Capítulo XI: Sombras E Cobras.
Muitas vezes meus sonhos não faziam sentido. Outras, eu achava que eram outra forma de me torturar.
Desta vez, acho que foram as duas coisas.
Levantei-me de minha cama na madrugada, com o barulho de algo batendo a janela. Ao jogar as cobertas para longe, pude notar que algo estava estranho. As cores do mundo ao meu redor eram diferentes. Mais escuras e sombrias do que me lembrava.
Havia um aperto em meu peito, algo que dificultava minha respiração e apertava o coração.
Caminhei até a janela e afastei uma cortina que não existia ali antes de que eu tivesse me deitado. Havia uma ave negra, creio que um corvo, bicando a janela furiosamente. Quando o corvo me viu, soltou um grasnar mal agourento e saiu voando.
O mundo se dobrou diante de meus olhos, como se alguém pegasse uma folha de papel e amassasse. Quando consegui enxergar de novo, eu estava no meio da clareira. Apesar de olhar para todos os lados, não conseguia ver muito adiante na escuridão que estava ali.
Mas ouvir os sons de aviso que se aproximavam eu conseguia. Eram como um sibilar e o chacoalhar de alguma coisa. Congelei quando fiz a ligação mental. Esta alguma coisa deveria ser uma cobra.
Dei dois passos para trás quando a dita cuja surgiu da escuridão a minha frente, se arrastando em alta velocidade na minha direção. Sem conseguir andar do jeito certo devido ao medo, acabei caindo no chão.
A cobra se levantou até que sua cabeça estivesse na altura de meus olhos e se voltou para trás. Eu sabia. Sabia que ela iria me atacar, e senti meu coração congelar, mandando sangue frio na direção do restante de meu corpo.
Mas havia outra coisa, ainda mais terrível, competindo por minha atenção.
Ao fundo, atrás da cobra, havia uma espécie de figura negra que caminhava em passos lentos em minha direção. Por algum motivo, senti mais medo daquela figura do que da cobra a minha frente.
Até que, antes dela me atacar, o mundo se dobrou novamente e quem estava a minha frente era Silvester.
A figura negra continuava se aproximando, sua escuridão engolindo tudo ao seu redor. Silvester se virou para ele e também foi devorada pelas sombras.
Puxei o ar com força demais quando uma espécie de tentáculo se movimentou, e minha cabeça voou para longe de meu corpo.
— Se acalme! Se acalme, minha querida! — Era Nora quem estava ao meu lado. — Não aconteceu nada. Foi apenas um mau sonho.
Eu estava deitada por cima das cobertas, e Nora estava inclinada sobre a cama, me abraçando. A situação me lembrou de quando minha mãe vinha me confortar durante as noites que sentia saudades dela.
Lágrimas escorreram de meu rosto, por um motivo que eu, à época, não sabia definir. Abracei-a com toda a minha força, colocando minha cabeça sobre seu ombro e deixando as lágrimas fluírem.
Nora pareceu estranhar durante alguns instantes, mas logo colocou sua mão sobre minhas costas para me acalmar.
— Está tudo bem. — Ela disse. — Ninguém vai lhe machucar. Você pode dormir. Eu estarei aqui para lhe proteger, minha filha. Para sempre.
Aparentemente, ainda era de madrugada naquele momento em que acordei. Nora prometeu que não iria sair dali, para que eu conseguisse dormir.
E, daquela forma bem maternal, ela se deitou ao meu lado e pôs seus braços ao meu redor. Em seu abraço, consegui respirar mais livremente do que havia em muitos anos.
A luz do sol veio me acordar novamente pela manhã. A mão de Nora passeou pelo meu rosto tão logo abri os olhos, afastando os cabelos que tampavam-me a visão.
— Bom dia, minha querida. — Nora se levantou da cama.
Não em seus movimentos rápidos e indecifráveis, mas em uma versão lenta e quase coreografada. Era claro que havia esforço no lugar de naturalidade naquelas ações. E, por algum motivo, isso me fazia me sentir bem.
— Bom dia, — Devo dizer que foi muito difícil não me referir a ela como mãe naquele momento. — O que faremos hoje?
— Vincent e Fergus sairão logo para comprar nossas passagens. — Nora foi até a janela, como que para checar algo.
— Passagens? — Me levantei da cama, mais rápido do que o normal, o coração batendo um pouco mais rápido.
— Sim. — Nora colocou uma mão sobre o vidro embaçado da janela. — Sua mãe está em um lugar bem longe daqui. Todos nós iremos para lá, para podermos reunir a família.
— Família... — Abaixei um pouco a cabeça, e acho que meu tom de voz também acabou caindo.
— Não se esqueça, Noelle, você também é parte desta família. — Nora virou a cabeça para mim, olhando-me por cima de seu ombro direito. — Fazemos tudo isso não apenas por nós, mas também por você. Se as famílias não se ajudarem, o que será deste mundo?
— Como eu posso ser parte da família? — Perguntei, em um tom muito baixo. — Vocês... Me conhecem faz tão pouco tempo.
Nora ficou em silêncio por alguns instantes. Pisquei os olhos, já umedecidos com algumas lágrimas.
— Noelle, já ouviu dizerem que o sangue é mais grosso do que a água? — Nora estava olhando pela janela novamente.
Enlacei-me com meus braços e senti a tremedeira em meus ombros começar. As água se acumulava em meus olhos e estava a um passo de saltar, escorrer por meu rosto e representar a quebra de meu coração. Mas não foi o que aconteceu.
Nora estava a minha frente, tendo se movido mais uma vez aquela velocidade que eu não conseguia compreender. Estendeu sua mão em direção a meu rosto e, usando de um pequeno e belo pano bordado, secou minhas lágrimas.
— A frase não está completa. — Ela disse, em um tom calmo e reconfortante. — Originalmente, diziam que o sangue derramado pela aliança era mais espesso do que a água que explodia do útero. Então, Noelle, de que importa se não temos ligações sanguíneas? Nossa família não é formada pela água do útero, mas pelo sangue da aliança. Quanto a isso não precisa se preocupar, minha querida.
Me lembro de que, em um momento, ela estava ajoelhada a minha frente. No outro, eu estava com a cabeça deitada sobre seu ombro, abraçando-a. Em meio a meus soluços e lágrimas desenfreadas ela proferia palavras de conforto e apoio.
E me lembro que essa ocasião foi onde eu me senti mais feliz.
Onde me senti mais segura.
— Nora. — Vincent abriu a porta algumas horas depois. — Eu e Fergus estamos prontos para sair.
— Muito bem. — Respondeu Nora, que estava parada na frente da única janela da cabana, encarando o vidro embaçado.
— Vai precisar de alguma coisa da cidade? — Vincent perguntou, antes de fechar a porta.
— Noelle, — Nora me chamou. — O que acha de irmos até a cidade comprar algumas roupas para você?
Meu coração palpitou. Fazia muito tempo que eu não ouvia as palavras "roupas para você".
Naquele momento, com meu coração batendo cada vez mais rápido, eu não sabia o que dizer.
Acho que Vincent notou isso.
— Vamos, Noelle, — Ele chamou. — Vai ser bom você passar pela cidade.
— M-mas — Eu comecei a falar, gaguejando. Tentei respirar fundo e reorganizar meus pensamentos. — Não pode ser perigoso?
— Não se preocupe. — Nora estava do outro lado da cabana, agachada na frente de algum tipo de cofre. A quantidade de dinheiro que ela pegou não foi pequena. — Eu e Silvester estaremos com você.
Sem ter nenhum motivo para negar — exceto o medo e a ansiedade que, naquele caso, não eram fortes o bastante para bater de frente contra o entusiasmo de Nora e Vincent — eu acabei aceitando a proposta de ir até a cidade para comprar roupas.
Todos nós nos encontramos na clareira. Nora havia me dado um vestido branco feito de linho, algo bem simples, mas bem melhor do que os trapos ensanguentados, surrados e acabados que eu usava.
— Como vamos chegar na cidade? — Perguntei.
— Teremos que ir andando até uma das estradas. — Fergus respondeu. — Lá, uma carruagem estará esperando por nós.
— E... Essa estrada — Inspirei fundo, tentando compensar a falta de ar. — É longe daqui?
— Duas horas caminhando a pé. — Fergus sorriu para mim. — Isso é, se for andando na sua velocidade.
Fiquei em silêncio olhando para ele, tentando entender o que queria dizer. De maneira repentina, Silvester se aproximou e colocou uma mão sobre meu ombro.
Olhei para trás, surpresa, e ela sorriu amigavelmente para mim.
— Agora diga quanto tempo leva para irmos na nossa velocidade até lá. — Silvester olhou para Fergus, e um desafio pareceu se formar ali.
— Alguns minutos. — Fergus disse, entrando na onda da provocação amigável de Silvester.
— Minutos? — Silvester riu. — Eu aposto segundos.
— Então é melhor se preparar. — Disse Vincent, entrando na brincadeira. — Eu aposto que chego lá antes dos dois.
— Vão na frente, então. — Era Nora, a única que parecia não entrar na aposta, apesar de portar um sorriso em sua face. — Eu irei levar Noelle. Nos encontraremos na carruagem.
— Certo. — Os três responderam, como se fossem crianças.
Instantes depois, cada um olhou nos olhos dos outros. Eu pude ver uma faísca nascendo ali.
E eles não estavam mais lá. Assim, em uma questão de segundos, o vento deixado para trás era a única testemunha de que alguém já estivera parado ali.
— Deixe eles se divertirem. — Nora se aproximou de mim, ainda parecendo a mais velha. — Eles precisam disso de vez em quando.
Eu estava sem palavras. A situação havia mudado muito rápido diante de meus olhos, e eu ainda não tinha conseguido entender. Nora me apresentou uma expressão calmante e maternal e continuou.
— Eu irei levá-la. — Ela disse. — Pode subir em minhas costas ou eu posso carregá-la nos braços. Qual vai preferir?
— Nos braços. — Eu engoli em seco com o pensamento de acabar caindo no meio da floresta enquanto ela corria naquela velocidade deles.
O mundo pareceu girar ao meu redor durante dois segundos, e eu estava então nos braços de Nora. Um sob meu pescoço e outro abaixo de meus joelhos. Ela olhou na direção da floresta e após um rápido "se segure", as cores de tudo pareceram se misturar em um borrão.
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