◀2▶
Acordei no dia seguinte em casa, com dor de cabeça e gosto azedo de bile na minha boca. Demorei para criar coragem e sentar na cama. A ressaca fazia tudo girar.
— Merda — praguejei baixinho quando lembrei da noite anterior. Na verdade, eu lembrava muito pouco do que aconteceu depois de eu surtar. Recordo da correria, de ter apagado e acordado dentro de uma ambulância e de muitos policiais e bombeiros no saguão do hotel. E recordo do cara que esmaguei.
— Não acredito que fiz isso — murmurei para mim mesma, tentando me tranquilizar. — Posso ter colocado tudo a perder.
Com esforço gigantesco me levantei e a tontura da ressaca quase me jogou de volta na cama, mas resisti e me forcei a caminhar até o banheiro. Meus pés descalços afundaram no carpete felpudo com um toque macio.
— Que horas são? — perguntei para ninguém. As janelas do quarto estavam todas fechadas, tudo meio escuro como se fosse noite ainda. — Abrir janelas. — Minha voz saiu rouca e baixa demais, mesmo assim a casa me ouviu e as persianas começaram a subir em sincronia. O sol invadiu o quarto, meus olhos doeram com a claridade, quase me obrigando a pedir que as janelas se fechem novamente. Resisti a isso também, tinha que acordar.
No banheiro, encarei meu reflexo no espelho. Meu complexo penteado que preparei na noite anterior tinha se transformado em um emaranhado estranho e a maquiagem estava manchada. Ainda estava com a roupa da festa, o vestido preto estava tão amassado quanto meu rosto. Coloquei as mãos sob a torneira de água fria e... sangue. Meus dedos exibiam manchas de sangue mal-lavadas. O sangue que escorrera do meu nariz. Lembro de tentar limpá-lo com as mãos antes de um dos paramédicos me dar uma gaze.
A água tocou minha pele e eu me retraí institivamente com a temperatura. O sangue, entretanto, não saía, estava seco. Esfreguei as mãos furiosamente, fazendo-as sumir na espuma do sabonete até que não sobrasse nenhum resquício do que eu tinha feito.
— Ninguém vai descobri — eu repetia enquanto me lavava com mais força, desesperada. — Ninguém vai descobrir. Ninguém.
Enxaguei minhas mãos trêmulas, aliviada em vê-las completamente limpas. Sobraram apenas os arranhões nas palmas, provavelmente causados por cacos de copos quando caí. Me sentia suja pelo que fiz. Eu estava bêbada, pensei. Era só uma tentativa fútil de me fazer sentir melhor. Não deu certo.
Me livrei do vestido apertado que começava a me sufocar. Deixei a banheira enchendo, enquanto sentava sobre a tampa da privada, com os joelhos unidos. E o cara? Será que morreu? Mil e uma possibilidades me assaltaram ao pensar no corpo de Alan destroçado no chão rachado, nenhuma delas otimista. O enjoo voltou mais forte, me obrigando a levantar só para enfiar a cabeça no vaso e vomitar o pouco que guardava no estômago. O banheiro dava voltas e mais voltas. Prometi a mim mesma que nunca mais voltaria a beber. Talvez não volte mesmo, Anabel. Se for presa, não vai mais a nenhuma festa pelo resto da vida. A voz da minha consciência me torturava, mas ela podia estar certa.
Afundei na banheira por uma hora inteira, de molho em água bem gelada para afastar minhas preocupações e curar a ressaca. Quando terminei, vesti qualquer coisa e me arrastei até a cozinha. No corredor encontrei os robozinhos aspiradores percorrendo a casa em seu esforço para manter o chão limpo. Eles paravam enquanto eu passava.
Tudo estava silencioso como sempre, a casa era grande demais só para mim e às vezes parecia assombrada apesar de toda a modernidade. Meu pai insistira em comprar o imóvel bem perto da faculdade, só para evitar que eu ficasse em uma republica de alunos. Eu era especial, segundo ele. De qualquer modo, eu não me importava com a casa, não passava muito tempo nela.
As persianas das janelas se abriram assim que entrei na cozinha e exibiram os jardins do lado de fora, onde mais robôs flutuavam em volta das plantas regando-as e podando-as com precisão. Cada vida vegetal dentro da Cúpula era importante, elas ajudavam a manter o ar limpo.
— Ligar projetor — ordenei. Tomei meu lugar de sempre à mesa depois de pegar uma caneca com café bem forte e fumegante. A projeção surgiu na parede no canal de noticiário. A tensão me dominou só por um segundo, enquanto esperava ouvir meu nome e meu rosto na tela com uma tarja vermelha bem grande: PROCURADA POR ASSASSINATO. Mas a repórter só estava falando sobre os protestos em uma das Cidade Cúpula dos EUA e sobre a quase ruptura que tiveram mês passado. Graças aos céus não temos esse tipo de problema por aqui. Nosso governo não é dos melhores, mas eles nunca falharam em manter a Barreira erguida.
— Projetor, tocar playlist três. — Com meu pedido, o noticiário deu lugar ao som suave e calmo de um piano em uma melodia lenta. Geralmente eu escutava rock de manhã, mas minha cabeça ameaçava explodir, então optei por algo mais brando. O relógio no canto me dizia que já passava das três da tarde. Dormi demais. Mas era domingo, não tinha aulas. Era dia de ficar na piscina ou ver um filme com Ester. Só que nada disso me importava. Com a mão na testa, olhando para o café na minha frente, eu só conseguia pensar no que aconteceria comigo se me descobrissem.
— Chamada de voz de Ester.
Dei um pulo com a voz digital e quase derrubei a caneca. Meu coração foi a mil e minha cabeça voltou a latejar.
— Aceitar chamada — falei, me recuperando do susto. Peguei o fone de ouvido sobre a mesa. A música desapareceu e deu lugar a voz tensa de Ester:
— Anabel, temos que conversar. — Ester era a única que sabia da minha condição anormal. Ela estava presente quando aconteceu da primeira vez, quando erámos crianças. Posso dizer que minha amiga era bem mais paranoica do que eu quando se tratava em manter esse segredo, e olha que eu já sou paranoica o bastante.
— Ester, eu estou péssima...
— Deve estar mesmo, a julgar o quanto você bebeu. — Ela falava como se fosse uma santa. — Toma uma aspirina e me encontra no lugar de sempre, temos que falar sobre ontem.
— Não aconteceu nada ontem, Ester, foi só um acidente! — Me assustei com meu próprio desespero, como se a Defesa da Cúpula estivesse ouvindo a conversa e fosse deduzir tudo apesar das palavras veladas da minha amiga.
— Nossa, Anabel. Fica calma! É sério, temos que nos ver. Hoje. Daqui há uma hora se der pra você. Estou te esperando. — Ela encerrou a chamada com um suspiro e logo depois o piano voltou a preencher a cozinha com a melodia lenta, que passou a soar com uma marcha fúnebre, anunciando algo bem ruim prestes a acontecer.
◎ ◎ ◎
Antes mesmo de estacionar o carro, consegui ver Ester andando de um lado a outro no parque, perto do banco onde sempre ficávamos, de frente para o pequeno lago cheio de gansos. Ela estava visivelmente preocupada e, como eu, com cara de ressaca. Fiquei sentada atrás do volante por um tempão, pensando. Ester já tinha me visto chegar, todo mundo viu, um Tesla vermelho não passa despercebido (outro dos extravagantes presentes de papai).
Olhei para todos os lados antes de sair, procurando algum oficial da Cúpula me vigiando para uma emboscada, mas só vi crianças rindo com suas famílias e casais de namorados aproveitando a tarde de domingo como gente normal. Era esse tipo de normalidade que eu passei a vida inteira tentando manter, e o que eu fiz na noite passada pode ter acabado com isso.
Saí do carro casualmente, fingindo estar preocupada com minhas unhas para manter a cabeça baixa. Andei tão lentamente que Ester, impaciente, fez o resto do caminho até mim praticamente correndo.
— Minha nossa, Anabel, por que demorou tanto? Eu disse uma hora! — Ninguém pareceu dar bola pra ela, mesmo assim reclamei:
— Quer se acalmar e pelo menos tentar não chamar atenção? — Ela cruzou os braços como se estivesse fazendo muito frio apesar do sol forte filtrado pela barreira sobre nossas cabeças, enquanto caminhávamos em silêncio até o banco.
— Estou com medo da polícia descobrir a gente — confessou ela, sentando-se e começando a bater a ponta do pé, nervosa. — A polícia acha que foi um colapso na estrutura do prédio. Mas eles estão investigando. E tinha câmeras lá.
Me recostei no banco e joguei a cabeça para trás, encarando o céu azul, eu quase podia ver o brilho violeta dos escudos mesmo sendo dia.
— O cara morreu? — Perguntei e voltei a encará-la com seriedade.
— Não, mas esta péssimo no hospital. Teve várias fraturas.
Suspirei com um pouco de alívio. Pelo menos ninguém tinha morrido.
— Menos mal — eu disse. — Quanto à investigação, qual sua sugestão? Se a Guarda da Cúpula descobrir vão vi atrás de mim. — Sussurrei aquilo olhando por cima do ombro para me certificar de que ninguém ouvia. — Sabe-se lá o que vão fazer comigo. Com certeza não vão simplesmente me jogar em uma prisão.
A Guarda da Cúpula era a força de defesa especial que agia em os assuntos que envolviam o vírus mórfico ou qualquer coisa que ameaçasse a segurança da barreira ou do governo. Tinham mais poder que as forças armadas e não eram conhecidos pela tolerância. Além disso não faltavam teorias da conspiração onde os oficiais da Cúpula sumiam com gente relatando coisas estranhas. Meu medo era descobrir que essas teorias eram reais, já que o que era capaz de fazer era bem estranho.
— Eu não deveria ter bebido tanto — lamentei embora soubesse que era tarde demais para isso. Não foi a minha primeira bebedeira, nem a segunda, só que aquela foi de longe a que acabou pior. — Quem me trouxe para casa ontem?
— Eu e Ian. Ele estava muito preocupado com você. Insistiu que levássemos você para um hospital, mas eu o convenci do contrário.
— Fez bem. Obrigada.
Ela se encolheu no banco e nós duas fitamos um dos gansos passeando graciosamente sobre a água do lago, o pescoço alongado em uma curva charmosa.
— Já pensou em ligar para seu pai? — indagou ela, buscando outra saída para aquela situação. — Ele é influente na Cúpula, talvez consiga abafar tudo.
Quase ri daquela ideia. Eu correria menos riscos me entregando para a polícia. Meu pai me enchia de presentes caros para tentar compensar a ausência dele na minha vida, porém, do jeito que dá valor a seu trabalho e sua carreira, seria o primeiro a me jogar em um laboratório para abrirem minha cabeça e ver o que tem dentro se soubesse o que fiz.
— Nada disso — tratei de encerrar a conversa. — Ele nem sequer me ligou ainda. Deve estar ocupado como sempre. Provavelmente vai ficar sabendo de tudo pela internet. Aí sim, vai aparecer fingindo estar preocupado. Vamos agir como se fosse só um acidente normal.
— Certo — Ester concordou com um movimento de cabeça.
Aquele seria outro pacto nosso, outro segredo para ser levado para o túmulo.
— Tenho que ir para casa. — Me levantei e coloquei as mãos nos bolsos de trás da calça, um gesto normal de uma garota nada normal, mas eu precisava manter as aparências. — Preciso de outra aspirina.
— Quer que eu durma com você hoje?
— Não precisa, vou ficar bem. — Suspirei e torci para que fosse verdade. — Quer uma carona?
Ela se levantou com um sorriso, enquanto enlaçava seus braços no meu e disse:
— Claro, mas só se me prometer que não vai esmagar ninguém no caminho.
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