Capítulo VI: Abutres Ao Amanhecer.
O dia seguinte seria o grande dia. Aquele que iria romper, de uma vez por todas, com todo o tecido de mentiras que eu havia cuidadosamente costurado para me proteger do frio que era a realidade ao meu redor.
Eu sabia disso na noite anterior, só não esperava que fosse nada tão violento quanto as coisas que se seguiram.
Amanheceu, e pudemos saber disso pelo sol, que entrou, receoso, no covil das nossas sombras e medos.
Tudo havia corrido bem até então. Havíamos nos levantado mais cedo para que pudéssemos esperar que meu pai acordasse. Esperamos pacientemente para ouvir os sons no assoalho, nas posições que havíamos planejado.
Em um mundo perfeito, eu teria batido na porta no momento em que meu pai acordasse.
Vincent estaria no meu lugar quando ele abrisse a porta, e iria jogar meu pai ao chão para que eu pudesse fugir.
Depois, de alguma forma, Vincent iria me encontrar e me levar para conhecer sua família. Passei a noite toda imaginando como seriam suas aparências, como se vestiriam, suas vozes e o que eu diria.
Tudo iria começar quando o sol nascesse, naquele momento diante de meus olhos. Por essa certeza, passei a noite inteira sem dormir, o coração acelerado demais, os pulmões tendo dificuldade para realizar sua tarefa mais natural.
Mas não foi do jeito que eu planejei. Nada nunca é.
— Tem algo errado. — Vincent colocou a mão na minha frente e me empurrou para trás.
Eu ouvia passos no assoalho acima de minha cabeça, mas não sabia distinguir o que queriam me dizer. Era mais de uma pessoa, era tudo o que sabia.
— Maldição. — Vincent murmurou baixinho.
Vincent cerrou os punhos e ajeitou a postura, ficando mais ereto do que eu achava ser possível.
A porta explodiu para dentro como se fosse feita de palitinhos e eu ouvi rugidos puramente selvagens. Todos os pelos do meu corpo se levantaram ao máximo naquele momento e eu recuei até que a parede me impedisse de continuar.
Eu apenas pisquei os olhos durante um segundo e todo o cenário dentro do porão mudou completamente. Haviam três figuras paradas ali no centro, bloqueando a porta.
Vincent estava com a coluna arqueada, os braços estendidos e as mãos abertas, como uma muralha. Seus lábios se levantavam para mostrar seus dentes, e haviam alguns grunhidos sendo trocados.
A mulher que apareceu na frente de Vincent lembrava um oceano profundo. Não, era mais como uma das bestas que poderiam habitar lá. Seu cabelo fino, liso e negro como petróleo estava jogado ao lado de seu corpo e alcançava suas costas. Ela era muito alta, o suficiente para que eu tivesse que levantar a cabeça para olhar, mas ainda era mais baixa que Vincent.
Estava na sua frente, postura igual a dele, o desafiando. Soltou um rugido gutural para mostrar que ainda não havia desistido antes de se levantar e esticar a coluna. Os dois homens atrás de si também o fizeram, assim como Vincent.
— Parece que temos um impasse aqui, rapazes. — Ela disse, e os dois atrás lampejaram os dentes em um sorriso. — Onde está minha educação? Chamo-me Kathrin. Os cavalheiros aqui atrás são Edwin e Marcus.
O silêncio passou uma navalha pela garganta de todos os presentes, e eu pude sentir uma gota de suor escorrer por minha têmpora. Vincent os estava estudando cuidadosamente, seu olhar voando de um para o outro.
— Vincent. — Ele não recuou nem um passo. Se posicionou como uma montanha diante daquelas pessoas. — Vincent Hawthorne.
— Ah, pertence ao clã de Nora Hawthorne? — A falsa expressão de Kathrin era a de uma amiga de infância, mas tudo o que eu conseguia ver era uma víbora, esperando o momento certo de dar o bote.
— Sim. — Vincent respondeu. — Mas você não me disse o seu sobrenome.
— Ah, isso não é necessário. — Kathrin deu de ombros. — Nós pertencemos aos Rubros.
— Vamos aos negócios — O homem da direita falou, atraindo meu olhar.
Este homem me fazia pensar em uma flecha perfeita. Ele tinha olhos azul-cobalto, que saltavam entre mim e Vincent constantemente. Suas sobrancelhas estavam arqueadas e sua testa enrugada, dando a ele, em conjunto com seus lábios levantados, uma expressão brincalhona. Ele tinha cabelos curtos que eram negros como o azeviche. Sua pele era negra como o ébano. Em pé do jeito que estava, era ainda mais alto que Vincent e, diferente deste, seu corpo era atlético, parecendo que poderia quebrar uma montanha ao meio se quisesse.
— Muito bem lembrado, Marcus. — Kathrin meneou a cabeça na direção do tal Marcus, mas sem tirar o olhar de Vincent. — Sabe, nós precisamos desta mulher. Peço desculpas pela entrada pouco civilizada. Apenas nos entregue ela, e seguiremos o nosso caminho.
Kathrin lançou seu olhar para mim, uma expressão de rapina. Ela tinha olhos cinzentos em forma de amêndoa que me lembravam duas moedas de prata quando expostas a luz. Me senti como se fosse um objeto naquele momento. Ao mesmo tempo que era esmagada contra a parede pela pressão de seus olhos.
— Eu lamento, — Vincent balançou a cabeça e entrou na minha frente. — Mas eu tenho uma promessa a cumprir, e entregar esta mulher seria quebrar esta promessa.
— Mas que pena. — O outro homem, que presumi ser Edwin, fingiu um bocejo que atraiu minha atenção.
Ele me fazia pensar em um abutre esperando que algum animal moribundo morresse para poder se alimentar. Tinha cabelos dourados, finos e encaracolados que alcançavam seu pescoço. Alguns de seus cachos caiam sobre sua testa perfeitamente parada, onde suas sobrancelhas também se mantinham sem mostrar nenhuma expressão.
Eu pisquei mais uma vez e tudo mudou. O outro homem — Edwin, me lembro hoje em dia, mas não conseguia no tal momento — estava em minha frente antes que eu conseguisse entender o que aconteceu. Seus olhos eram grandes e marrons e me lembravam de duas moedas de cobre, brilhando com um interesse sinistro enquanto ele me olhava. Sua mão em minha garganta me prendia na parede e tornava tão tão difícil de respirar.
Um relâmpago explodiu bem na minha frente, tão forte como se um canhão tivesse acabado de disparar e eu estivesse dentro dele. Meus ouvidos ficaram zumbindo. Mas não tinha raio, nem canhão nenhum.
Apenas Vincent, parado de costas para mim. Edwin não estava mais lá. Marcus fintou levemente para a direita, a postura encurvada, e Vincent o acompanhou.
Kathrin jogou Vincent na parede e esta se quebrou com o impacto. Tudo acontecia rápido demais para que eu acompanhasse.
Dedos frios agarraram meu braço na escuridão de meus olhos fechados e eu fui puxada com mais força do que nunca. Fui jogada na parede quando aquele que me puxava teve seus braços arrancados de mim, quase destrinchando os meus próprios no processo.
Sem ar, cai no chão. Minha cabeça rodava e minha visão estava embaçada, mas pude ver Vincent erguendo a mão e dando um soco na face de Marcus.
Mais um relâmpago explodiu sem que houvesse tempestade e Marcus foi jogado do outro lado do porão, quebrando a parede. Ele não se levantou.
Kathrin e Edwin apareceram na frente de Marcus antes de eu piscar. Senti que estava sendo levantada, me senti sem peso, e havia um leve cheiro de podridão em minhas narinas.
Quando abri meus olhos de novo, eu estava do lado de fora da casa de meu pai. Não haviam nuvens no céu, eu me lembro de poder ver a lua durante quase um segundo antes que tudo se tornasse um borrão.
Ouvi um grunhido do lado esquerdo em algum momento, e o borrão parou de se mover para frente para girar. Mais um daquelas explosões e tudo voltou a passar correndo por mim.
Minha percepção era limitada, e todas aquelas informações somadas a dor que estava sentindo fizeram minha visão desvanecer, se tornando cada vez mais imprecisa e borrada.
E então se desligar por completo.
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