◀31▶
Os dias seguintes foram cinzas. Era como se Daniele tivesse deixado um vazio enorme naquele lugar. Mas não deixamos o luto nos fazer perder o foco em nosso objetivo de sair dali. Ainda mais depois do aviso de Vladimir que nossa liberdade não viria sem esforço. A notícia de que seríamos mandadas para muito longe logo em minha primeira caçada deixou Sunahara preocupada. Obviamente, quanto mais tempo passássemos lá fora, menores seriam nossas chances de voltar.
Só que nenhuma de nós tinha a intenção de voltar. Ou chegávamos ao tal refúgio ou morreríamos tentando.
Muita coisa mudou depois do acidente com Daniele. Não na rotina, mas no comportamento e no clima do lugar, principalmente em relação a Vladimir.
Ele se manteve afastado. Deu ordens aos guardas para não deixar nenhuma de nós sequer chegar perto da sala dele e eu raramente o via durante algum treinamento. Eu especulava que o motivo disso vinha do fato de que faltava um mês para a caçada e meu pai estava movendo as peças para a fuga. Vladimir não queria se envolver em conversinhas comigo e arriscar que o Diretor desconfiasse de algo. Por outro lado, ele pode ter se afastado porque percebeu que estava se envolvendo emocionalmente conosco. E quando parte do seu trabalho é ver pessoas morrendo, isso não é uma boa coisa.
Ninguém trocou a tela quebrada do projetor no meu quarto. Isso foi bom, a rachadura me lembrava todas as manhãs que meu tempo estava acabando, que a qualquer momento o Diretor poderia me colocar em um experimento desesperado que me mataria. Ele precisava de mim para conseguir seu dinheiro e isso me garantia um cuidado extra por parte dele. Mas eu não podia esquecer que também representava uma ameaça e ele não hesitaria em se livrar de mim se me tornasse perigosa demais para ser mantida presa. Então eu me obrigava a me manter na linha entre mostrar que minha habilidade era útil e poderosa, mas não tão poderosa a ponto de destruir tudo.
O mais surpreendente foi saber que eu era mesmo capaz de fazer isso, destruir tudo. Com mais e mais treinos, eu começava a entender do que era capaz. E quanto mais eu entendia isso, mais eu tomava cuidado para não deixar que percebessem o quanto destrutiva eu poderia ser.
Depois que a Dra. Arlene me liberou dos curativos nos braços, recebi um comunicado de Vladimir. Na verdade foi meramente um aviso pelo projetor da Sala de Dados. Dali a dois dias eu teria um “contato externo” como estava escrito em letras grandes. Essa atividade apareceu instantaneamente na minha grade de horários. Quando li a mensagem, percebi na hora o que aconteceria, mas minha relutância não me deixou acreditar e tive que ouvir da boca de Suna.
— Vão me levar lá pra fora? — perguntei e ela respondeu dando de ombros:
— Você precisa se acostumar à atmosfera externa antes da caçada.
— Mas e o vírus?
— O quê, está com medo de respirar o M? — Ela riu como se eu fosse uma boba. — Garota, seu DNA está carregado com vírus mórfico, o ar lá fora não vai te causar nenhum mal... — Suna parou e inclinou a cabeça, ponderando — Ahnn pelo menos não é vírus que vai te causar desconforto.
— Então o quê?
— Ainda será um ar que seu corpo não está acostumado. Você vai passar um pouco mal.
Aquilo não me deixou nem um pouco mais tranquila, mas pelo menos me ajudou a me preparar para o desafio. Além de que não pude evitar a ansiedade de saber que logo veria o sol de novo, sol de verdade. Eu veria o lado de fora. Talvez não fosse assim tão seguro, mas quando se está confinada por muito tempo, qualquer lugar é melhor que a prisão.
Na noite daquele dia os pesadelos voltaram. Eu vi Daniele sendo eletrocutada até seu corpo desaparecer por completo. O grito de agonia e a risada do Diretor ecoaram na minha cabeça mesmo depois que acordei encharcada de suor. Não consegui mais pregar os olhos e, como em outras noites de insónia, me levantei e fui ler alguma coisa da estante de Suna. Também não fui capaz de me concentrar nisso, só me restou ficar de frente para a janela virtual e assistir a lua se mover lentamente sob deserto por trás de uma placa de fibra trincada. Me senti dentro de um aquário, um peixinho dourado vendo o mundo através de um vidro e incapaz de nadar para além dele. Um peixinho prestes a saltar da água e torcer para cair no oceano.
° ° °
No dia do contato externo acordei antes mesmo de Sunahara. Fiquei no pé na porta esperando o fim do horário de restrição. Eu estava nervosa. Pensava se eu poderia simplesmente sair correndo quando os guardas se descuidassem. Estupidez, eu sei. Para onde quer que me levassem, seria um lugar controlado e sem qualquer possibilidade de fuga. Mesmo assim me peguei fantasiando, disparando para longe das garras do Diretor. Depois descobri que mesmo se me deixassem ir, eu não iria. Não sem as garotas. Não deixaria ninguém para trás.
Suna não demorou para acordar e me acompanhar em minha angustia. Era impressionante como ela fazia parecer que era um dia como outro qualquer quando na verdade eu estava prestes a ver o hostil mundo exterior. Mas não podia ser mais hostil que aquela prisão, podia?
No refeitório encontrei Deise e Lily, que ainda tinha a marca do corte no nariz onde a o soldado a acertou. Elas discutiam algo de forma acalorada como já era comum. Enquanto comíamos, as duas me adiantavam o que estava por vir. Ambas já tinham passado por aquilo, diferente de Suna que veio lá de fora.
— Eles vão te dar uma roupa especial com um capacete — Lily me explicou — mas não adianta de nada, você vai vomitar do mesmo jeito. Se você não desmaiar vão mandar que você faça alguns exercícios bestas.
— Desmaiar? — me surpreendi — Vai ser tão ruim assim?
— Depende de como seu organismo reagir — disse Deise. — Comigo foi uma tontura muito forte e depois... eu vomitei.
Lilyan riu, mas Deise a entregou e disse que a mesma coisa tinha acontecido com ela.
— E como é lá em cima?
— É bonito — Deise suspirou. — Apesar do vírus ter quase apagado a humanidade da face do planeta, o que ele fez lá em cima é lindo.
Ainda penso nisso até hoje. O motivo das florestas mórficas serem tão exuberantes e grandiosas é até bem simples: o vírus tirou do caminho um fator inimigo da natureza: os humanos. Ninguém nega que o modo de vida pré-era mórfica era autodestrutivo e nós não duraríamos muito tempo daquele jeito. O vírus nos golpeou de uma forma tão forte e inesperada que tivemos que aprender a viver de forma sustentável ou seríamos extintos. Hoje as Cúpulas mantém ecossistemas autossuficientes e cada pessoa é individualmente responsável por mantê-lo vivo, afinal, se as coisas pararem de funcionar sob a barreira todo mundo morre. Se antes a humanidade pensasse no planeta como uma grande Cúpula planetária, talvez tudo fosse diferente hoje.
— Alguma dica? — por fim perguntei.
— Respira fundo, patricinha — Lily aconselhou. — Aproveita o ar livre porque da próxima vez que estiver lá fora, terá outras preocupações.
Vladimir esperou eu terminar de comer para aparecer com uma trupe de guardas armados e seu sorriso desprezível no rosto. Era o velho Vladimir, elegante e hiperconfiante. Por algum motivo eu me sentia mais confortável com ele daquele jeito do que ver seu outro lado, destruído e depressivo.
— Pronta para um passeio no parque, lindinha? — Ele sentou-se sobre a mesa ao meu lado e ficou tamborilando o dedo. — Vejo que estão trocando fofocas como fazem todas as manhãs. Qual é o assunto de hoje?
Lily não perdeu tempo e retrucou:
— O assunto é: por que a mãe do Vladimir é uma vaca?
Ele olhou sério para ela depois riu e deu de ombros.
— Eu me sentiria ofendido se isso tivesse saído da boca de qualquer outra das garotas, mas de você, Lily, já estou acostumado. Além disso, eu não lembro daminha mãe, então ela pode ser uma vaca mesmo, quem sabe? — Lily ficou sem reposta para aquilo e apenas bufou. — Certo, meninas, vão para as aulas eu e Anabel vamos passear.
Elas relutaram a se levantar, mas logo obedeceram. Entretanto, enquanto Suna passava inclinou-se de forma discreta para Vladimir e sussurrou em um tom venenoso que eu nunca tinha visto ela usar antes.
— Se alguma coisa acontecer com ela eu juro que faço da sua vida um inferno.
Dessa vez ele não sorriu.
— Vai ser difícil ficar pior do que já é, Ritsuko, mas você pode tentar.
Suna acompanhou as outras até o elevador e eu fiquei encarando Vladimir, esperando ele dizer alguma coisa. Ele puxou um dos potinhos de Deise com um pedaço de mamão e mordeu a fruta.
— Ah, Anabel, a vida é tão curta, não acha? — finalmente disse, ainda mastigando.
— Pra nós? Acredito que sim.
— Acredite mesmo.
— Vamos lá pra cima ou não? — cruzei os braços em um sinal de irritação.
— Vamos, mas primeiro quero conversar uma coisinha com você. — Ele olhou rapidamente para os guardas esperando perto do elevador. — Vai acontecer uma coisa lá em cima e eu preciso te avisar para que não faça besteira. Uma coisa importante.
— O Diretor vai me jogar para ser devorada por algum mórfico? Eu não ficaria surpresa se isso acontecesse.
— Não, ele precisa de você inteira por enquanto. É outra coisa. — Seu tom de voz baixou e ele inclinou-se para mais perto de mim. — Seu pai quer falar com você.
Minha reação imediata foi de gritar de alegria, mas tive forças para me conter e ficar calma, os guardas ainda me vigiavam. Fingi que Vladimir não disse nada de mais e perguntei fazendo pouco caso:
— Agora? Na sala de contato externo?
— Não. Vai ser lá em cima. Temos como infiltrar um sinal pirata. Será rápido. O sinal será ruim, mas você vai ter que ouvir tudo com muita atenção. Ele explicará coisas importantes sobre o plano, então não perca seu tempo com sentimentalismo ou lágrimas.
Era fácil dizer, mas ele tinha razão. Um sinal pirata pode ser rastreado se for captado por tempo suficiente. Só que eu não podia prometer que não tentaria trocar algumas palavras com meu pai. Eu precisava.
— O que vou precisar fazer? — perguntei.
— Apenas ouvir. Quando o sinal cair, finja que está tudo bem e não diga nada. Os guardas estarão perto de você, mas não terão como ouvir os seus fones.
— Você não vai estar lá? — Não sei por que perguntei aquilo.
— Se sente mais segura comigo? — Ele sorriu. — Que pena, não vou poder subir com você.
— Não é isso. É que...
— Está na hora, vamos.
Vladimir não me deu tempo e se levantou alisando o terno. Eu o segui tropeçando na cadeira com medo de me atrasar para ouvir a voz do meu pai.
— Espera, ne responde uma coisa — eu disse assim que o alcancei.
— O que é?
— Não conheceu mesmo sua mãe?
Ele me olhou com desprezo e apontou para o elevador.
— Quer entrar logo aí e calar essa boca?
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