◀27▶
No dia seguinte ao meu acidente perdi as contas de quantas vezes Deise se desculpou comigo. Por mais que eu dissesse que foi burrice minha chegar perto demais. De todo modo eu achava a habilidade dela muito legal, um bocado perigosa, mas legal.
Ficamos algumas horas livre pensando em maneiras mirabolantes de falar com Daniela nem que fosse por um minutinho. Eu não parava de pensar em como ela estava com medo e confusa. Felizmente não precisamos colocar nenhum plano maluco em prática. Quando chegamos no refeitório naquela manhã, Daniela estava sentada sozinha em uma cadeira, olhando para a mesa vazia.
Ela parecia tão pequena e frágil que meu coração apertou dentro do peito. As memórias do meu primeiro dia na Pirâmide ainda estavam frescas, eu entendia bem o que ela estava sentindo naquele momento.
— Os filhos da puta nem avisaram que ela já tinha sido liberada — Lily reclamou enquanto caminhávamos até a mesa.
— Por favor, Lilyan, não vá assustar a notava — Deise a cutucou.
— O que acha que sou? Um monstro?
De qualquer modo, ela seguiu o conselho e não disse nenhum palavrão quando nos aproximamos da garotinha. Sunahara foi a primeira a estender a mão, falando com aquele tom suave e pacífico na voz:
— Daniele?
Ela virou-se para nós muito rápido, fazendo os cachos chicotearem na bochecha. O rosto estava abatido, pálido e os olhos exibiam olheiras incomuns para uma criança. O olhar marejado também denunciava que ela passara muito tempo chorando.
— Q-Quem são vocês? Como sabem meu nome?
— Calma, estamos presas aqui como você — eu disse, sentado ao seu lado. — Eles avisaram que você estava aqui, por isso sabemos seu nome.
— E quem são eles?
Era uma pergunta simples que eu ainda não tinha uma resposta exata. Eles não eram um órgão governamental que existia oficialmente, então não tinha nome. Suna já tinha me falado que as Pirâmides de outras Cúpulas trocavam informações sobre as pesquisas e faziam até intercambio de internos. Com isso formulei a melhor esporta que pude pensar no momento:
— Eles são gente poderosa da Alta Cúpula.
Daniele não respondeu. Passeou o olhar cansado por nossos rostos, estudando cada uma de nós. Reparou especialmente nas maracas de cortes no meu braço.
— Eles fizeram isso com você? — indagou.
— É... mais ou menos — hesitei e Deise se mexeu na cadeira. — Você já comeu alguma coisa?
— Não estou com fome. Quero vez meus pais.
— Você precisa comer. Aí a gente conversa, certo?
Ela nada disse. Suna foi para a máquina de comida com Deise e as duas trouxeram variedades de bolos e tortas para Daniele escolher. Ela abriu uma torta de morango e ficou cutucando-a com o garfo. Naquele momento entendi a cautela que Suna teve comigo quando cheguei. O cuidado para não me bombardear com informações terríveis logo de cara. Eu tentava ter o mesmo tato com Daniele.
— Onde pegaram você? — Lily foi logo ao ponto. — O que você fez para parar aqui? Tá na cara que não veio de um centro de contenção.
— Lilyan! — Deise a repreendeu.
— O que foi? É uma pergunta simples.
Suna bufou em reprovação.
— Essa insensível é a Lily. — Apontou para mim. — Ela é a Anabel e aquela é a Deise. Meu nome é Sunahara, mas todo mundo me chama só de Suna. Somos todas internas como você. Ahn... posso ver sua cabeça um minuto?
Daniele hesitou por um instante, mas lodo decidiu erguer alguns cachos do lado cabeça. Não havia bloqueador preso ali.
— Colocaram algo nos seus pulsos? — Suna deixou que a garotinha erguesse as mangas do uniforme e exibisse as pulseiras iguais as de Deise, o led verde brilhando.
— Acordei em um quarto estranho com isso em mim. Vocês sabem o que é?
—´É um dispositivo de segurança — eu disse. — Ele serve para impedir que você faça coisas incomuns e se machuque ou machuque outras pessoas. Você sabe fazer algo incomum?
Ela ficou pensativa. Era bem óbvio que conhecia sua habilidade e a mantinha em segredo da Cúpula e não tinha motivos para contar seus segredos, então eu a encorajei:
— Está tudo bem. Somos como você, olha? — Virei minha cabeça para que ela visse melhor meu bloqueador. — Lily também tem um desses e os de Deise são iguaizinhos aos seus. Suna não precisa, mas ela também é diferente. O que você sabe fazer?
Seu olhar voltou para a mesa e sua voz saiu mirrada:
— Eu crio raios pequenos. Gostava de brincar com as tomadas da casa, mas minha mãe me proibiu, disse que eu não podia fazer coisas de mórficos.
Sunahara tinha me explicado na noite anterior o que uma eletrocondutora fazia, de forma bem resumida, Daniele era capaz de interagir com campos eletromagnéticos assim como Deise interage com o calor do ambiente. Eu não sabia ainda quais eram os riscos que essa habilidade carregava.
A mãe dela sabia que tinha uma filha modificada pelo vírus M e escolheu sabiamente protegê-la guardando seu segredo. Instinto materno. Ela, provavelmente, suspeitava que a perderia se o governo descobrisse. Mas eles sempre descobrem, têm olhos e ouvidos em toda parte. Basta um deslize. Me assustava imaginar o que pode ter acontecido com a mãe daquela garotinha se caso encontraram alguma prova de que ela sabia de tudo.
— Ela estava tentando proteger você — Deise a consolou. — Mães fazem isso o tempo todo.
— Quando vão nos deixar sair? — Daniele perguntou me olhando nos olhos, suplicante. Como eu explicaria que nunca nos deixariam sair? Que pretendiam nos matar ali dentro? Aquele, definitivamente, não era o melhor momento.
— Olha, Daniele... — comecei, mas não pude terminar, fui logo interrompida por uma voz orgulhosa saindo do elevador:
— É assim que eu gosto de ver! Minhas flores todas juntas, acolhendo o novo botãozinho que acabou de brotar. — Vladimir caminhou até a mesa e deu batidinhas nos ombros de Lily. — Menos você, Lily, você está mais para espinho do que para flor.
— Vai se foder, seu cuzão — A injuria saiu acompanhada de gestos equivalentes. Como de costume Vladimir apenas ignorou.
— Como está se sentindo, Anabel? Já conheceu nossa nova colega? Ela não é fofa?
— Sério, Vladimir? Agora? — Eu o desafiei com um olhar cortante.
— Puxa, que mal humor é esse logo cedo? Achei que a chegada de uma nova amiga fosse deixar vocês contentes. — Ele respirou fundo e desfez o sorriso debochado do rosto. — Enfim, vim aqui apenas para levar nossa Danizinha para a instrução. Liberei ela bem cedo para tomar o café da manhã, mas parece que não comeu muito.
— O que você acha? — resmunguei de novo. Daniele se mantinha coma cabeça baixa, sem dizer nada.
— Não importa, o Diretor está esperando na sala de Contanto Externo. Vamos, Danizinha.
Ele ergueu a mão para a garota, mas ela só se encolheu mais na cadeira.
— Vamos, Danizinha — Vladimir repetiu mais devagar.
Eu a segurei pela mão, estava fria.
— Tudo bem, pode ir com ele. O Diretor só vai explicar algumas coisas. Faça o que mandarem e tudo ficará bem.
A última coisa que eu queria era que ela fosse tratada com truculência como eu fui quando surtei naquela sala. Às vezes ficar quieta e ouvir é uma decisão mais inteligente quando você não tem outra escolha.
Ainda em silêncio, Daniele levantou-se e acompanhou Vladimir, mas antes que eles entrassem no elevador, gritei:
— Quero falar com você, Vladimir. É sobre os treinos.
Não era sobre os treinos. Era sobre a garota nova, mas eu não podia deixar que desconfiassem da minha aproximação com Vladimir. O que eu não podia permitir era que aquela criança se sentisse sozinha ali dentro.
— Vá até minha sala depois dos seus horários de treinamento da manhã — ele retrucou sem muito interesse. — Mas não venha se reclamar de dor nas pernas como da última vez.
Eu o xinguei mentalmente, torcendo pra que ele estivesse ouvindo minha cabeça. Desgraçado!
° ° °
Apesar do treinamento não exigir muito meus braços, minha pele latejava por baixo das ataduras. Acho que tem a ver com minha habilidade, ela me afetava de alguma maneira imperceptível e irritava os ferimentos que ainda estavam fechando. Apesar disso cumpri todas as aulas da manhã.
Para as outras garotas era mais um dia normal. Para mim, a chegada de Daniele mudou a rotina. Foi a primeira e única vez que vi alguém chegando ali, sendo inserido em um mundo em que eu ainda tentava me acostumar. Eu imaginava o que os pais dela estavam passando na Cúpula. Ainda estariam vivos? Ou foram enganados para pensar que a filha morrera? Pensar nisso só me deixava pior.
E quanto a Vladimir? Será que ele foi lá fora para buscá-la como fez comigo? Eu teria que descobrir. Sacrifiquei alguns preciosos minutos do meu tempo na Sala de Dados para ir até a sala de Vladimir e ter minha conversa urgente com ele. Sunahara se ofereceu para ir comigo, mas eu recusei. Se o diretor ainda estivesse por ali, seria menos suspeito se eu fosse sozinha, fingindo estar irritada com o ritmo pesado dos treinamentos.
Acabou que não foi necessário, encontrei Vladimir sozinho, me esperando encostado na porta de sua sala, com uma cara nada boa. A minha também não era das melhores então seria uma conversa daquelas. Isso ficou obvio logo que me aproximei e ele me empurrou para dentro e trancou a porta.
— Eu nem preciso ler sua mente para saber o que você vai dizer — falou de forma controlada, mas eu pude sentir a irritação em sua voz.
— Por que continua trazendo pessoas para cá? Ela é uma criança, Vladimir.
— O quê? Você achou que seria a última? As engrenagens continuam girando, lindinha.
Ele foi se sentar. Desabotoou o terno e folgou o nó da gravata.
— Eu não entendo você — eu disse, me aproximando da mesa. — Tem momentos que mostra compaixão por nós, se preocupa. Mas em outros é só um homem amargo e de humor sádico. Pode, por favor, escolher uma coisa só para que eu não fique tão confusa?
Ele riu e escondeu o sorriso logo depois.
— Eu sou as duas coisas, Anabel. Aprendi a ser. Acha que eu gosto de arrastar crianças para esse inferno? Acha que tenho prazer em tirar pessoas de suas famílias e fazerem pensar que estão mortos?
— Então por que continua trabalhando para o Diretor? Por que ajuda a manter esse lugar funcionando?
— Porque é o único jeito que encontrei de dar sentido para minha vida, de ajudar pessoas como você e Daniele.
— Que tipo de ajuda é essa? Se está do lado do meu pai, por que não dá um jeito de despistar o Diretor e impedir que ele capture mais gente e as arraste para cá?
— Por que o Diretor está certo, Anabel. — Ele olhava fixamente pra mim. — Pelo menos em parte. Nós não podemos viver entre as pessoas comuns. Nossas habilidades podem ser perigosas, você é um bom exemplo disso. Os recursos da Cúpula facilitam a localização dos portadores do M. Assim eu posso tirá-los daqui. Levá-los para um lugar onde pessoas com habilidades podem conviver e aprender sobre si mesmos...
— O refúgio que você falou — completei.
— Sim. Seu pai trabalhou anos naquele lugar, Anabel.
Tive que me sentar para acompanhar o pensamento de Vladimir. Ou ele estava de saco cheio de me ouvir fazendo perguntas ou só queria desabafar com alguém.
— De onde vem as pessoas que vivem lá? — indaguei.
— De toda parte do mundo. Das Cúpulas. E de outros lugares como esse. Fugas não são planejadas com frequência, mas quando são, é para dar certo. E vai dar certo dessa vez também.
Ali eu captei um pedaço do cenário do “mundo perfeito” de Vladimir: um lugar povoado por foragidos das Cúpulas ao redor do planeta. Nós somos uma ameaça para o formato da sociedade atual, só que eu ainda não tinha percebido o quanto éramos caçados.
— Os pais de Daniele estão bem? — Eu queria ter uma boa notícia para dar para a garotinha quando a encontroasse de novo. — Estão vivos?
Vladimir ficou calado me encarando por instantes desconfortáveis.
— Não me faça perguntas difíceis, garota — foi tudo o que ele respondeu. — Agora vá embora daqui, preciso beber alguma coisa forte.
— Mas eu...
— Saia!
O grito e o soco na mesa não me assustaram, só me mostraram como a vida de Vladimir era terrível. Era obrigado a fazer coisas horríveis para salvar pessoas, enquanto ele mesmo não era capaz de se salvar. Aquela foi a primeira vez que vi Vladimir tão desconstruído de sua tradicional superioridade, e não seria a última. Eu me levantei em respeito à sua vontade de ficar só. Mas antes de sair ele me disse:
— Lembre-se, senhorita De Castro, que é preciso atravessar o deserto antes de chegar à terra prometida. Ainda estamos no deserto...
Deixei a sala em silêncio, torcendo para que aquilo fosse só uma frase solta fruto de sua dor. Mas Vladimir estava certo, as verdadeiras provações ainda estavam por vir.
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