04

- Alô! Terra chamando Solária. Você está me ouvindo?

- Hã? Ah! Desculpe. O que você estava dizendo mesmo?

- Eu estava dizendo que semana que vem é a nossa formatura, e que bom que nós vamos concluir o segundo grau. Também perguntei quem você iria levar como seu par... Mas é ótimo ver que você nem liga pro que eu digo.

- Perdão Vini! É claro que eu ligo. É que de repente eu desliguei. Foi mal. Acho que estava pensando naquela música linda que você compôs.

Ele suaviza a expressão de chateado e dá um meio sorriso.

- Nem vem! Eu sei que você só está falando isso pra se safar. Eu te conheço, Sol. No que estava pensando?

- Okay. Eu estava pensando que nós somos sortudos, muito sortudos. Nós temos uma vida toda pela frente, um milhão de possibilidades, e temos pais maravilhosos que nos incentivam e apoiam qualquer caminho que decidirmos trilhar.

- E como isso pode ser ruim?

- Não é. Não é nem um pouco ruim.

- Tá. Então o que é ruim, Estrela da minha vida?

- Para! Não me chama assim. Você sabe que eu fico com vergonha.

Vini começa a gargalhar, tanto que até cai de costas, sobre a grama, com a mão na barriga. Eu só enrubesço ainda mais, porque ele ama me dar apelidos fofos, e eu realmente não sei como lidar quando ele faz isso.

Cruzo os braços e espero ele se recompor.

- Parei. Pronto.

- Ótimo. Porque eu estava falando algo importante aqui.

- Continue. O que é ruim?

- Certo. Ruim é me lembrar que eu estou aqui, consideravelmente bem de vida, estudando numa escola muito boa, fazendo aulas de música e tocando um instrumento clássico que é perfeito, pensando em possíveis cursos para fazer graduação em uma faculdade, enquanto... Enquanto o Théo não teve a mesma chance. E isso me deixa muito triste. Sabe, eu cresci numa favela, Vini. As minhas chances não eram boas. A maioria dos meus colegas de infância seguiram caminhos tortuosos. Eu fui uma das únicas a conseguir sair de lá, ou que pelo menos não foi presa, ou virou mãe durante a adolescência. Pode parecer preconceituoso da minha parte dizer isso, mas sei do que estou falando. Essa foi a minha realidade. Perder o meu amigo me fez abrir um pouco mais meus olhos, e mesmo sentindo saudades de lá todos os dias, da minha antiga vida e principalmente do Théo, eu não quero voltar a viver lá, com medo, entende? Porque quando eu o perdi, foi assim que eu passei a me sentir.

- Não me pareceu preconceituoso. Sei que você sabe do que está falando, e como não saberia? Você passou por uma barra e tanto, Sol. Eu não sei como lidaria se tivesse perdido alguém tão próximo.

- É. E quando você mencionou o par pro baile, eu pensei que...

- Que o Théo seria o seu par se ele estivesse vivo?

- Isso. Ele ficaria lindo de terno. Mas acho que não gostaria de toda essa coisa de baile de formatura. Ele era muito desleixado, mal gostava de pentear aqueles cachos.

Sorrio, melancólica.

- Aqueles cachos...

Vini se remexe desconfortável no balanço do meu quintal. Fazia isso toda vez que eu falava demais sobre o Théo.

- Ei. Obrigado.

- Pelo quê?

- Por me ouvir.

- Você sabe que eu amo ouvir sua voz, mesmo que seja pra assuntos como esse, bad total.

- Minha voz de bebê chorão.

Rio de leve e ele estende a mão para tocar meu cabelo ondulado e castanho. Pega uma mecha e puxa para si, então solta, como sempre faz. Logo depois, toca minha bochecha e sustenta meu olhar tímido. Com o sorriso torto mais lindo que ele tem, aqueles que eu não resistia e tinha que devolver com o meu indo de orelha a orelha, Vini volta a dizer.

- Eu amo ouvir você. Sua voz não é de bebê chorão. Na verdade, é linda. Principalmente quando você canta. Por falar em cantar...

- Ah, não Vinícius!

- Por favor. Eu imploro, Estrela da minha vida!

- Só se você parar de me chamar assim.

- Certo. Prometo que não chamo.

Rio alto dessa vez e começo a cantar a música Photograph, que ele gosta.

Quando termino, Vini se levanta e vai andando até o portão. Antes de sair, ele se vira e grita:

- Já que nem eu e nem você temos par, que tal sermos o par um do outro?

- Tá.
- Tá?
- Tá!
- Então tá. Te vejo amanhã, Sol da minha vida.

- Ei, você disse...

- Eu disse que não ia chamar de Estrela da minha vida. Não falei nada sobre Sol. Tchau!

Diz ele, fechando o portão e me deixando no ar, totalmente contrariada e ao mesmo tempo... Feliz.

                            ***

- Então, como eu estava dizendo turma, a Ditadura Militar foi uma das épocas mais difíceis que o nosso país já enfrentou. Muitas pessoas foram presas e torturadas. Outras foram exiladas, mandadas pra fora do Brasil. O Governo reprimia qualquer forma de rebelião. Até mesmo músicas, se escritas do jeito "errado", representavam um grande protesto aos olhos deles. Liberdade de expressão, meus caros... Uma simples música, não é uma simples música. É uma arma! Um livro, capa de jornal, pintura, roupa, tudo que pudesse ser visto por outras pessoas, tudo que pudesse dar esperança à elas, nada passava despercebido. Quem era pego sofria as represálias, pois eram indivíduos isolados. O povo não sabe o poder que tem, a verdade é essa. O Estado só é instituído porque nós permitimos. O Governo só lidera porque nós nos deixamos ser liderados. Um rebanho precisa de um pastor. Mas quando algo incita o rebanho, quando ele se une e decide seguir um caminho, a força dessa massa supera a liderança do pastor. Esperança é tudo senhores! É ela que dá coragem e determinação. E talvez, se o povo não tivesse esperança de que o Brasil fosse maior do que a opressão daquela Ditadura, poderíamos ainda estar do mesmo jeito. Uma nação sem democracia. Por hoje é só! Façam a lição. Eu vou cobrar, hein?!

O sinal tocou, nos liberando para o intervalo. Nossa, como eu amo as aulas de história! É tão incrível saber mais sobre o meu país, a construção dele, e do meu povo. Não só do Brasil, é claro. Eu gosto de história em todos os aspectos. Acho que herdei isso do meu pai.
Os livros são tesouros valiosíssimos para mim. Máquinas do tempo que me transportam para outros mundos. Me perdoem as pessoas que não gostam de ler, mas eu não entendo como preferem jogar videogame, por exemplo, á explorar o universo de prazeres e possibilidades que é ler um bom livro... Talvez o problema esteja comigo.

- Ótima aula, pai! Adorei.

- Obrigado, querida. Que bom que pelo menos você gostou.

- Todos gostaram pai!

- Menos o João, que cochilou a aula inteira.

Dou um abraço no meu pai.

- O João é um bobo! Ele dormiria mesmo que o próprio Cabral viesse contar como achou o Brasil.

Isso faz ele rir. Adoro ver meu pai sorrindo pois ele parece menos cansado. Ultimamente ele tem estado ainda mais, não sei bem o motivo...

- Okay, Valentine. Vá lanchar antes que o intervalo acabe.

Saio rumo ao refeitório do colégio, pego um sanduíche, uma garrafinha de suco, e um cupcake de chocolate. Encontro Vini na mesma mesa de sempre. Nos sentamos nela desde o primeiro ano. Vou sentir saudade daquele cantinho onde muitos lanches e conversas foram compartilhadas. Sentir falta de olhar, e vê-lo me esperando. Com aqueles olhos grandes e verdes, que mais parecem bolinhas de gude transparentes me escrutinando. Olhos confiáveis. Olhos que podiam enxergar meus sentimentos e pensamentos mesmo a vários metros de distância.
Mas algo interrompe esse olhar. Arthur Santoni, um garoto que estudava no terceiro ano B, ao lado da minha turma, para bem na minha frente.

- Oi, Sol. Tudo bem?

Estranho... Ele nunca falou comigo antes.

- Oi, Arthur. Tudo beleza. E você?

- De boa. Iai? Já tá sabendo do baile de formatura, né?

- Sim.

- Pois é. Eu sei que nós não somos tão próximos, e eu não sou de fazer rodeios, então... Gostaria muito que você fosse comigo. Você topa?

Como assim? Acho que não ouvi direito. Resolvo perguntar só pra ter certeza de que entendi corretamente.

- Quê? Não entendi.

Arthur sorri e me pego paralisada fitando seu rosto bonito.

- Perguntei se você topa ir comigo. Sabe... Ao baile. Topa?

- É... Eu não sei. É que eu fiquei de ir com o Vini. Ele não tem par, e eu também não.

- Bom, você tem agora, se quiser. Sei que o Vini não vai se importar, porque a Isabella Reis da minha turma disse que iria convidar ele. Sabe que ela tem uma quedinha pelo cara desde sempre, né?

- Não, é novidade pra mim.

- Então... Você pensa a respeito e me dá uma resposta?

- Certo. Eu te digo amanhã.

- Valeu. Tchau, Sol.

- Tchau.

Uau! Eu estou sonhando, ou um dos caras mais gatos da minha escola acabou de me pedir pra ser o par dele no baile? Só posso estar num sonho mesmo, pois vejo a Isa se levantando do meu lugar e sorrindo pro Vini, enquanto eu me aproximo da mesa. Ela olha pra mim, dá um aceno rápido e sai em direção a sua mesa.

- O que o Sr. Bíceps queria?

- Eu que pergunto, o que a Sta. Top Model queria?

- Ela nem é modelo de verdade ainda, quem dirá Top... Mas eu perguntei primeiro.

- Perguntou se eu queria ir ao baile com ele.

- Engraçado, a Isa perguntou o mesmo pra mim.

- Nossa, esse dia não para de ficar estranho...
- Nem me fale. Os perfeitinhos do colégio querem sair com nós dois. Eu diria que ou nós somos mais populares do que eu pensava, ou tem alguma pegadinha acontecendo aqui... Cadê as câmeras?

Riu pra ele e seguro sua mão nas minhas.

- Deixa de ser bobo. Acho que não somos tão invisíveis, afinal. Mas você vai aceitar?

- Por quê? Você quer ir com o Arthur?

- Não sei. Acho que não seria má ideia. Nós fazemos tudo juntos. Mudar um pouco, só pra variar... Não pode ser ruim, não é? Eles são legais.

- Se é isso que você quer... Então eu aceito ir com a Isa. Até que ela não é nada mal.

Dou-lhe um tapa de leve. Ele puxa o braço dramaticamente pra mostrar que doeu, o que é puro teatro.

- Ai! Só estou dizendo que ela é gata.

- Eu sei. Mas se comporte. Não vá passar a impressão de que é um tremendo idiota pra garota.

- Okay, Sol. Você sabe de tudo.

- E só pra constar, o Arthur é o maior gato também!

- Blá, blá, blá... O Arthur é isso, o Arthur é aquilo. Mal conheceu o cara, já está idealizando um deus grego maravilhoso. Arthur, o herói. Arthur, o magnífico. Arg! Mulheres...

O Vini não parou de resmungar sobre as mulheres e suas manias de fantasiar até o fim do intervalo. Acho até que continuou. Ainda bem que nós não somos da mesma sala...

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