Capítulo X: Algo Novo.

    O céu estava estrelado e sem nuvens quando eu coloquei o pé para fora da cabana.

    A luz do fogo emanava de um dos cantos da clareira, e tentei evitar olhar naquela direção.

    Porque sabia as pessoas que estariam reunidas lá.

    Vincent estava caminhando ao meu lado. Seus passos provavelmente me levariam até aquele canto da clareira para o qual eu não queria olhar.

    Acho que Vincent percebeu isso, porque suas mãos estavam em meus braços.

    Encolhi os ombros de forma instintiva. Geralmente, quando mãos adultas — geralmente as de meu pai — me seguravam daquela forma, as coisas que aconteciam não deixavam memórias boas.

    Mas Vincent não agiu da forma rápida e assustadora que eu estava esperando, e sim de uma maneira lenta e previsível.

    Ele não queria me assustar. Essa preocupação dele era algo bom, achava eu.

    — Vamos lá. — Ele disse, após alguns instantes em silêncio.

    Vincent usou as mãos para me virar na direção da fogueira novamente, e dessa vez eu não tive muitas outras opções.

    A fogueira era bem menor do que aquela há dois dias atrás. Mas ainda assim, os flashs das pessoas mortas atrás das chamas ainda apareciam.

    Pisquei duas vezes e tentei me focar nas pessoas ao redor da fogueira, não nela.

    Troncos estavam dispostos nas redondezas, o suficiente para que o calor fosse confortável e não insuportável.

    Fergus estava sentado na extremidade direita, de frente para Nora. Silvester estava na extremidade oposta a Nora.

    Conforme me aproximei um pouco mais, ainda sendo guiada por Vincent, todos os três viraram para me encarar.

    — Olá, querida. — Disse Nora, já a minha frente. Ela estendeu as mãos e segurou as minhas.

    — Nora, tome cuidado. — Advertiu Vincent. Senti que suas mãos apertaram levemente minha pele.

    — Me desculpe. — Nora retrucou, sem desviar o olhar de mim.

    Suas mãos deslizaram pelas minhas enquanto ela se afastava dois passos. Parecia que estava se esforçando para aquilo, tal como Silvester.

    — Essa velocidade está boa, minha querida? — Ela perguntou, logo após olhar para os dois pés, como se quisesse checar alguma coisa.

    — Está sim. — Consegui responder, apesar de gaguejar um pouco no início.

    — Bem, venha se sentar conosco. — Ela chamou, se virando rápido demais para que eu pudesse entender.

    Logo depois, entretanto, ela caminhou lentamente até seu lugar no tronco que estava servindo de banco.

    — Pode ir. — Vincent me deu um pequeno empurrão, algo para me encorajar.

    Logo depois ele caminhou pelo meu lado direito e se sentou ao lado de Fergus, dando um tapa nas costas dele.

    Caminhei, um pouco sem jeito, na direção de um espaço no meio do tronco onde estavam Fergus e Vincent. Tentava manter uma relativa distância entre mim e eles.

    Julgando pelo jeito como todos olharam para mim, acho que perceberam bem rápido.

    — Minha querida. — Foi Nora quem rompeu o silêncio. — Quero que seja sincera comigo. Você tem medo de nós?

    Sua pergunta me atingiu com toda a força que eu podia ter imaginado. Fui forçada a baixar a cabeça e encarar a fogueira novamente.

    Eu sabia que eles estavam me protegendo. Não fazia ideia do que aqueles tais de separatistas queriam, mas os imaginava como uma ameaça a minha vida.

    Por esse motivo eu tentava esconder a verdade. Eu tinha medo deles. Tanto medo que não conseguia olhar diretamente para seus olhos. Nora havia captado isso, e me encurralara em um beco sem saída.

    Mas eu temia também ser deixada sozinha. Apesar do medo que sentia deles, devido às coisas que havia visto que fizeram, eles me faziam sentir segura. Eu tinha medo que, caso eu contasse a verdade a eles, eles fossem me abandonar.

    Naquele momento, entretanto, eu fui confrontada por duas opções. Ou eu tentava avançar com uma mentira que não sabia se funcionaria, ou contaria a verdade e arriscaria perder o apoio que eles vinham me dando.

    — Sim. — Eu mal conseguia pensar com o redemoinho de imagens em minha mente, ou a revoada de pássaros em meu peito. — Eu tenho medo... De vocês.

    Vincent estendeu a mão e envolveu a minha.

    Olhei em sua direção, mas o seu olhar não vinha até mim. Parecia que ele estava evitando me encarar.

    Quando chequei Fergus e Silvester, o mesmo acontecia. Todos olhavam para direções diferentes. Exceto Nora. Ela olhava diretamente para mim.

    Encolhi os ombros e tentei respirar, mas estava muito difícil. Meu coração batia muito rápido, preparando meu corpo para alguma ameaça. Porque, naquele momento, eu me sentia ameaçada.

    — Não precisa se preocupar com isso, minha querida. — Nora tinha as sobrancelhas relaxadas e um sorriso compreensivo em sua face. — Todos nós entendemos que passou por muita coisa. Com tudo o que viu até agora, é normal que tenha um pouco de medo. Nós...

    Nora olhou para todos os seus filhos, e todos devolveram com confirmações de cabeça.

    — Só queremos que nos dê sua confiança. — Fora Silvester quem terminou.

    Eu inspirei fundo e olhei para baixo. Não sabia muito bem o que dizer naquele momento, mas sabia que algo teria de ser dito.

    Mas, felizmente, eu seria salva pelo gongo. Bem, pela panela de sopa, mais especificamente.

    No momento em que eu decidira abrir minha boca e dizer algo, a panela começou a soltar vapor, produzindo um som estridente que chamou a atenção de todos.

    Levantei a cabeça, como em um instinto, e vi Nora balançando a mão na direção de seus filhos.

    — Ora, ora. — Ela disse, sorrindo enquanto ia na direção da panela para cuidar da sopa. — Parece que o jantar está pronto.

    — Delícia. — Silvester cruzou os braços, o que atraiu um olhar fulminante de Nora e Vincent ao mesmo tempo.

    Nora continuou mexendo a sopa com uma colher de pau. Eu olhava para ela, sem conseguir fazer muito com relação aos roncos de minha barriga.

    Mas, naquele momento, senti que Vincent estava me observando. Eu não sabia explicar como. Era bem parecido com uma picada no ombro.

    Me virei para ele, e Vincent não desviou o olhar. Seus olhos pareciam pensativos e profundos.

    — Noelle, será que não gostaria de saber um pouco mais sobre nós? — Ele perguntou, por fim.

    — Vincent, ela ainda é humana. — Fergus ralhou, colocando uma mão no ombro de Vincent. Vincent se virou e lançou um olhar mortal para Fergus.

    — Ela será parte da família logo. — Disse Nora, após algum tempo contemplando a sopa. — É, e a sopa está pronta. Por que você não começa, Vincent? Irei servir nossa querida Noelle.

    Dito isso, Nora se levantou e pegou um prato fundo de madeira. Vincent se virou para a fogueira e seus olhos pareceram se perder entre as chamas, enquanto suas sobrancelhas se arqueavam.

    Nora caminhou ao redor da fogueira com o prato, agora cheio da sopa que havia sido preparada, depositando ele e mais uma colher a minha frente. Após, ela voltou para seu lugar.

    — Essa velocidade está boa, minha querida? — Nora sorriu para mim.

    Balancei a cabeça, positivamente abaixando um pouco o rosto para que nenhum deles visse o vermelho em minhas bochechas. Era estranho ser tratada tão bem depois de tudo o que eu passei.

    — Eu nasci na França, no ano de 1760. — Vincent começou, um pouco depois de eu mergulhar a colher no prato de sopa. — Minha família era de artesãos, um dos grupos mais pobres que haviam. Com o aumento dos impostos, não sobrou o suficiente para comprar comida, e minha mãe acabou morrendo de fome. Depois que me casei, meu pai morreu de exaustão.

    Olhei para a colher e para o meu reflexo que se fazia na sopa. Sentia um aperto no peito só de pensar em tudo pelo que Vincent havia passado.

    — Deve ter sido horrível. — Disse, baixando a colher mais uma vez. Pareceria insensível comer enquanto ele fala, pensei.

    — Isso já faz muito tempo, não se preocupe. — Vincent deu de ombros, seus lábios se levantando levemente, não o suficiente para ser considerado um sorriso. — Bom, eu consegui ter uma filha, mas tive que ver ela e minha mulher definhando de fome diante de meus olhos. No final de tudo isso, acabei decidindo que iria me juntar a rebelião da qual as classes baixas falavam pelas sombras. Mal fazia ideia de que seria tão importante depois. Mas não que eu tenha tido nenhuma participação importante, levei um tiro na cabeça antes da grande batalha final. — Ele riu, mais amargamente do que eu estava acostumada. — Fui deixado para trás para morrer em decorrência da ferida, que não me matou imediatamente.

    — Mas eu o encontrei. — Nora estava ao lado de Vincent, abraçando-o. Não consegui evitar o sorriso. Eles realmente pareciam, naquele momento, mãe e filho.

    — Silvester. — Chamou Fergus, cruzando os braços e dando uma leve risada. — Se formos por ordem de idade, é sua vez.

    — Já está ficando tarde demais, não acha? — Ela desviou do assunto, se levantando. — Termine sua sopa, Noelle. Lhe contarei minha história uma outra hora.

    Dito isso, Silvester não estava mais lá. Nora olhou na direção de Fergus, e este sumiu de minha visão junto com ela.

    Só estávamos eu e Vincent na clareira, em frente a fogueira. Ele sentou-se no banco do outro lado, e esperou que eu terminasse de comer enquanto falava sobre pequenas coisas.

    Tudo o que eu conseguia fazer era responder com "sim" ou "não". Às vezes eu até sinalizava com a cabeça.

    Tenho que dizer que essa parte demorou bastante, porque acabei repetindo três vezes. A sopa estava muito boa.

    Pouco mais tarde, eu estava de volta a cama dentro da cabana, pronta para uma boa noite de sono.

    Pena que não seria uma.
  

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