◀10▶
A luz do sol bateu no meu rosto e me obrigou a despertar, porém, não abri os olhos, apenas me virei de bruços e falei com voz rouca de sono:
— Fechar janelas... — A claridade continuou e como minha preguiça de levantar e fechá-las manualmente era muito grande, enfiei a cabeça debaixo do travesseiro e tentei voltar a dormir, mas alguém não deixou.
— Acorda, acorda. O quarto não vai obedecer a você, Anabel. Não está mais na sua mansão inteligente. — As cobertas foram puxadas de cima de mim.
O sono foi chutado para longe pela bota impiedosa da realidade. Meu cérebro religou e eu lembrei que estava presa em um prédio de pesquisas secretas, enterrado em algum lugar esquecido pelo resto do mundo. Levantei o travesseiro um pouco para ver Sunahara de pé ao lado da cama, sorridente com sua pele perfeita e firme graças ao vírus da eterna juventude que corria em suas veias. Eu grunhi quando vi que a luz do sol que tinha me acordado era, na verdade, as luzes no teto do quarto, imitando um amanhecer natural para nos fazer levantar.
— Me deixa — reclamei e escondi a cabeça sob o travesseiro novamente. — Não tenho nenhum compromisso hoje. Estou na cadeia.
— Claro que tem. O horário de restrição acabou há dez minutos e temos que tomar café da manhã — explicou ela, acostumada à rotina.
Apesar de não querer levantar para ir a lugar nenhum, meu estômago se pronunciou com ronco quando Suna falou em comida, e me fez perceber que estava morrendo de fome. Eu não havia comido nada desde o dia anterior, o estressante dia anterior.
— Tome um banho rápido. Temos que ir para o refeitório, vou te apresentar o resto do grupo.
Me livrei do travesseiro e sentei na cama de supetão. — Vamos comer no refeitório mesmo? — perguntei surpresa.
— Sim. Não achou que fossemos passar o resto da vida aqui dentro, achou?
Na verdade, foi exatamente isso o que tinha achado. Eu ainda não tinha entendido porquê destrancavam nossa sela e nos deixavam andar por aí. Quando perguntei a Suna por que eles nos davam essa liberdade, ela simplesmente respondeu que com os bloqueadores ligados, não representamos qualquer risco a ninguém. Além disso, obviamente, não tínhamos tanta liberdade assim.
— Pra você é fácil — retruquei emburrada — não tem nada espetando a sua cabeça.
— Eu não preciso de bloqueador. Não tenho nenhuma habilidade tão destrutiva como a sua.
Ignorei a garota convencida na minha frente e me arrastei para fora da cama. A fome me instigou a ficar de pé, somada também à curiosidade em saber quem eram as outras pobres almas que estavam na mesma situação que a minha.
Suna ficou me esperando na mesa, debruçada sobre um de seus preciosos livros de papel, enquanto eu tomava banho. Antes, fiquei observando a janela virtual ainda ligada. Mostrava o mesmo deserto de ontem à noite, só que agora o sol se levantava por atrás de uma colina arenosa, os primeiros raios anunciando o inicio de outro dia virtual naquele mundo falso de pixels em alta definição. Apesar disso fiquei feliz em ver alguma cor naquele cenário.
Quando entrei no banheiro, me senti em uma daquelas cabines de telefone inglesas antigas que mal cabiam uma pessoa. Tá, talvez eu esteja exagerando um pouco o banheiro era maior que isso, mas ainda assim muito pequeno. Senti falta do banheiro da minha casa, da minha banheira de água na temperatura certa, da música que tocava enquanto eu estava nela. Fazia tão pouco tempo e minha vida antiga já parecia ter terminado há um século. Eu vivia em outra planeta.
Olhei meu reflexo deplorável no espelho que, na verdade, era só uma chapa de metal cromado. É obvio que eles não colocariam vidro ao alcance de prisioneiras potencialmente suicidas. Bem, não importava, minha imagem no metal parecia a de um cadáver. Tinha olheiras que mais pareciam bolsas velhas e minha pele estava mais cansada que eu. Meu cabelo era um emaranhado estranho. Levantei uma mecha sobre minha orelha e analisei o bloqueador grudado na minha cabeça como um parasita robótico, o led verde sempre brilhando. A pele em volta estava vermelha e irritada e ainda me incomodava. Esperava que Suna estivesse certa quando disse que eu ia me acostumar com a sensação.
Suspirei e me virei para o chuveiro. Alegrei-me um pouco quando vi que o console na parede ao lado me permitia escolher a temperatura da água e qual sabonete ia usar. Nada de banheiras, mas pelo menos um banho quente eu teria.
Quando saí do banho, Suna já estava impaciente me esperando na porta aberta, ela me apressou relembrando que nosso tempo no refeitório era limitado. Felizmente eu não demorei nada para escolher minha roupa já que eram todas iguais: o mesmo uniforme cinza e sem bolsos, enfileirados em cabides no meu armário. O calçado também não era nada legal, só um par de sapatilhas brancas feitas de material borrachudo e macio. Pelo menos eram confortáveis.
Eu e Suna saímos pelo corredor vazio, cochichando como velhas amigas. É impressionante como ver alguém voltar dos mortos fortalece os laços. De qualquer modo eu não tinha mais ninguém com quem conversar ali. Por um momento esperei ver Vladimir nos aguardando do lado de fora com sua arma atordoante em punho para nos levar até refeitório, mas ele não estava lá, só encontramos um guarda brutamontes em pé como um poste ao lado do elevador. Me encolhi ao passar, ele mal olhou pra mim.
— Não sei como se acostumou a isso — comentei assim que entramos no elevador e as portas se fecharam. — Tenho medo até respirar perto de um desses guardas e eles atirarem em mim com aquela coisa branca.
— Ah, eu cresci em lugares como esse, Anabel — deu de ombros e apertou o 4 no console. — Nem ligo mais. Se você não for do tipo problemática, eles também não vão ligar pra você.
Claro, todo mundo sabe que eu sou um amor de pessoa. Pergunte ao Alan e ele vai confirmar...
— E o que acontece se eu for do tipo problemática? — resolvi perguntar, só para saber o que esperar.
— Bem, eles aplicam vários tipos de castigo. Se você for realmente descontrolada, sem solução, vai parar na ponta da Pirâmide. — Ela apontou para baixo. — É bem raro alguém voltar de lá.
— Aponta fica para baixo?
— Sim. Os andares vão se afunilando para baixo. São dez. O andar um é o maior feito para contato externo, onde o Diretor geralmente fala com os internos. É o único lugar que pessoas importantes da Cúpula podem visitar sem risco de contaminação. Para baixo temos os andares de treinamento prático, a Sala de Dados, os refeitórios e os dormitórios. Além disso é tudo fora de alcance para nós, é onde ficam os andares de pesquisa, segurança e a área de funcionários.
— Então o andar dez é o mais fundo e, teoricamente, o menor? — perguntei, tentando entender a arquitetura bizarra do lugar. — E o que fazem no andar dez? Você já esteve lá?
Suna balançou a cabeça vigorosamente, negando, quase fez o sinal da cruz.
— Eu nunca! Mas a Lily, já foi mandada pra lá mais de uma vez. Porém, recomendo você a não falar disso com ela. Lily é um pouco, explosiva.
— E quem é essa Lily?
— Você vai ver.
O elevador parou e o cheiro de comida quente invadiu minhas narinas assim que as portas se abriram. Parecia mesmo um refeitório, piso de chão cor de creme, com uma bancada e uma daquelas vitrines automáticas de comida com várias opções, tinha até uma máquina de sucos. O lugar era até que espaçoso demais para apenas duas mesas azuis, algumas cadeiras e as máquinas. O teto era alto, eu podia ver passarelas de acrílico em vários patamares da parede por onde alguns guardas armados caminhavam vigiando. Um pouco mais abaixo, drones de monitoramento os ajudavam na tarefa.
Fora os guardas, se eu me esforçasse um pouco, podia até fingir que estava no refeitório da faculdade. Suna me guiou até uma das mesas de aço no centro que poderia dar lugar para dezenas de pessoas, mas somente duas garotas ocupavam lugares lado a lado. As reconheci de imediato, eram as garotas do corredor. Uma delas era mais baixa que eu e tinha o topo das bochechas polvilhadas de sardas e um olhar verde-piscina por trás de óculos de lentes grossas. A outra tinha o corpo robusto de uma atleta, robusto e intimidador graças a tatuagem do que pensei ser uma fênix no braço esquerdo, que ela matinha exposto com as mangas da camisa dobradas até os ombros. O cabelo era de um louro muito escuro e cortado curtinho, eu a teria confundido com um menino se a tivesse visto de costas. O piercing no nariz era a cereja no bolo para completar a imagem da presidiária veterana.
— Começaram sem nós? — Suna reclamou.
— Sua nova colega de quarto te atrasou? — perguntou a garota do piercing, falando com a boca cheia. — Olha ela aí, Anabel Luz De Castro. Finalmente apareceu. — Ela se levantou no banco para me alcançar. Sem querer me peguei imaginando que o vírus M deixara seu corpo mais forte, com músculos de aço, e nem percebi que ela estendia a mão pra mim. Abandonei meus devaneios e apartei a mão dela, era forte também. — Pode me chamar de Lily e essa tampinha aqui é a Deise. — A garota das sardas deu um soco no braço tatuado da outra e também me cumprimentou de onde estava.
— Oi — ela disse, sorrindo — você é bonita.
— O-Obrigada — era só gentileza, eu sabia. Um pano de chão estaria mais apresentável que eu naquele dia.
Deise parecia ser a mais nova ali, talvez tivesse uns quinzes anos, embora o rosto redondo e o olhar inocente sugerissem menos. Quando ela colou o braço sobre a mesa, reparei na estranha pulseira feita do mesmo material da peça na minha cabeça, com o mesmo led verde aceso. Procurei o outro pulso e vi outra pulseira exatamente igual. Dois bloqueadores para ela.
— O que você faz? — perguntei curiosa em saber o que o vírus M tinha feito com ela.
— Sou termocondutora.
— Deise é tipo um micro-ondas com pernas — Lily completou, apontando o garfo de plástico para a parceira.
— Para de me comparar com eletrodomésticos, Lily! — Reparei em como Deise franzia o nariz quando ficava com raiva parecia que ela ia espirrar. Sorri de canto de boca
O bloqueador de Lily era igual ao meu. Estava espetado na têmpora esquerda, o que significava que o vírus mórfico também modificara seu cérebro e não o corpo como no caso de Deise ou Suna. Mas o que ela sabia fazer? Nem foi preciso perguntar, ela se apressou em me explicar com o queixo erguido:
— Já eu sou uma Caçadora. Faço qualquer mórfico ficar com o rabinho entre as pernas só com um olhar.
— Como?
— Ela manipula ondas cerebrais — foi Deise quem baixou a bola dela. — E você não pode controlar qualquer mórfico, Lilyan, só os menores.
— Como assim? E Aquele titã grande pra cacete?
As duas pareciam irmãs, não pela aparência, mas pelo modo de se insultarem. Ester e o irmão dela faziam a mesma coisa. Suna deu de ombros e deixou as duas discutindo enquanto me puxava para a vitrine da máquina de comida.
Ficar de frente para a comida foi o suficiente para fazer meu estômago praticamente gritar, mesmo pelo vidro eu conseguia sentir o cheiro delicioso escapando pelas frestas.
— Nossa, você tem um mórfico aí dentro ou quê? — brincou Suna ao ouvir o ronco nas minhas entranhas. Eu teria ficado constrangida se não estivesse tão faminta. Apertei uma sequencia aleatória de botões na vitrine e fiquei assistindo a bandeja deslizar lá dentro enquanto braços robôs empilhavam os potinhos de comida sobre ela. Sunahara se contentou com suco, pão e uma fatia de queijo branco. Voltei para a mesa equilibrando a bandeja sob os olhares arregalados das duas garotas.
— Uau! Achei que meninas ricas estivessem acostumadas a comer aquelas porções minúsculas dos restaurantes chiques. — Lily me encarava, com a mão apoiando o queixo. Ela já tinha terminado de comer e riscava sua bandeja com a ponta do garfo.
— Quem disse que sou rica? — retruquei começando a atacar meu bolo de cenoura, achei que fosse ter o gosto plástico da maquina, mas estava delicioso e fresco; talvez fosse o efeito da fome.
— Seu pai é rico. Você é filha do seu pai. Então você é rica também. — Ela falava como se aqueles fatos redundantes fizessem parte de uma equação.
— Não faz diferença agora. — Dei uma farta mordida no bolo, dispensando o garfo de plástico.
Ela ficou me observando um bom tempo, até cruzar os braços sobre a mesa e apoiar parte de seu peso sobre ela. Naquela posição vi que a tatuagem não era de uma fênix, como eu tinha achado antes, era um mórfico titã alado. O desenho era bonito, tenho que admitir.
— Deixa eu adivinhar, Suna — Lily estreitou os olhos. — Ela fez você levar um tiro ontem? — Sunahara apenas balançou a cabeça concordando. Ela sorriu. — Eu sabia! Dá pra ver no olhar dela que é do tipo que xinga o diretor no primeiro dia. Gostei de você. Vomitou muito quando viu o sangue?
— Lily, estamos comendo! — Suna reclamou do meu lado.
— Não vomitei. A propósito, eu vim parar aqui porque quebrei as pernas de uma babaca, sabia? — Minha colega de quarto desistiu do suco ao me ouvir e ficou esperando-me terminar de falar sobre membros partidos ao meio. — E não xinguei o diretor, mostrei o dedo do meio bem na cara dele.
Eu queria parecer durona, como os gangsteres dos filmes que vão parar na prisão e têm que mostrar atitude para o líder de uma gangue (e Lily poderia ser muito bem a líder daquela gangue minúscula). Porém, ela apenas riu da minha tentativa ridícula.
— Nem parece a patricinha mimada dos programas de fofoca. — Acho que aquilo foi um elogio, ou uma tentativa tão ridícula quanto a minha.
Diferentemente de Lily, Deise teve a decência de esperar eu terminar de comer para começar a fazer perguntas, ela parecia estar curiosa com minha presença ali.
— O que você faz Anabel? — perguntou ela, como eu pisquei sem entender, ele reformulou a pergunta: — Você disse que quebrou as pernas de alguém. O que vírus fez com você?
Tomei um gole de suco e pensei antes de responder.
— Eu... É... Eu esmago coisas e as faço flutuar também.
— Telecinese? — Lily opinou.
— Não. Quer dizer, acho que não é isso. Tem a ver com a densidade dos objetos, gravidade ou sei lá...
— Você não sabe como funciona? — Deise insistiu.
— Eu sempre evitei usar isso. Na verdade, nunca precisei. — Uma sombra deve ter cruzado meu rosto, porque os três me encararam com olhares complacentes. — Há quanto tempo estão aqui? — tentei tirar o foco da conversa de mim.
— Eu estou aqui há cinco anos — respondeu Deise com olhar baixo.
Lily riu para seu garfo e respondeu:
— Me pegaram há três anos, quando eu fiz uma revoada de pombos cagar o presidente da Cúpula no meio de um discurso em um evento público. Aquele cara fala muita merda.
Eu lembrava daquilo, saiu em todos os jornais. Virou um baita meme na internet. Eu tinha achado engraçado na época e jamais poderia ter imaginado que uma adolescente tinha feito aquilo com habilidades psíquicas.
Então era isso, como Sunahara havia dito, existiam mesmo outros como eu, capazes de fazer coisas que desafiavam a ciência. Assoviei baixinho, com um tipo estranho de alívio. Eu já não me sentia a garota mais bizarra do mundo ali dentro, na verdade, já me sentia como membro daquela gangue, uma gangue bem estranha.
Ambas as garotas me encheram de perguntas sobre minha vida na alta sociedade. Deise quis saber como era a faculdade, o que fazia nas aulas e a que passo andava o mundo lá fora. O papo, entretanto, acabou quando um dos drones de vigilância desceu rápido e ficou pairando sobre a mesa, bem na minha frente. Eu quase virei com a cadeira.
— Anabel Luz De Castro, acompanhe o drone até enfermaria — ordenou a voz de alguém através dos alto-falantes da máquina. O sangue me fugiu do rosto e logo pensei em uma nova agulha me espetando. Encarei Sunahara.
— Deve ser um exame de rotina — ela tentou me tranquilizar. — Pra verificar seu bloqueador.
Desajeitada de medo, levantei e segui a esfera flutuante até o elevador, enquanto ouvia o Fica de boa, Anabel sussurrado por Lily. Enquanto as portas se fechavam na quase escuridão, só pude imaginar o motivo de terem mandado uma máquina me buscar, ao invés de um dos guardas enormes. A caixa começou a subir.
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