◀33▶
A porta da câmara de descontaminação chiou, deixando o ar do lado de fora entrar aos poucos e então começou a se abrir. Era um grossa camada de aço curvado que se movia lentamente com a força das válvulas. O primeiro filete de luz se espremeu pela brecha crescente. Luz de um sol de verdade. Dei um passo para frente, ansiosa para ver o lado de fora, mas um dos guardas colados em mim me puxou pelo braço.
— Você só anda quando nós andarmos — ordenou, sua voz desgostosa nos fones do meu capacete. Ninguém além de mim queria estar ali. A maioria das pessoas não se importava com o que tinha do lado de fora das Cúpulas o mundinho delas era dentro das barreiras. Por muito temo foi assim para mim também.
Finquei meus pés no lugar e contive o ímpeto de sair correndo pela fresta da porta larga o suficiente para que eu pudesse me espremer por ela. O interior da câmara era escuro comparado com o lado de fora e a luz que entrava ofuscava meus olhos. A porta mal se abriu completamente e eu mal conseguia enxergar, quando a equipe começou a sair e eu fui levada junta.
Mesmo com o traje de proteção pude sentir o calor do dia, foi revigorante. Meus olhos ainda estavam semicerrados por causa da diferença de luminosidade. Senti a mão de alguém no meu ombro – possivelmente da doutora –, me guiando gentilmente alguns passos adiante. E quando minha vista finalmente se ajustou, eu vi. A Floresta Mórfica.
Estávamos sob um amplo pátio cercado por altos muros de aço e concreto, mas que pareciam miniaturas comparados com as colossais árvores mórficas que estavam além dele. Plantas mudadas pelo vírus, que cresceram tanto a ponto de se tornarem quase indestrutíveis. Acoplados em plataformas próximas às colunas, jaziam alguns guardiões desativados, máquinas com seis a dez metros de altura, antigamente operadas por pilotos para defender as cidades. Ninguém mais as usa. Não são mais necessárias desde a criação das barreiras, além disso o custo para mantê-las funcionando é alto. Apenas alguns drones de vigilância patrulhavam os limites do muro
Ergui a cabeça para ver o céu. Azul. Um azul tão lindo, com algumas poucas nuvens o manchando de branco. A Dra. Arlene estava certa, era um lindo dia. Depois olhei para os lados. Algumas protuberâncias de metal erguiam-se logo a minha esquerda. Eram grandes o suficiente para guardar três Guardiões.
— São os hangares — Arlene me explicou ao me ver curiosa. — Os helis saem e entram dali.
O helis do diretor usava aqueles hangares para pousar quando ele decidia nos fazer uma de suas visitas surpresa. Foi então que me lembrei de algo que ainda não tinha visto até então. Olhei para o alto novamente, em todas as direções. Fiquei na ponta dos pés na ridícula tentativa de ver por cima dos muros e das árvores gigantes. Mas o que eu procurava deveria estar mais alto que tudo isso, deveria estar visível a quilômetros. Não estava lá. Me voltei para a doutora:
— Onde está a Barreira?
A médica me olhou através do vidro do capacete redondo e moveu os ombros de leve em um gesto defensivo, talvez.
— Está longe, Anabel.
— Não estamos na Cúpula?
Ela negou com a cabeça.
Todo aquele tempo eu acreditei que a Pirâmide fora construída em alguma área isolada dentro da Cúpula, ou no subterrâneo de algum prédio protegido do governo. Fui ingênua. O trabalho do Diretor era encontrar e retirar qualquer ameaça do vírus M de dentro da Cúpula, isso incluía as pessoas que o carregavam. Ele jamais manteria um centro de pesquisas mórficas dentro da barreira. Isso só ficou obvio quando eu sai e vi o quanto estava longe de casa. Longe o bastante para o brilho da Cúpula não ser visível. O esforço e o dinheiro necessário para construir aquele lugar no meio de uma floresta mórfica fora astronômico, sem dúvidas. Não era surpresa que o Diretor fosse tão dependente de investidores.
A equipe me levou para mais próximo da muralha. Por um momento achei que sairíamos para além dela e nos embrenharíamos na floresta, mas eles pararam próximo de um Guardião esquecido e começaram a montar o equipamento que trouxeram. Aquelas coisas não tinham a ver comigo, serviam apenas para a pesquisa alternativa que fariam. Para mim, foi suficiente uma única maleta. Um dos médicos me fez sentar na ponta do pé do Guardião enquanto ligava os sensores do equipamento nos encaixes do pulso do meu traje. Arlene estava do meu lado com um projetor nas mãos verificando meus sinais vitais. Mas eu não queria ver aquela tela sem-graça.
Ergui a cabeça para o enorme robô que se erguia sobre mim. Não estava enferrujado, mas já acumulava as marcas do tempo. O punhos fechados ainda pareciam capazes de se mover, mas as pernas eram como as de uma estátua, entalhadas no aço naquela posição e incapazes de caminhar. Um colosso que agora serve com totem para lembrar de uma época em que a humanidade estava desesperada para achar uma solução para garantir sua sobrevivência.
— Por que trouxeram essas máquinas para cá? — perguntei para a doutora. Ela olhou rápido para mim depois para o gigante de aço.
— Esses Guardiões patrulhavam a fronteira da Cúpula — respondeu. — Mas com a evolução da Barreira eles se tornaram obsoletos, então foram trazidos para cá, para guardar área enquanto o complexo era construído. Depois de tudo pronto foram deixados aí para o caso de um dia serem necessários, mas isso nunca aconteceu e estão aí até hoje. Não têm um semblante simpático não é?
Nunca tiveram. Quem os projetou não teve a menor intenção de fazê-los parecer amigáveis.
— Tudo pronto — o médico avisou e ficou de pé. A doutora o acompanhou.
— Muito bem. Anabel, querida, não vamos tirar seu capacete, tá? Tudo que faremos será apenas desligar o filtro para deixar o ar entrar. Vai ser desconfortável no começo, mas te prometo que será temporário.
Eu já estava nervosa o suficiente.
— Certo... e porque isso? É por causa do vírus?
— Não. O ar aqui fora tem uma concentração um pouco maior de oxigênio por causa das florestas mórficas. Seu corpo não está acostumado com isso. Pode ser que você tenha algumas alucinações devido a hiperoxigenação do cérebro carregado. Caso sua reação seja muito forte, religaremos o filtro. Vamos fazer isso com calma, ok?
— Ok. Mas... vou ver monstros? — tentei fazer aquilo soar como uma piada, só que acabou por me assustar mais. Desejei que Suna estivesse ali para aliviar o clima.
— Se ver, lembre-se que não são reais. Respire devagar e feche os olhos se ficar tonta. E você vai ficar tonta.
— Ótimo. Vamos acabar logo com isso.
O médico ficou do meu lado para o caso de eu desmaiar. A Dra. Arlene deu o comado no projetor e o filtro do meu capacete se abriu mais rápido do que eu gostaria. Eu prendi a respiração em um movimento involuntário. Passei minha vida toda aprendendo o quanto a atmosfera da Terra se tornou tóxica para os humanos, é natural que eu reagisse como se tivessem borrifado gás sarin no meu rosto. Os médicos não me apressaram, deixaram que eu tomasse coragem e esperaram até meu rosto ficar vermelho e eu ter que respirar. Quando o fiz, senti o frescor do ar puro invadindo meus pulmões. O cheiro era de vegetação virgem, um cheiro bom, natural.
Apesar da ótima sensação, respirei devagar como Arlene tinha instruído. Eu estava ficando inebriada e não sabia se o motivo era o ar infectado ou por ser a primeira vez que respirava qualquer coisa além do ar refrigerado e artificial da Pirâmide em meses.
— E então — a doutora se agachou diante de mim —, como se sente?
— Bem... eu acho.
Mas ela continuou olhando para o projetor, esperando. Eu me virei para olhar os guardas à minha volta, mais preocupados com algum mórfico ousado que poderia saltar a muralha para nos estraçalhar do que comigo. Os pesquisadores estavam debruçados sobre seus equipamentos de medição e coleta de amostras. Então tudo isso começou a girar. Primeiro devagar, depois tão rápido que tive que fechar os olhos.
— T-Tontura... — informei. Levei as mão à cabeça, mas elas foram detidas pelo capacete que eu tinha esquecido que estava ali.
— Vai passar — Arlene repetiu. — Está sentido dores? Na cabeça? No tórax?
— Não. Só tontura.
— Continue respirando. Se piorar avise e religamos o filtro.
— E-Eu dou conta.
Com a tontura eu podia lidar. Mas a dor... a dor veio e não foi gentil. Meu cérebro parecia estar fervilhando. Eu sabia que era o vírus agitado com a nova carga vinda de fora. Mas eu nada disse. Se reclamasse daquilo, Arlene poderia abortar tudo e me mandar de volta para dentro. Eu não podia deixar isso acontecer, não antes de falar com meu pai.
Entretanto, o sensor no meu pulso me denunciou e mandou um alerta para o projetor de Arlene. Ouvi um bipe e depois a voz dela.
— Há uma alta concentração de M no seu cérebro agora, Anabel. Tem certeza que não está doendo?
— Vamos continuar — gemi ainda de olhos fechados, mas logo os abri para provar que estava bem. O mundo tinha parado de girar e... — O quê? Como... Mamãe?
Ela estava ali, de pé atrás da doutora, sorrindo com uma trança curta escorrendo sobre ombro direito. O corpo esguio coberto pelo mesmo vestido rosa que vi em algumas fotos dela com papai. Ergui a mão para tocar seu rosto, mesmo com a luva senti a pele morna dela em meus dedos. O médico, entretanto, baixou meu braço com delicadeza.
— Não tem ninguém aí, Anabel, é uma alucinação.
Eu sabia que não era real. Era o meu cérebro reagindo à nova carga viral, me mostrando uma imagem tranquilizante talvez como mecanismo de defesa para ignorar a dor. Deu certo, eu esqueci a queimação.
— Você é uma menina forte, Aninha. — A voz dela era doce como a de um anjo. Ela falava como se eu ainda fosse o bebê que ela segurou nos braços antes de morrer. Só que isso mudou. Ela mudou. Sua pele ficou cinza como a de um cadáver, seus olhos injetados de sangue. Os dentes se ficaram pontudos como um de cão e asas negras cresceram das costas e taparam o sol. A voz passou a ser um áspera, raspando a língua enquanto ela falava. — Mas você vai morrer como eu morri! Monstro! Monstro!
Eu gritei e me debati para correr. Fui contida pelos braços do doutor e logo depois de dois guardas que pularam para me manter sentada. Ouvi um bipe, não sei se veio do meu bloqueador ameaçando explodir minha cabeça ou do projetor de Arlene, avisando que eu tinha ficado maluca.
— Ei, Anabel! — Arlene segurou as laterais do meu capacete. — Calma, não é real. Não é real!
— Ela está aqui. A minha mãe!
— Você está alucinando, Anabel. Não tem ninguém aqui além de nós.
Parei de me debater e olhei em volta. A coisa com asas não estava mais lá, mas eu ainda via algumas bolinhas coloridas pipocando no ar. Eu estava respirando muito rápido e o alarme do sensor não parava de apitar. Os pesquisadores mais afastados tinham parado o que estavam fazendo para assistir meu surto. Todos estavam prontos para correr caso eu acidentalmente começasse a esmagar coisas. Não deixei isso acontecer. Apertei minas mãos trêmulas contra as pernas e respirei fundo. Ou eu me controlava, ou acabaria morta ali mesmo.
Os guardas me soltaram, porém, mantiveram as armas bem perto, para um tiro rápido se necessário. O bipe cessou.
— Estou bem agora — garanti. — Achei que vi uma coisa.
— Seu nariz está sangrando. — Arlene avisou. A dor tinha voltado, com menos intensidade pelo menos. — Está tudo bem, já estamos terminando. Só mais alguns minutos e descemos para fazer uns exames. Consegue caminhar? Preciso que dê alguns passos. Pode ir com calma.
Não foi necessário um segundo pedido. Eu estava me sentindo sufocada cercada por aqueles guardas. Apesar da leve dor de cabeça, a tontura não tinha voltando então não foi difícil ficar de pé. Me apoiei em Arlene apenas para ficar mais longe dos homens armados. Felizmente, quando começamos a andar, nenhum deles nos acompanhou. Com aqueles muros enormes, eu não iria a lugar nenhum e ficar perto de mim não era exatamente a melhor escolha para qualquer um deles.
— Eu vi minha mãe — disse a Arlene quando já estávamos longe do Guardião onde estive sentada, um outro se erguia logo a minha frente. — Ela se transformou em uma criatura com asas e disse que eu ia morrer.
— Era apenas sua mente confusa.
— Vou assumir que isso foi meu subconsciente dando forma aos meus medos.
Arlene sorriu.
— Não sou psicóloga, mas se é isso que você acha...
— Eu tenho muito medo de morrer aqui.
— Eu sei. — Ela definitivamente não tinha nada melhor para dizer. — Meu trabalho é impedir que isso aconteça.
Enquanto conversava comigo, a todo momento ela olhava para o projetor. Sempre profissional, sempre cuidadosa.
— Não se arrepende de ter vindo para cá? — Minha pergunta a pegou de surpresa. Ela me encarou e depois olhou para o chão.
— Às vezes. Acho que ninguém sabia como seria antes de aceitar a missão.
— E se tivesse a chance de ir embora, você iria?
Era uma pergunta perigosa, eu sabia. A conversa era via rádio e estava sendo ouvida por todos na equipe e dentro do prédio também. Mas eu precisava saber o quanto Arlene era fiel ao Diretor e o quanto queria salvar vidas.
— Eu...
Ela começou, mas não terminou. Os fones chiaram antes de um som agudo tomar conta do sinal e então tudo apagou. As luzes de status do meu capacete e do de Arlene apagaram como se tivessem sido puxadas da tomada. Eu gelei. A doutora falava algo, gesticulando para o próprio capacete. Eu não ouvia nada. O radio fora desligado e eu sabia por quem. A voz que ouvi em seguida, vinha de muito longe, tomada por estática. Meu pai.
— Ana, está me ouvindo?
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