◀17▶
Minha primeira reação foi querer abraçá-lo. Por mais raiva que eu sentisse da ausência do meu pai, naquele momento eu só queria me esconder entre os braços dele e chorar. Mas logo eu lembrei que ele fazia parte daquilo.
— Finalmente lembrou que eu existo? — Eu me encolhi cruzando os braços para conter minha tremedeira.
— Ana, me escuta. Olha pra mim. — A voz dele saia fraca nos alto-falantes. Quero te pedir perdão, eu não consegui te proteger. Eu falhei com você e com sua mãe. Achei que poderia te dar uma vida normal.
— Por que está falando da mamãe agora?! Você vai me tirar daqui? Usa sua influência na Cúpula ou sei lá. Eu não quero morrer enterrada nesse lugar. Você sabe o que acontece aqui?
Eu estava mais desesperada do que imaginava. Depois do primeiro mês eu já estava quase me conformado com a possibilidade de nunca mais ver a luz do dia novamente. Só que ver meu pai, de algum modo, reascendeu uma faísca de esperança e raiva, eu me agarrei às duas.
— Eu sinto muito, filha, não é tão simples. — Ele chegou mais perto do vidro e passou a falar mais baixo, como se estivesse com medo de que alguém o ouvisse ali dentro. — Não tenho influência para simplesmente convencer que deixem você sair. Nem mesmo o presidente da Cúpula tem poder pra isso. Eu nem sequer deveria estar falando com você. Estou arriscando a vida de Vladimir cada segundo que passo aqui.
— Ele fez isso? — perguntei, indicando a sala no modo de contenção biológica. — Você pediu pra ele nos trancar aqui?
— A sala não está sendo monitorada por enquanto, mas logo será, por isso preciso ser breve. — Um suspiro, e seu olhar tremeu. — Tenho tanta coisa pra te contar. Tanto pra explicar. Queria ter mais tempo, Ana.
— É, eu imagino que tenha — me afastei um pouco do vidro. — Todos esses anos me ignorando...
— Eu estava tentando te proteger, Anabel. Eu... Eu sempre soube que você carregava o vírus M, desde que nasceu. Você... — ele parou e tomou fôlego, o que diria em seguida seria muito difícil — Você o herdou da sua mãe.
Pensei ter ouvido errado. Pensei ter sido uma interferência no microfone do painel pregando uma peça em meus ouvidos. Meu pai tinha acabado de dizer que sempre soube que eu era portadora do vírus mais mortal que a humanidade já viu e nunca me contou?
— Do que está falando, pai? Que história é essa?
— Sua mãe não morreu vítima de câncer. Lúcia morreu aqui, nesse lugar. Ela também tinha uma mutação do vírus M, algo parecido com o que você faz, só que em menor escala.
— C-Como ela... — Eu estava tão aturdida que não fui capaz de terminar a frase.
— Descobriram o vírus durante os exames da gravidez — meu pai explicou, olhando para o chão. — Eles a trouxeram para cá quando ela estava com dois meses de gestação. Fizeram testes e experimentos e eu não pude fazer nada para impedir, quase não me deixavam vê-la. A mutação do vírus era demais para ela. Lúcia resistiu até você nascer, aqui mesmo. E me fez prometer que não deixasse você acabar como ela.
Minhas pernas bambearam, minha cabeça doeu com aquela revelação. Minha mãe foi como eu. Minha mãe morreu naquele lugar horrível.
— Por que nunca me contou? Por que escondeu isso de mim?! — Eu estava gritando, não me importava se alguém podia me ouvir lá fora. — Por que todos esses anos me deixou sozinha, achando que sua fortuna ia preencher o espaço que você deixou como pai?
— Era o único jeito de te proteger. Felizmente, seus primeiros exames não apresentaram sinais do vírus. Os líderes da Cúpula me deixaram ficar com você, mas eu percebi que eles tinham interesse em saber se você desenvolveria o vírus com o passar do tempo e eles me usariam para isso. Minha única opção foi mandar você pra longe de mim, para um lugar seguro onde eles não poderiam me usar para te vigiar. Sabe o quanto foi difícil ter que abrir mão de te ver crescendo de perto?
Eu imaginava. Cada festa de aniversário perdida, cada desfile da escola em que ele não estava lá, cada dia dos pais que eu passava com Ester e o pai dela por que o meu estava sempre ocupado. Eu imaginava o quanto podia ser difícil escolher isso. Mas ainda era mais difícil do que tentar viver uma vida normal comigo? Pelo menos tentar?
— Apesar de todo o sacrifício, eu falhei com você — ele continuou. — Não imaginava que sua mutação viral fosse tão agressiva. Sua mãe mal conseguia levitar um copo, só a descobriram por causa dos exames. Por isso, toda vez que você ficava doente eu mandava um médico de confiança ao invés de deixarem que levassem você para uma consulta em um hospital. Eu pagava muito bem para evitarem exames que acusssem a presença do vírus em você. Sabia que mais cedo ou mais tarde ele surgiria.
— Minha mãe... sofreu? — Tremi com minha pergunta. Não queria pensar nela agonizando em um leito em algum andar aqui.
— Não. Fiquei com ela até o fim. — Uma lágrima correu por sua bochecha e se perdeu na barba rala. Meu pai sorriu. — Ela só falava em você, Ana. Ficava fantasiando qual seriam suas primeiras palavras, quando daria os primeiros passos, o seu primeiro dia na escola...
Tudo isso foi tirado dela. Essa coisa em mim, esse vírus, tirou a vida da minha mãe e destruiu minha família. Uma raiva súbita dos mórficos cresceu em mim. Uma raiva que me fez engolir a vontade de chorar. Eu não ia chorar.
— Senhor de Castro, só mais dois minutos — Era voz de Vladimir nos alto-falantes. — O pessoal do monitoramento vai começar a desconfiar dessa sala lacrada.
Meu pai olhou para o relógio no pulso e secou o rosto com a manga do terno.
— Certo, Ana, me ouça bem, não desisti de você. Vou achar um jeito de tirar daqui nem que custe minha vida. Só preciso que seja paciente e confie em Vladimir, ele tem te mantido longe de problemas e vai continuar fazendo isso.
— Pai, eu...
— Não desista de si mesma, meu anjo. Eu juro pela alma da sua mãe que você será livre de novo.
Isso me fez chorar feito uma garotinha, simplesmente desabei em lágrimas, com vegonha de mim mesma por todos os pensamentos ruins que tive do meu pai durante aqueles anos, enquanto ele só estava tentando me esconder do mundo.
— Eu te amo, filha.
— Eu também te...— As luzes do teto branco ascenderam novamente, toda a sala se iluminou e eu pisquei, ofuscada.
— Protocolo de contenção encerrado. — A voz anunciou. Meu pai se apressou até a porta e me deixou sozinha com ainda mais medo.
O console da porta atrás de mim apitou e Vladimir inclinou metade do corpo para dentro, procurou por meu pai e quando viu que ele já tinha sumido disse:
— É nossa deixa, Anabel. Vamos logo.
— É que... Ele... — Eu estava em choque.
— Ah, temos que ir, garota. — Ele entrou e me puxou pelo braço, de volta para o corredor. — Os técnicos estão vindo investigar essa contenção sem motivo. E enxugue essas lágrimas senão vão pensar que bati em você. Fique com raiva de mim como sempre, pode ser?
— Vai à merda.
— Boa garota.
Nem percebi quando entrei no elevador. Tudo que passava pela minha cabeça era o momento em que eu teria a chance de abraçar meu pai. Um abraço que valesse por todos os anos que passamos separados.
° ° °
Vladimir me deixou no refeitório com as meninas. Elas mal esperaram eu me sentar para me encher de perguntas. Estavam nervosas com o que poderia ter acontecido comigo. Pude perceber o alivio de Suna quando me viu inteira e me abraçou forte, segurou meu rosto como se fosse me beijar e encarou meus olhos marejados.
— Estava chorando? — perguntou assustada. — O que fizeram com você? Te levaram para o andar 10?
— Duvido — Lilyan deu a volta na mesa. — Nem tem sangue no uniforme dela. — Deise se encolheu com sua bandeja com bolo e suco.
— Não estava no andar 10 — falei baixinho, olhando os drones voando sobre nossas cabeças. — Depois eu conto. Não posso falar nada aqui.
As três trocaram olhares de estranheza. Não queria arriscar comentar que meu pai e Vladimir tinham arranjado um encontro comigo às escondidas, ainda mais para falar de uma possível fuga. Me sentei à mesa com as pernas bambas de fome e da emoção do que tinha ouvido naquela sala. Afastei aqueles pensamentos o mais rápido que pude ou começaria a chorar de novo. Vendo meu estado catatônico, Suna se ofereceu para pegar algo para eu comer na máquina e me trouxe uma bandeja cheia. Comi em silêncio, encarando a ponta do garfo de plástico. Nem Lily, nem Deise fizeram mais perguntas, perceberam que eu não estava em condições de falar, mas Sunahara, me interrogaria depois.
Passei o resto do dia sem conseguir me concentrar em nada. As aulas passaram em branco, fiquei todo o horário de recreação boiando na piscina sem vontade para nadar. Suna hora ou outra, me perguntava se eu estava bem. Tive vontade de falar logo tudo a ela, mas os orientadores estavam sempre por perto e poderiam ouvir. Não quis correr esse risco.
Me senti segura para conversar com ela apenas quando o horário de restrição começou e fomos trancadas de novo no quarto. Mesmo ali dentro, sozinha com Suna, preferi falar baixo, era pouco provável que o diretor colocasse escutas nos quartos, mas era melhor prevenir. Sentei-me com ela à mesa de estudos e respirei fundo antes de começar a sussurrar.
— Suna, meu pai veio falar comigo. — Ela não pareceu impressionada.
— Sim, eu imaginei que o Diretor fosse deixar vocês se verem mais cedo ou mais tarde. Ele é seu pai.
— Não, Suna, ele não tinha autorização para me ver. Vladimir selou a sala de contato externo para que o pessoal do monitoramento não soubesse que eu e ele estávamos lá. — Ela arregalou os olhos puxados e o brilho violeta cintilou timidamente.
— Vladimir fez o quê?!
— Fala baixo. Podem estar nos ouvindo.
Suna inclinou o corpo sobre a mesa e ficou mais perto de mim, mesmo assim ela continuou falando alto.
— Eu sabia que o atraso nos horários hoje cedo era algo importante. O que ele disse pra você?
Entrelacei os dedos e mordi a parte de dentro da bochecha para conter o choro.
— Ele disse que minha mãe morreu aqui depois que eu nasci. Ela... também tinha o vírus M. Meu pai impediu que descobrissem que eu estava infectada e me protegeu à distância. E todo esse tempo eu achava que ele era um egoísta sem escrúpulos.
Sequei com as costas das mãos algumas lágrimas que ameaçavam escapar e pensei no risco que meu pai assumiu quando decidiu me tirar dali. A cepa do vírus que estava em mim não era contagiosa e estava apenas no meu cérebro, mas nada garantia que isso mudasse com o passar dos anos. Ele arriscaria uma epidemia dentro da Cúpula apenas para me dar uma vida normal?
— Sua mãe... — Suna desabou na cadeira, seu olhar em algum lugar distante. — Meu Deus, sua mãe esteve aqui, Anabel. Como era o nome dela?
— Lúcia.
— Sinto muito.
Era tão estranho saber que minha mãe tinha sido outra vítima do vírus M. Eu sempre acreditei no que meu pai dizia sobre ela ter morrido por causa do câncer. Será que ela viu meu rosto antes de partir? Será que deixaram que ela me visse?
— Ele... Meu pai disse mais uma coisa. — Me forcei a voltar para o presente.
— O quê?
— Que vai tentar me tirar daqui.
Vi os olhos de Suna se estreitando em uma linha escura.
— Fugir? — disse ela. — Fugir desse lugar? Como ele faria isso, Anabel?
— Não faço ideia, mas se tem alguém que pode fazer isso é ele. Então fique preparada porque se eu sair daqui você, Deise e Lily vão comigo.
E lá estava eu de novo, cultivando esperanças e planejando algo que provavelmente mataria todas nós.
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