Capítulo V: Uma Nova Esperança.

    — Você se lembra do mundo lá fora? — Vincent perguntou mais uma vez sem olhar para mim.

    Acho que ele estava olhando para tudo no quarto. Seus olhos ricocheteavam em cada parede, cada fresta, cada pequena rachadura em seus mais de meio bilhão de tons de cinza e então voltavam, gravando centenas de memórias. Mas eles nunca tocavam em mim, e isso machucava.

    Desde nossa última conversa, Vincent havia ficado parado, as costas contra a parede de concreto embaixo da janela do porão durante mais de cinco silenciosas horas. Seus ombros sequer se mexiam, ele não parecia estar respirando. Os olhos fechados, realçando as bolsas arroxeadas embaixo.

    E então ele falou comigo. Ele finalmente falara comigo. Não queria deixar aquela conversa morrer e ter de enterrar as palavras.

    — Não muito. — Meus lábios tremeram enquanto eu buscava em um baú de memórias para encontrar o que dizer.

    — Do que se lembra? — Vincent cruzou os braços.

    — E de que importa? — Franzi minhas sobrancelhas e abracei meu corpo, esfregando as mãos em meus antebraços para me esquentar. — Eu nunca vou sair daqui mesmo.

    — Você não quer sair?

    — Eu não tenho como sair.

    — Quem foi que disse isso? — Vincent me olhou e eu quebrei.

    Senti um tremor escalar meu corpo e aumentei a velocidade com que esfregava as mãos. Minha respiração se descompassou e pude ver várias pequenas nuvens de vapor na frente de minha face. Minha garganta começava a doer com o ar que entrava por meus lábios secos e semi abertos.

    — Como assim? — Consegui dizer, tentando manter a coluna erguida para alimentar a ilusão de que eu não era uma massa gelatinosa espalhada pelo chão naquele exato momento.

    — É uma pergunta simples. — Vincent desviou o olhar para a porta. — Quem foi que disse que você não pode sair?

    — Eu disse que eu não tenho como.

    — E essa é uma bela mentira. — Vincent colocou as mãos na nuca e se sentou um pouco mais ereto. — Eu me lembro da chuva. Estava chovendo bastante naquele dia.

    Eu pisquei várias vezes enquanto encarava Vincent, tentando entender a parte de sua fala que eu havia perdido.

    Aquilo não fazia sentido.

    — O que?

    — Eu te perguntei do que se lembra do mundo lá fora, — Vincent me olhou com apenas um dos olhos. — você não respondeu, então vou contar uma memória minha.

    Fiquei em silêncio e olhei para um canto. Um canto qualquer. Onde quatro linhas se encontravam e se finalizavam, onde todas as esperanças se juntavam e morriam, um lugar onde tudo era esmagado, juntando todas os tons de cinza em apenas uma massa cinzenta e irreconhecível.

    — Eu conheci sua mãe em uma noite chuvosa. — Ele deu um sorriso amargo. — Houveram muitos problemas devido a decisão que minha família tomou, mas não podíamos abandoná-la naquele momento.

    — O que? — Enruguei a testa.

    — Infelizmente, ela acabou tendo que sair da cidade. Mas ela me fez prometer algo, Noelle. — Vincent tombou a cabeça em minha direção. — Me fez prometer... Que eu iria lhe proteger.

    Às vezes eu tinha a impressão de que ele conseguia me ler como se eu fosse um livro aberto. Como naquele momento, aquele olhar servindo como confirmação para uma pergunta que nunca deixou meus lábios.

    — Eu não saia de casa. — Fechei os olhos forçosamente. — Minha vida era esperar minha mãe chegar para brincar comigo. Às vezes ela me ensinava algumas coisas.

    — Então você nunca viu muitas coisas, não é? — Vincent se levantou e olhou pela janela, como eu costumava fazer. O sorriso em sua face me indicou que ele fez aquilo de propósito.

    — Não. — Meus lábios se levantaram para formar uma pequena meia lua que nem mesmo eu compreendia.

    — O que acha de consertamos isso?

    — Eu acho que é impossível. — Abracei meus braços.

    — Não é impossível, Noelle. — Vincent balançou a cabeça e olhou para mim, a testa franzida. — Eu tenho um plano.

    Fiquei em silêncio, boquiaberta, e ele aproveitou para continuar.

    — Eu consigo derrubar seu pai se eu quiser. — Vincent se virou para mim e cruzou os braços ao encostar na parede. — Quando ele entrar, eu faço isso e você corre. Eu te alcanço depois.

    Mordi meu lábio inferior e senti o suor que se acumulou nas palmas de minhas mãos. Vincent olhou para mim e depois para a porta. Havia uma sensação incômoda em meu coração, como se uma mão atravessasse meu peito e o esmagasse lá dentro.

    — Você não quer continuar aqui para sempre, quer? — As palavras de Vincent me fisgaram de volta para a realidade da qual eu tentava fugir.

    Olhe para o canto. Olhe para o canto. Olhe para o canto. Olhe para o canto. Olhe para o canto. Olhe para o canto. Olhe para o canto. Olhe. Para. O. Canto.

    — Eu vou fazer de tudo para lhe ajudar, e irei mostrar a você o mundo.

    Vincent me tirou do aquário de mentiras onde eu estava submersa e me puxou forçosamente para a superfície da realidade esmagadora de minha atual condição. Lutei para respirar tal como o peixe recém fisgado faz com um anzol entalado em sua boca. Eu me sentia daquela forma e não existem palavras melhores para descrever.

    — Eu... — Realmente não tinha palavras naquele momento.

    — Sua mãe — Vincent suspirou e passou a mão pela testa. — O que se lembra dela?

    — Ela estava sempre sorrindo. — Meus dentes se mostraram em um sorriso quando eu me lembrei. Mas ele não durou muito. — Até mesmo quando foi embora.

    — Disso eu duvido. — Vincent voltou a olhar para a porta.

    — Por que?

    — Bom, porque não vamos até ela e perguntamos quando sairmos? — Vincent se virou para mim e sorriu, triunfante.

    Ele sabia que havia me ganhado com aquela argumento, por mais que eu tivesse tentado me manter calada.

    Fechei meus olhos e me deitei, sem dizer mais nada. Aquela conversa estava acabada, mas o plano de Vincent estava de pé. Eu sabia que não havia mais nada que eu pudesse fazer. Agora ele me tinha em seu barco e iria me conduzir para onde bem entendesse. Tal como o pescador faz com o peixe.

    Eu só temia que, como no caso supramencionado, ele também fosse me consumir.

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