Capítulo XVII: Novas Dúvidas.
Houve um momento em que lágrimas pararam. Elas não mais estavam descendo de meus olhos e escalando por meu rosto, não mais se acumulando no confortável travesseiro abaixo de minha cabeça, criando uma sensação confortável de umidade e calor.
Mas não quero que isso seja mal interpretado; não era como se a tristeza dentro de mim tivesse desaparecido de uma hora para outra, ou como se eu tivesse me esquecido dela.
Era mais como se meu corpo não mais tivesse forças e nem recursos para produzir aquelas representações da minha tristeza. A que ponto eu havia chegado, que até mesmo meu próprio corpo recusava-se a sentir pena de mim?
Eu já havia chegado até aquele ponto algumas vezes enquanto vivia com meu pai. Um ponto em que não haviam mais lágrimas para derramar, nada para fazer ou para sentir.
Inspirei e expirei uma vez.
— Ah, faça-me um favor. — Era Catherine.
Eu quase dei um pulo, uma guinada junto com meus batimentos cardíacos, aqueles de uma presa surpreendida por seu predador natural. Puxei as cobertas em minha direção com toda minha força, como se elas fossem me proteger de Catherine.
— O que é você, um bebê? — Não havia ódio em suas palavras, mas um ressentimento profundo. Queria eu saber do que se tratava.
O que eu havia feito para que ela estivesse com aquele ressentimento? Talvez fosse mais um motivo para meu corpo não desistir de mim e permitir que eu produzisse lágrimas mais uma vez.
E naquele momento eu fui puxada para os confins da minha própria consciência. Meu corpo foi deixado ali, abandonado na frente de Catherine para que ela fizesse o que bem entendesse; e havia certa liberdade naquilo, pois eu sabia que não haveria nada que eu pudesse fazer, mesmo se quisesse.
Eu não estava mais naquela sala, mas nos confins de minha mente. Era um lugar escuro, que refletia o espaço onde eu havia passado a maior parte de minha vida.
Haviam muitos corredores que se espalhavam a partir do ponto onde eu estava, formando um emaranhado de caminhos escuros e de paredes rachadas pelo tempo e pelos meus próprios pensamentos.
Aquele era um lugar seguro. Apesar de procurar pela luz, havia um conforto que só o escuro trazia. Pois quando não se pode ver, não se pode fazer, e não podendo fazer, eu não poderia me culpar.
Mas, naquele momento em específico, quando eu recuei para os corredores de minha mente, eu notei uma luz. Ela foi ficando mais forte e não importava o quanto eu corresse na direção oposta, não importa o quanto minha respiração se tornasse fragilizada pelo esforço, não importavam os frangalhos que meu coração estava se tornando...
— O que você está fazendo?
Aquela única pergunta foi o que ecoou pela minha mente antes que eu estivesse de volta no quarto, na frente de Catherine, que tinha as sobrancelhas arqueadas e os lábios crispados; seus olhos mostrando um sentimento primordial que eu não conseguia muito bem identificar.
— Ei, está aí? — Ela perguntou. — Parecia que estava apagada. Pensei que teria que ajudar.
Catherine disse aquilo com nojo; onde no mundo ela teria de ajudar alguém como eu? A repulsão em sua voz era a ideia que eu absorvia de suas palavras.
— Se eu precisasse, — Perguntei, um pouco mais melancólica do que havia previsto. — Você me ajudaria?
Catherine pareceu dar um passo para trás. Não literalmente, ela apenas foi pega de surpresa pela minha pergunta.
— Acho que deixei bem claro que não me importo nem um pouco com uma humana como você. — Catherine ajeitou o cabelo e se virou na direção da porta. — Se me perguntassem, poderiam beber seu sangue e devorar sua alma. Eu não me importaria nem um pouco.
Eu me encolhi na cama, e os lábios de Catherine se levantaram para mostrar um leve sorriso. Ela sabia que havia conseguido o que queria.
— De qualquer forma. — Aquela era a voz de Henry, parado a porta. Catherine quase deu um pulo ao ver que sua pequena performance havia sido ouvida. — Está na hora do jantar. Senhor McIntyre está chamando-a, senhorita.
Ele disse, estendendo a mão em minha direção. Catherine ficou olhando para ele durante alguns instantes, como que procurando alguma maneira de continuar por cima.
Até que, por fim, ela encontrou.
— Mas ela está horrível! — Disse, e era horrorosamente doloroso o quanto aquela preocupação soava falsa, em vista do que ela havia dito mais cedo. — A pobre coitada deve ter passado a tarde inteira chorando. Venha, eu irei ajudar a lhe arrumar.
— Era por isso que estava aqui, Catherine? — Henry levantou uma sobrancelha e olhou em minha direção.
Eu queria gritar e dizer que não. Desmentir Catherine e pedir por ajuda, implorar para que ele não fizesse aquilo, não me deixasse ali sozinha com aquela criatura em forma de criança. Mas foi o que Henry fez.
— Bem, seja breve. — Ele respondeu, se virando para o corredor. — Irei informar o senhor McIntyre.
Aquele foi um dos momentos em que tudo parecia desacelerar, como se eu fosse um floco de neve caindo em direção ao solo. Tão leve que mesmo em queda tinha a chance de ver todo o mundo que me cercava.
E o que eu vi, naquele momento, foram as bochechas de Henry. Elas pareciam levemente saltadas, como se ocultassem um sorriso.
De qualquer forma, não tive tempo de mergulhar naquele conhecimento, com Catherine aparecendo ao lado de minha cama e puxando-me para fora sem nenhuma delicadeza.
Então, para o que achei que fosse meu bem estar, escondi a informação em um recanto escondido de minha mente. A desculpa de que iria olhar para ela mais tarde era tão efêmera que nem mesmo eu acreditava.
Porque eu não queria acreditar no que meus olhos haviam me mostrado.
Será que era estranho eu ainda me surpreender com toda a força que Catherine tinha? Apesar de parecer bem mais nova que eu, Catherine estava me puxando na direção do closet como se eu fosse uma simples boneca.
— Veja só o que você me fez passar. — Ela murmurou, parecendo realmente ofendida. — Sinceramente, você não tem jeito.
Eu me encolhi ao máximo que pude e passei pelos momentos seguintes sem prestar muita atenção.
Como consequência, apenas sei que Catherine me ajudou a me vestir com um novo vestido — igualmente vistoso àqueles que Silvester estava experimentando naquele dia — e a maquiar meu rosto para disfarçar as olheiras e as trilhas deixadas pelas lágrimas.
Meu coração havia afundado um pouco com a lembrança de Silvester, mas Catherine me deu um tapa em minhas costas, como se percebesse que aquele não era um bom momento.
E isso significava que era um ótimo momento para que ela fizesse quaisquer coisas que fossem me acertar, pois iriam doer o dobro.
— Vamos, sua coisinha. — Ela disse, já aparecendo na porta do quarto. — Acho que consegue ir até a sala de jantar, certo? Que bom! Te espero lá.
Eu mal tive a oportunidade de respirar e ela havia desaparecido nos corredores da mansão, que só não eram tão confusos quanto aqueles que existiam dentro de minha própria mente.
Caminhei através deles com uma certa incerteza, guiando-me apenas através das memórias esvoaçadas de Henry me conduzindo na direção da sala de jantar, ainda naquele dia.
Mas, por algum motivo, a memória me parecia incrivelmente distante. Passou pela minha cabeça a ideia de que eu estivesse ali a vida inteira, e só não soubesse daquilo ainda.
Eu me surpreendia como a mente podia ser um emaranhado sem nenhum sentido ou motivo. Coisas que aconteceram tão recentemente carregavam tão pouco peso, enquanto coisas mais passadas ainda me assombravam.
Como a morte de Nora. Eu ainda me lembrava dela. A memória ainda estava ali, um ferimento tão fresco que ainda sangrava. Eu estava me martirizando por aquilo, querendo me focar nas imagens para poder encontrar novos jeitos de me culpar.
Mas eu não podia, porque os acontecimentos tomando seu lugar a minha frente simplesmente não iriam esperar.
Quando cheguei a sala de jantar, já estava de noite. Podia ver isso pelas diversas janelas que haviam espalhadas pelas paredes com tintura cor de creme.
Um sol poente era o que eu via, estava lançando seus tons de vermelho no horizonte como queimaduras e garras, enquanto a lua acendia, lançando sua luz prateada como uma cura para as feridas causadas pelo astro rei.
Apesar de estar anoitecendo e não haverem velas nas paredes, a sala se mantinha estranhamente clara. Olhei para o teto e para os candelabros caríssimos que ponteavam o teto — três ao todo, cada um deles feito de cristal — e notei que emitiam uma luz constante e mais poderosa do que a de velas. Aquilo ainda me surpreendia.
Uma tosse controlada chamou minha atenção para onde ela deveria ter estado desde o momento em que entrei na sala. A mesa.
Sentado na cabeceira, trajando vestes de cor marrom escura, estava Benjamin. À esquerda estava Henry, tendo algumas cores mais claras em suas vestimentas. A única com cores vermelhas e escuras estava a direita de Benjamin, apenas uma cadeira os separando.
Todos me olhavam com expectativa, como se aquilo fosse uma espécie de teste. Engoli seco, tentando me lembrar das lições que Henry havia me aplicado mais cedo, quando Benjamin apareceu a minha frente.
Ele estendeu o antebraço para que eu segurasse e então caminhou comigo até a mesa, onde puxou uma cadeira ao lado direito da cabeceira onde ele mesmo estava sentado. Essa parte, ao menos, eu me lembrava.
Sentei-me sobre a cadeira e Benjamin empurrou-a até que eu estivesse confortável. Um segundo depois ele já estava sentado ao seu lugar de direito sobre a cabeceira.
Até mesmo para mim, uma completa estranha àquele ambiente, parecia completamente natural a sua posição na frente de todos. Ele lançou-me um olhar que perfurou através de minha mente e me diminuiu e me fez virar uma massa pegajosa e...
Benjamin pegou um guardanapo e depositou-o, calma e lentamente, sobre seu colo. Henry e Catherine seguiram sua deixa, e assim eu também fiz. Henry e Benjamin pareceram satisfeitos.
Henry olhou na direção de Benjamin, que apenas assentiu. Henry limpou a garganta.
— Agora, iremos continuar nossa lição sobre etiqueta. — Henry sorriu para mim, e não consegui evitar que meu rosto devolvesse o ato. — Estaremos apreciando uma sopa esta noite.
Henry então lançou um olhar para Catherine, que levantou-se e serviu os pratos fundos dispostos a frente de todos com a mistura turva, quente e de cheiro muito agradável.
Em seguida, Henry meneou a cabeça na direção de Benjamin, que assentiu e pegou uma colher funda que ficava ao lado das facas.
Mais cedo, durante uma introdução, Henry havia me dito que aquele talher serviria para sopas. Logo em seguida ao movimento de Benjamin, todos, incluindo eu, muniram suas mãos com a respectiva colher.
A sopa estava deliciosa. Henry fez alguns comentários sobre como eu deveria segurar os talheres e como deveria levar a sopa até minha boca, mas pareceu relativamente satisfeito ao final.
Quando terminamos a refeição, Henry disse que era costumeiro continuar durante mais um tempo para conversarmos. Foi Benjamin quem pegou a palavra.
— A sopa estava esplêndida, Catherine. — Benjamin olhava para Catherine, que sorriu levemente.
— Foi Catherine quem preparou? — Perguntei, baixo, olhando para as pequenas piscinas de sopa em meu prato que a colher não conseguia conter.
— Nós nos revezamos para produzir as refeições. — Explicou Henry. — Em noites frias, é a vez de Catherine. Como pôde observar, suas sopas e assados são simplesmente ótimos.
Pelo canto de meu olho, pude ver Catherine sorrindo. Seu ego estava sendo bastante inflado naquele momento, e seu queixo parecia estar um pouco mais alto.
— Em noites quentes, é a vez de Henry. — Foi Benjamin quem continuou, e parecia que todos olhavam para ele no instante em que abria sua boca. Benjamin tinha este efeito. — As carnes e saladas que desfrutamos nestas noites são formidáveis.
— E o que achou de minha sopa, senhorita? — Perguntou Catherine, me interrompendo quando eu estava prestes a abrir a boca para perguntar sobre quais pratos, e em quais ocasiões, Benjamin cozinhava. Acho que foi melhor assim.
— Estava muito boa. — Eu respondi com sinceridade, sem conhecer muitos daqueles elogios que eles usavam entre si. Mas Catherine levantou uma de suas mãos para cobrir uma risada amistosa, então acho que recebeu da forma que eu queria.
A conversa continuou durante mais alguns minutos antes que Benjamin e Catherine se levantassem. Henry retirou os pratos e os talheres sujos e desapareceu com eles para algum lugar da mansão, na direção contrária a Catherine.
Presumi que quem preparava não precisaria limpar. Eu percebi que estava sozinha na sala com Benjamin, e seu olhar estava caindo sobre mim.
— Encontre-me em meu escritório para sua próxima lição. — Ele disse, se virando para os corredores e desaparecendo de minha vista também.
Já havia me levantado de minha mesa e, mesmo se eu tivesse quaisquer forças para resistir a convocação de Benjamin, eu me lembrava muito bem do que ele havia feito quando o desafiaram.
Minha respiração se descompassou, e em um instante eu não estava mais parada em uma sala vazia, mas sim caindo por um desfiladeiro aparentemente infinito de rochas pontiagudas que machucavam minha pele enquanto eu caia.
Eu tentei respirar, mas puxar o ar de forma a encher meus pulmões parecia impossível, e a agonia proveniente disso inundou meu ser. Levantei uma mão e limpei uma lágrima que ainda não havia terminado de nascer no canto de meu olho.
Já havia demorado demais, e, mesmo sem conseguir aquela respiração propriamente dita, me arrastei até o escritório de Benjamin.
— Está atrasada. — Foi a frase que me recepcionou.
— Me desculpe. — Abaixei a cabeça e me sentei a frente da mesa de Benjamin.
Pude ouvir ele soltando um suspiro antes de sua próxima frase.
— Agora que teve quase todo um dia para descansar e preparar sua mente, — Benjamin começou. — Creio eu que possamos continuar de onde paramos na última lição, correto?
Sem ter quaisquer outras opções para resposta, eu apenas assenti positivamente com a minha cabeça. Levantei meus olhos e me foquei nos dele, não querendo me perder e nem decepcionar aquela pessoa.
Os lábios de Benjamin me deram um leve vislumbre dos dentes brancos que escondiam, e ele começou a falar um pouco mais rápido do que antes. Mas, daquela vez, eu consegui acompanhar durante muito mais tempo.
Meu currículo estudantil não era dos melhores antes de chegar até a mansão McIntyre. Minha mãe havia conseguido me fornecer apenas ensinamentos básicos sobre como falar e contar, como me vestir e como me portar. Ensinou-me a cozinhar e também a lavar minhas próprias roupas, mas era só.
Eu nunca havia imaginado que iria aprender história em toda a minha vida, mas ali eu estava, aprendendo com alguém que havia estado lá para presenciar todos aqueles acontecimentos.
Após algum tempo falando sobre as primeiras grandes cidades e as primeiras guerras entre as sociedades humanas primitivas, Benjamin penetrou profundamente em meus olhos e parou seu discurso.
— Há algo que lhe incomode, senhorita McIntyre? — Benjamin perguntou.
— Eu estava... Estava pensando sobre os devoradores. — Disse, abaixando meu olhar para meus dedos polegares, que dançavam ao redor de si mesmos.
— Ora. — Consegui ver as bochechas de Benjamin se levantarem levemente pelo canto de meus olhos. — Tem interesse neste tipo de assunto, senhorita?
Eu tentei apenas sorrir para responder positivamente, e Benjamin pareceu entender o que eu queria dizer.
— Bem, já se passaram quase duas horas, e não tomarei mais de seu tempo com esta lição. — Ele estava atrás de mim, uma mão em meu ombro, antes de terminar sua frase. — Por que não passa pela biblioteca? Reuni um bom acervo ao longo dos anos, e alguns livros podem ter o tema que está procurando.
— C-certo. — Eu respondi, me levantando. Ele me deu um tapa leve sobre meu ombro.
— Está dispensada. Tenha uma boa noite, senhorita McIntyre.
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