Capítulo IV: (Im)possível.
Eu não consegui controlar isso. Eu nunca pude fazer isso.
Finalmente eu havia ouvido as palavras que eu, bem lá no fundo, queria tanto ouvir. Mas por que elas machucavam tanto?
Neste dia eu voltei a sonhar com minha mãe. A umidade se juntava no canto de meus olhos e então saltava na direção de meu rosto, por onde escorria antes de se juntar em meu queixo e cair ao chão ou sobre meu cabelo.
Vi minha mãe se afastando de mim. Vi minha mãe se virando para mim. Vi minha mãe sorrindo enquanto me deixava para trás.
Eu tinha apenas quinze anos quando meu pai arrancou o cordão que minha mãe me dera de meu pescoço — a última lembrança da mesma mãe que sorriu para mim enquanto ia embora — e aos dezesseis pensei que ele tivesse me feito um favor.
Aos dezessete eu parei de me importar. Tentei ignorar aquilo com todas as minhas forças. Estava além de minhas capacidades, era algo que eu simplesmente tinha de aceitar. Então para que pensar nisso?, eu me dizia todas as noites enquanto lutava para afastar aqueles pensamentos.
Minha mãe está feliz, eu comecei a me dizer na transição de meus dezessete para dezoito. Então fiquei quieta e suportei tudo aquilo.
Por todas as noites que mamãe chorou em silêncio ao lado da filha que ela acreditava estar dormindo.
Vincent não estava falando comigo. Vincent estava olhando para mim mas não estava falando comigo.
Talvez fosse melhor assim. Ele me distraia de minha utopia pessoal e podia me fazer enlouquecer. Isso. Eu não deveria mais falar com ele. Fazia sentido.
Mas aquele sangue que escorria por sua testa, minando de seus ferimentos recém-causados por meu pai me atraia. Eu me pegava com o coração sangrando por Vincent.
Ele estava ali há menos tempo que eu, e meu pai estava se esforçando para fazê-lo recuperar o tempo perdido. Por minha causa.
Eu queria me aproximar e tentar ajudar. Secar o sangue e curar as feridas. Mas eu não podia.
Apenas me encolhi ao redor de mim mesma no canto onde a luz prateada da lua não me alcançava. Naquele momento eu não queria luz. Fechei os olhos para poder me ver em toda aquela escuridão novamente. Naquele momento o que eu queria era escuridão.
A fogueira ainda estava lá, suas chamas crepitando, lambendo o material que as mantinha vivas, me puxando e me chamando em sua direção, querendo também me consumir. Mas estava mais fraca. Eu podia sentir que estava morrendo. A escuridão que consumia para produzir sua luz negra estava acabando.
Mas desta vez havia algo diferente. Um cheiro de podridão estava ao meu lado, incomodando, fazendo meu nariz pinicar.
— Ei, — Vincent me chamou. Senti seus dedos tocarem meu braço. — Você está tremendo.
Me virei e olhei para ele, de canto de olho. Não queria falar, então apenas encarei. Vincent soltou um suspiro.
— O que houve? — Vincent passou a mão em meu rosto e sentiu minhas lágrimas.
Puxei o ar com as narinas e o cheiro podre entrou, pinicando meu nariz por dentro. Estava vindo de Vincent.
— Você está fedendo. — Tentei dizer o mais friamente quanto consegui. Ele precisava se afastar logo.
— Não temos cheiro muito bom quando não nos alimentamos. — Vincent afastou a mão, e ficou olhando para esta durante um longo período.
Fiquei analisando suas palavras por alguns instantes. O que ele queria dizer com aquilo?
— O que você disse? — Me sentei, meus braços envolveram minhas pernas e deixei minha cabeça sobre meus joelhos.
Vincent me olhou no fundo de meus olhos antes de se afastar mais uma vez. Voltou para o lugar onde vinha dormindo nos últimos dias e se sentou, sua mão se arrastando preguiçosamente pela parede. Ele parecia ter roubado minha brincadeira de acompanhar rachaduras.
Abaixei a cabeça mais uma vez e me deixei cair de lado, batendo na parede.
Meus olhos pousaram sobre Vincent e não mais zarparam. Fiquei ali, encostada na parede e encarando Vincent.
Minha mão esquerda se estendeu para o pulso direito e se esfregou ali. O contato era algo bom, fazia minha pele esquentar e parava um pouco com a sensação de quase congelamento que eu sentia.
Mesmo esta última não sendo realmente física, ainda era algo muito real e incômodo. Estava ali mas não estava ao mesmo tempo. Me fazia questionar as barreiras de minha sanidade.
Vincent levantou a cabeça e a movimentou ao redor, procurando por algo. Quando seus olhos se encontraram com os meus, eu nunca mais poderia me libertar daquilo. Eu estava presa naquele jogo de encarar, e também nunca mais poderia me esquecer de seu olhar.
Vincent não iria se afastar. E eu não tinha como mudar o fato de que ele havia percebido o que eu estava tentando fazer. Mas mesmo assim, ele não iria se afastar.
Senti meu coração se esquentar com esse pensamento.
Eu pude notar que ele também estava procurando por alguma coisa. Se ele era um túmulo, naquele momento, alguém havia puxado a tampa do caixão.
Isso explicava o cheiro podre. Levantei minha cabeça apenas para deixá-la cair na parede mais uma vez. A dor era fraca e não tinha o mesmo efeito de antes. Isso me irritava.
Acho que todos nós só estávamos procurando por um pouco de esperança. Era isso que eu pensava enquanto via Vincent ali, me encarando naquele segundo que parecia que iria durar para sempre.
— Por que está me evitando? — Vincent levantou a cabeça lentamente, seus olhos piscando várias vezes.
Suas palavras saíram de seus lábios e cortaram toda a realidade, explodiram cada parte do mundo e me transformaram em milhares de migalhas quando entraram em contato com meu corpo. Tudo isso em menos de alguns instantes.
Fechei meus olhos com força e tapei meus ouvidos na esperança de não mais ter que ouvi-lo. Eu não queria dar a ele a chance de causar mais danos.
Vincent teria que se calar e se afastar de mim alguma hora, não é mesmo? Esse pensamento me confortava e tornava tudo mais fácil, por isso me apeguei a ele.
Senti tremores subindo por meu corpo, rastejando por minha pele, se arrastando bem lentamente. Não lutei contra eles. Eu não estava me sentindo mal.
Meu pulso se acalmou junto com meu coração, e minha respiração reduziu bastante. Alguém ou algo havia puxado as cordas para que o cavalo que conduzia a carruagem reduzisse a velocidade de forma gradual.
Lembro-me de ver a nuvem de vapor a frente de minha face antes que tudo se tornasse escuridão mais uma vez.
Foram batidas que me acordaram.
Três batidas na madeira da porta.
Por que meu pai está batendo?, pensei, ao levantar a cabeça. Minha visão estava embaçada e eu quase não consegui ver Vincent parado ali, em frente a porta quando ela se abriu.
Me lembro que, em questão de instantes, ele estava lá. Simplesmente apareceu, mais rápido que o raio que estourou do lado de fora.
Minha respiração acelerou e senti o ar passando pelos vales em meus lábios. Todos os pelos em meu corpo saltaram e se levantaram como que em frente a uma ameaça, meu coração bombeando meu sangue violentamente por meu corpo para que eu conseguisse fugir.
Eu queria me levantar e sair correndo, talvez até atravessar a janela apenas com os punhos, mas nem mesmo aquela dose de adrenalina que meu corpo havia secretado era suficiente para quebrar meu medo.
Não sei quem era a pessoa com quem Vincent falava. Não pude ouvir suas palavras sendo trocadas. Melhor dizendo, não pude entender. O medo criava censura em minha mente e a deixava avoada demais para entender a mais simples das coisas.
Algum tempo depois, a porta se fechou, e Vincent estava em seu lugar de sempre.
Me compeli a acreditar que tudo aquilo havia sido apenas um sonho, já que era difícil demais explicar segundo o que eu sabia.
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