Capítulo XVI: Novos Tutores.

    Levantei-me de uma noite sem sonos para uma manhã tempestuosa, as garras furiosas da chuva tentando atravessar a janela que ficava do outro lado da cama com todas as suas forças.

    "Sem sucesso", eu suspirei aliviada.

    Apesar de estar chovendo, as nuvens pesadas e tempestuosas ocultando toda a luz do sol, eu percebi que permanecia estranhamente claro dentro de meu quarto.

    Me levantei de minha cama, jogando os pesados cobertores que haviam me protegido durante a madrugada para o lado. Fiquei de pé no centro do quarto, olhando para uma estrutura de cristal que havia no centro do teto.

    Emitia luz por conta própria, como uma vela. Mas não era uma luz amarelada e frágil, que balançava como se fosse apagar com o menor sopro de vento — Eu tentei assoprar para ter certeza de que não se tratava de uma chama.

    Duas batidas na porta fizeram meu coração pular duas batidas e minha respiração descompassar. A memória de meu pai batendo na porta do porão encontrou seu caminho e desencadeou a reação de medo subsequente.

    — Posso entrar, senhorita? — Era a voz de Henry do outro lado. — Está na hora de tomar o café da manhã.

    Eu dei alguns passos incertos na direção da porta, sentindo o tapete de pele mantendo meus pés quentes enquanto eu caminhava. Assim como eu esperava, Henry estava lá.

    Ele sorriu educadamente para mim, e eu recuei um passo.

    — Perdoe-me a pergunta, — Henry balançou a cabeça, seus olhos parecendo nublados. — Mas a senhorita já teve aulas de etiqueta à mesa?

    — O que?

    Pude ver traços de um sorriso se formando em seus lábios.

    — Como deve se portar, como comer, beber... — Ele gesticulava com as mãos enquanto falava, como que se referindo a exemplos que somente ele podia ver. — Este tipo de comportamento.

    Balancei a cabeça em negação, o que pareceu fazer Henry se animar ainda mais.

    — Bem, fico feliz por isso, se me perdoar a indiscrição. — Henry se virou na direção do corredor. — Vamos para a sala de refeições, eu irei ensinar o que eu sei sobre o desjejum.

    Eu não me sentia nem um pouco a vontade para recusar seu pedido, e caminhei junto a ele pelos grandes corredores da mansão.

    Em sua maioria, eram dominados por tons de creme e branco, a única exceção sendo as partes de madeira escura ricamente esculpida que ficava próxima ao chão.

    Algumas paredes portavam grandes quadros de grandes figuras que eu nunca havia ouvido falar. Podia dizer que eram grandes devido as suas posições enquanto retratados, e a riqueza com a qual se vestiam.

    Voltei minha atenção para Henry para não me perder no labirinto de corredores que havia naquele mundo interior que era a mansão McIntyre.

    — Eu gostaria de perguntar, — Henry rompeu o silêncio e puxou meu olhar para sua figura. — Está aproveitando sua estadia?

    Naquele momento, houve alguma coisa dentro de mim — dentro de minha cabeça — que pareceu estranhamente incomodada com a pergunta. Como se eu fosse um vespeiro, que Henry acabara de cutucar.

    Havia algo errado naquilo, em como todas as peças pareciam simplesmente estar no lugar, em como eu estava apreciando a beleza daquele lugar com tanta naturalidade.

    Alguma coisa não me cheirava bem naquele quebra-cabeça de peças de ouro tão bem encaixado. Havia alguma coisa sendo ocultada por baixo, mas eu não conseguia dizer o que era.

    Henry colocou uma mão sobre meu ombro e tirou-me de meu transe, seu olhar de preocupação transfixando o meu.

    — Está tudo bem? — Henry perguntou, e eu só consegui balançar a cabeça afirmativamente em resposta.

    Ele me deu uma expressão afetada antes de se levantar e continuar pelos corredores. Henry murmurou um "me desculpe", que assumi ser relacionado a pergunta.

    Após uma eternidade de caminhada pelos aparentemente infinitos corredores da mansão, chegamos em um grande cômodo. Havia uma mesa em seu centro, que ocupava praticamente todo o espaço, o que me fez presumir que aquela era a dita sala de refeições.

    Henry guiou-me através do piso de madeira e eu hesitei um pouco quando meus pés tocaram a superfície fria.

    — Irei requisitar calçados adequados para a senhorita logo. — Henry olhou para trás no mesmo momento em que eu parei. — Até lá, peço que desculpe-nos por essa falha em nossa conduta.

    Assenti com a cabeça, olhando para Henry enquanto ele foi até uma das diversas cadeiras que pontilhavam a gigantesca mesa. Sobre ela espalhadas estavam diversas bandejas e talheres de prata, além de um candelabro posicionado sobre o exato meio da mesa.

    Henry olhou para mim com expectativa, apenas para balançar a cabeça quando eu não fiz nada. Ele soltou uma risada animada logo após.

    — Parece que eu vou ter mais trabalho do que eu esperava.

    Henry deu um passo em minha direção.

    Eu recuei um passo.

    — Veja bem, — Ele ajeitou alguns fios de cabelo que caíram sobre sua testa. — Antes de uma refeição, se estiver acompanhada de um homem, ele irá puxar a cadeira para que se sente. É um convite.

    Assenti com a cabeça, ainda olhando fixamente para o meu reflexo dentro da piscina de âmbar que eram os olhos de Henry.

    Ele gesticulou com a mão na direção da cadeira que ele havia puxado, um olhar de expectativa em sua face.

    Seguindo sua deixa, eu dei alguns passos na direção da tal cadeira. Me sentia estranha, era errado me sentar ali.

    Eu não tinha aquele direito. Não depois do que eu fizera.

    Mas ele estava me convidando e eu precisava me sentar. Por algum motivo, apesar de não poder, eu precisava.

    Henry empurrou a cadeira para que eu me aproximasse da mesa quando eu me sentei e, um instante após, ele estava do outro lado da mesa, já se sentando.

    — Agora, antes de se servir, deve colocar este guardanapo sobre sua cintura. — Ele disse, apontando para um pedaço de tecido branco que estava dobrado sobre a mesa.

    Ele mesmo pegou aquele a frente de si e depositou-o em sua cintura. Tentei olhar por baixo da mesa para ver como ele fazia, com medo de falhar.

    — Ora, não se preocupe. — Ele disse, percebendo minha reação. — Eu sei que você consegue.

    Eu suspirei, peguei o guardanapo de tecido e todo o mundo em minhas mãos e joguei-o sobre minha cintura, esperando uma explosão.

    Ela veio, no formato de palmas alegres de Henry.

    — Muito bem. — Sua face era de aprovação. — Vamos continuar?

    — Si... Sim. — Eu respondi, sem conseguir evitar que meus lábios se curvassem levemente.

    Henry apontou na direção dos talheres que estavam sobre a mesa. Posicionados em ordem, seguindo um conceito que eu não era capaz de compreender.

    — Você só poderá tomar os talheres em mãos quando aquele que lhe convidou pegá-los. — Henry disse, pegando um dos garfos e uma das facas que estavam posicionados no meio daquela bagunça organizada.

    Vendo que eu não tinha entendido quais eram, ele apontou para o primeiro garfo a esquerda e a terceira faca a direita.

    — Estes são garfo e faca de entrada. — Henry explicou. — Seu nome já diz para que servem, mas iremos usá-los agora.

    Assenti antes de olhar para os talheres posicionados a minha frente. Com as mãos trêmulas, peguei eles e os levantei. Henry fez sinal para que eu os abaixasse.

    — É considerado falta de educação deixar os talheres nessa posição. Apenas segure-os. — Ele advertiu, em um tom calmo. — Vamos comer?

    Henry sorriu para mim antes de destampar uma das bandejas de prata, que continha alguma espécie de bolo.

    A lição continuou durante mais alguns minutos, cobrindo alguns pormenores sobre a velocidade com a qual eu deveria comer e como eu deveria parar quando o hospedeiro começasse a falar.

    Enquanto Henry estava ocupado me ensinando como beber chá, Benjamin entrou no recinto. Esta foi a primeira vez que o vi e ele não me causou calafrios demais para não conseguir olhar. Era como se fosse uma figura completamente diferente, sem toda aquela aura de agressividade e perigo ao seu redor.

    Benjamin limitou-se a ficar ao redor, sentado em uma das poltronas que estavam dispostas nas laterais da sala. Ele me observava, eu sentia seu olhar me atravessando, mas eu não conseguia me focar em muito mais do que aquilo que Henry estava a falar.

    — Olhe só, ela tem talento para alguma coisa. — Era Catherine. Eu não tinha certeza de quando ela havia se feito presente na sala; poderia ser há uma hora ou há alguns segundos, eu não conseguia dizer.

    Catherine me chamou para fora da realidade onde eu estava ao bater palmas nada amistosas. Um tremor tomou minha mão e fez com que eu derrubasse o chá que estava tomando, junto com a xícara de cerâmica caríssima, sobre a mesa.

    A expressão de Benjamin se escureceu e, apesar de não ter visão clara dele, eu sabia disso. Pois foi como se todo o ambiente reduzisse sua luminosidade um pouco. Henry lançou um olhar para Benjamin, que se levantou.

    — Creio que isto seja suficiente por hoje. — Henry ditou, se afastando junto a Catherine.

    Eu tentei me levantar também, querendo segui-lo, mas a certeza de meus movimentos desvaneceu tão logo eu coloquei-me de pé.

    — Senhorita McIntyre. — Benjamin limpou a garganta, e algo em sua voz simplesmente fez-me presumir que era comigo que ele falava. — Acompanhe-me, irei ministrar sua próxima lição.

    Benjamin me guiou pelos corredores, da mesma maneira que Henry havia feito. Ele caminhava da mesma forma e mantinha o mesmo silêncio, mas havia alguma coisa diferente. Benjamin simplesmente não era Henry, e até mesmo o ambiente parecia saber disso.

    Paramos em frente a uma porta dupla de madeira ricamente esculpida, duas placas de vidro, que se aninhavam perfeitamente entre a madeira, permitindo uma visão do interior.

    Benjamin abriu as portas e adentrou o recinto após elas como se fosse uma nuvem de tempestade. Em um segundo, estava a porta junto comigo. No outro, estava sentado a sua mesa como se já estivesse lá anteriormente.

    — Entre, senhorita McIntyre. — Ele chamou.

    — Esse... — Eu tentei começar.
   
    — Perdão? — Benjamin levantou uma sobrancelha.

    — Esse não é meu nome. — Agora, com a distância de Henry, era como se aquela pequena voz na caixa dentro de minha cabeça pudesse falar mais claramente. — Meu nome é...

    — Pouco importa. — Benjamin me cortou. — Seu primeiro nome é Noelle e seu antigo sobrenome fora o mesmo de sua mãe, Saotome. Devido ao tempo que passou com os Hawthorne, imagino que se sinta como parte de sua família.

    O nome Hawthorne, dito daquela forma por aquela pessoa me acertou em cheio em minha barriga e eu só queria cair no chão e chorar mais uma vez.

    — Mas não cometa este erro. — Benjamin me lançou um olhar tão frio que me congelou instantaneamente no lugar onde eu estava. — Você nunca foi e nunca será uma Hawthorne. A execução de sua matriarca fez com que os membros da família se separassem. São pouco mais do que vermes neste momento. Literal e figurativamente.

    Meus lábios tremeram, e lágrimas ameaçaram descer por meu rosto. Mas o olhar de Benjamin ainda me mantinha congelada em meu lugar, e eu simplesmente não conseguia fazer nada além de receber aquela saraivada de informações cruéis.

    — Agora, eu, Benjamin McIntyre, permaneço o nobre responsável pela cidade de Hampton Beach. — Como se ainda não fosse suficiente, ele continuou. — E foi em minha misericórdia que tomei a decisão de tomá-la sobre minha guarda, criá-la como minha protegida. Por isso, a partir de hoje, para todos os efeitos, você é uma McIntyre.

    Benjamin parecia ter terminado de falar, mas o torpor causado por suas palavras e seu olhar ainda estava em meu corpo. Só conseguia olhar para ele da mesma posição em que eu estava antes que ele me alvejasse.

    Ele abriu algum livro grande e que parecia muito velho e muito pesado e muito...

    — O que está esperando, senhorita McIntyre, um convite direto? — Ele disse. — Entre de uma vez.

    O efeito que ele causava não era o mesmo que Henry. Era parecido com o de Catherine, mas algo diferente por si só.

    Porque, diferentemente de Catherine, eu sabia que não havia nenhuma mentira em sua voz. Absolutamente tudo o que ele me falava era a mais pura verdade, acompanhada do poder de fazer o que ele quisesse se tornar realidade.

    A sensação que eu tive foi de que ele pudesse dividir o mundo ao meio se assim quisesse. Poderia fazer o mesmo comigo sem uma fração do esforço.

    Por esse motivo eu entrei e sentei-me a frente de sua mesa. Ele começou a lecionar sobre diversos itens da história, desde o surgimento dos humanos até a formação das primeiras cidades.

    E Benjamin falava sobre tudo aquilo com tanta paciência e eloquência, a mim parecia que ele estava lá quando aconteceu. Encolhi-me em minha cadeira quando percebi que, sim, ele estava lá.

    Apesar de eu estar ali diante dele, foi muito pouca a informação que eu consegui absorver. Apenas uma parcela ínfima de tudo o que ele havia falado.

    Imaginei que foi por tal motivo que, após apenas trinta minutos da lição, Benjamin fechou o livro com tanta força que achei que fosse quebrar a mesa bruta de carvalho por baixo.

    — Vejo que não consegue manter sua atenção em mim durante mais tempo. — Benjamin disse, se levantando. Eu pisquei e ele já estava à porta. — Está convidada a se retirar, senhorita McIntyre. Retorne a seus aposentos até a hora da última refeição do dia.

    Me levantei, sem jeito, de minha cadeira e dei passos receosos na direção da saída, ainda com medo de que Benjamin fosse fazer comigo o que havia feito a Nora.

    Tão logo passei pelas portas duplas de seu escritório elas se fecharam com violência as minhas costas, e eu não mais conseguia ver Benjamin em seu escritório.

    Sem ter coragem ou motivo suficiente para desobedecer as suas ordens, achei meu caminho pelos corredores da mansão até meus aposentos. De alguma forma eu consegui não me perder.

    Lá dentro, joguei-me sobre minha cama e desatei em lágrimas.
   

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