão negro e a flores vermelhas que brotaram nas costas dela quando a balas a atravessaram. Ela desabou em câmera lenta e seu corpo encontrou o piso com barulho que jamais serei capaz de esquecer.

Eu fiquei em choque e congelei com o olhar arregalado fitando a poça de sangue sob meus pés ficando cada vez maior. Só então eu conseguir gritar.

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