02

O enterro de Théo não durou muito. Não depois que sua mãe desmaiou ao ver seu filho mais novo dentro do caixão aberto e coberto de flores. Acho que ela só se deu conta do que tinha acontecido neste momento. E então, ninguém conseguiu dizer mais nada. O pastor disse mais algumas palavras e recitou versos da bíblia para o conforto dos familiares e amigos, e o caixão desceu. Junto com meu melhor amigo e primeiro amor.
Fomos eu e meus pais. Eles não queriam que eu tivesse ido, acharam que não era necessário, que eu não precisava ver aquilo. Mas entenderam quando eu disse que eu precisava sim, eu precisava dizer adeus pro Théo, eu precisava dizer tudo o que ele representava pra mim e olhar seu rosto uma última vez. Mas quando eu cheguei lá, tudo o que eu consegui pensar foi em como o mundo é injusto, cruel, e perverso. Como poderia algo de tão ruim acontecer a alguém tão bom como Théo? Como poderia uma bala sem rumo, desferida por sabe-se lá quem, durante um confronto entre policiais e traficantes, encontrar justo o Théo como alvo? Ele estava brincando como sempre, correndo por aí, provavelmente sorrindo á toa, quem sabe até estivesse pensando em mim e em como eu era boba por estar perdendo toda a diversão.
Pensar nisso fez meus olhos lacrimejarem. Eu quis gritar: "Sim! Eu sou uma boba Théo! Eu sou uma boba por deixar que você se afastasse de mim por puro egoísmo. Porque pra mim era mais importante que você me amasse como eu te amava, do que ter sua amizade pra sempre!"

Eu chorei, chorei por que sabia que no fundo Théo me amava sim. Ele me amava tanto que correu atrás de mim quando tudo que eu fiz foi dispensá-lo. Ele se importava comigo. Mesmo que não fosse de um jeito romântico, ele me amava. E agora eu o tinha perdido. O tiraram de mim. E eu nunca mais ia ver seu sorriso, nunca mais ia olhar seus olhos brincalhões, nunca mais ia ouvir sua piadas bobas ou ser empurrada quando dizia algo que ele naturalmente acharia engraçado. Nunca mais ia correr com ele, ou ser salva por ele dos outros garotos em um jogo. Não poderia nem lhe pedir desculpas por ter sido tão idiota!

Eu não dizia nada, nem sequer um palavra passou pelos meus lábios. Mas minha mente gritava mil coisas que eu só poderia dividir com ele. Não valia á pena dizer se ele não podia mais ouvir...

                         ***

Dois anos depois da morte de Théo, meu pai conseguiu uma promoção no emprego. Ele passou de professor de história, à professor de história e coordenador pedagógico na escola onde dava aulas na área nobre do Rio. Por conta dessa promoção, ele precisaria passar mais tempo lá, e teria que morar mais perto da escola também. Então tivemos que nos mudar.

Sair do lugar onde eu tinha passado toda a minha vida, construído raízes e formado laços afetivos foi muito difícil pra mim. Eu teria que me despedir de amigos que cresceram junto comigo e teria que fazer novos amigos em um lugar totalmente diferente do meu, minha zona de conforto estava ameaçada, e eu estava apavorada com o futuro próximo que me aguardava. Já pros meus pais, não foi muito difícil. Eles nem sempre moraram na Mangueira. Vieram de outra favela onde se conheceram, e quando resolveram se casar, mudaram-se. E nem era preciso dizer que pra eles, era um alívio me tirar dali, do lugar onde eu tinha presenciado a morte do meu melhor amigo, e onde cada dia mais a violência era parte do cotidiano dos moradores. Não posso culpá-los por se sentirem assim. Eles queriam o melhor pra mim. Queriam que eu tivesse as chances que eles não tiveram. Queriam que eu estudasse num lugar melhor, fizesse novos amigos, e ocupasse minha mente com algo produtivo. Já até haviam me matriculado em um curso de música na escola onde eu iria estudar, a mesma que meu pai trabalha, na zona oeste do Rio de Janeiro, Barra da Tijuca. Pelo que eu entendi, nossa casa seria lá, em um apartamento perto o suficiente e barato o bastante pelo qual poderíamos pagar.

Mudamos para a nova casa. Ela não era tão grande, eram seis cômodos apenas, contando com uma sala, cozinha, dois quartos, um banheiro, e uma lavanderia. Não era uma casa ruim. Na verdade, era bem melhor que a antiga. Meu quarto era bem grande, e eu ganhei mais espaço para meus livros e minha escrivaninha com o computador. Minha mãe adicionou uma bela cortina cor azul turquesa, alguns pufes, roupa de cama e almofadas. Eu pedi também um papel de parede com estrelas que brilhassem no escuro, para eu me lembrar do céu lá da favela que eu costumava olhar quase todos os dias. Meus pais sabiam o quanto isso era importante pra mim, por que quase sempre, eu fazia isso com o Théo, então eles não perguntaram nada. Arrumamos tudo em dois dias, e eu comecei a me sentir mais otimista em relação a nossa nova vida. Mudanças não eram tão ruins afinal. Coisas boas podem surgir quando decidimos fazê-las. E se eu tinha meus pais comigo, sabia que poderia tentar quase tudo. Eles eram os maiores incentivadores que eu poderia querer. Eram pais incríveis! E realmente, eu os amava de todo coração. Então, se eles achavam que eu conseguiria seguir em frente e conquistar novos horizontes, eu faria o meu melhor para não decepcioná-los.

Fui dormir pensando no Théo, e no que ele diria se estivesse aqui... Provavelmente faria alguma piadinha sobre como eu iria me tornar uma burguesinha metida e de nariz em pé. Eu riria dele. Depois ele diria que era brincadeira e que sabia que a minha alma de favelada nunca me permitiria ser assim, que ele me conhecia. "Isso, seu bobo!" Eu pensei. "Você tem toda razão."

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