Prólogo
30 de abril de 1805. Rio de Janeiro, RJ.
O lenço sujo de sangue foi devorado pelas chamas sobre a bandeja de metal enquanto o caçador lutava para respirar. Apesar do juramento feito na formatura, o médico do outro lado da sala evitava encará-lo por mais de cinco minutos, enquanto prescrevia remédios para a dor de sua escrivaninha. O homem na poltrona, com as botas sujas apoiadas em um descanso de pés, era um caso perdido, talvez ele visse o próximo amanhecer — talvez o próximo amanhecer fosse o último, o doutor pensou sombriamente.
— Eu não vou comer terra como uma criança, Joaquim — a voz do caçador rastejou para fora da garganta. Um predador moribundo dando seu último suspiro.
Joaquim inspirou devagar e se ergueu de sua mesa, entregando ao caçador um lenço novo.
— É isso ou se contentar em virar um deles, Henri.
O caçador tossiu outra vez, curvando-se violentamente sobre o próprio corpo, o som reverberou no escritório enquanto Joaquim servia duas taças de vinho. O boticário viria repor seu estoque de medicamentos apenas no dia seguinte, mas o médico duvidava que qualquer mistura prescrita pudesse amenizar aquela situação.
Entregou a taça para o caçador e voltou à sua mesa com um andar resignado.
Quando se tornou médico, Joaquim nunca pensou que terminaria trabalhando junto a caçadores de vampiros. Uma década atrás, um de seus colegas havia falado de novas pesquisas no velho continente e curiosos casos na Nova Inglaterra. As vítimas apresentavam sempre os mesmos sintomas: palidez, perda de apetite, aversão progressiva à luz do sol. Na ocasião, Joaquim riu do tom sussurrado do outro homem e disse ainda sem fôlego: "Não me diga que agora acredita nessas bobagem de vampiro". Três anos depois, sua própria mãe se tornou uma das vítimas, a imagem cadavérica da mulher que o criou ainda lhe causava pesadelos. O caçador à sua frente o tinha salvo, decapitando a criatura em um movimento rápido. E então o levou para a Central.
Um homem da ciência seria bem-vindo nas fileiras.
Sentado no escritório ao lado do necrotério, Joaquim equilibrava a vida de estudioso e pesquisador com os ocasionais tratamentos para os homens combatendo os vampiros na linha de frente. Entretanto, nos últimos dois anos nunca havia lidado com tamanho desespero como o que via desde que o caçador tinha entrado em seu escritório no início da noite anterior. O médico sabia que a prática comum para um caçador infectado era aceitar a própria morte passivamente, deixar em seu testamento o que outros deviam fazer com seus restos mortais, sabendo que decapitações eram eficazes, mas autópsias também cumpriam o mesmo propósito — retirando o coração e outros órgãos do corpo que tornavam o retorno impossível.
Mas Henri Palomo não era um novato nas fileiras, caçando em grupos e atacando vampiros insignificantes. Alguém descartável. Joaquim devia sua vida a ele, devia a paz de espírito da própria mãe e esposa.
Debruçou-se sobre os tomos empilhados outra vez, os papéis jogados sobre a mesa e os diários entreabertos eram uma visão incomum no escritório normalmente asseado. Os olhos do médico ardiam e ele apoiou o óculos na mesa, massageando o nariz.
— Seus irmãos já sabem?
A pergunta escapou por sua boca antes que pudesse contê-la e o resmungo antes da resposta fez um arrepio descer por sua espinha.
O médico limpou a garganta e continuou folheando as páginas, evitando pensar nos crânios atrás de si, escondidos por detrás de uma cortina, e os frascos com restos humanoides. Contribuições para a ciência, Henri falara certa vez, em um tom que caminhava entre a zombaria e a sobriedade. Joaquim achava a coleção inteira de mau gosto.
Entretanto nunca recusava os troféus de caça que o outro homem lhe trazia.
Àquela altura, imaginava que o caçador já havia libertado mortos-vivos o suficiente para não precisar mais exibir as presas em sua própria estante. Os Palomo eram uma família que se orgulhava da sua tradição em expurgar demônios como aqueles da face da terra, treinados originalmente pelos primeiros caçadores no Leste Europeu.
— Augusto morreu semana passada... um tonto, digo eu. Já devia ter se aposentado há pelo menos dois anos — a voz rouca do caçador disse quando Joaquim já esperava o silêncio como única resposta. — Luís está concluindo seus estudos agora, ele não precisa saber.
— E seus filhos?
Outro silêncio se arrastou no escritório, marcado pela respiração pesada do caçador e outro acesso de tosse. Henri levou o lenço à vela à sua frente e o médico decidiu anotar outro rumor em seu caderno, uma suposta solução feita com as cinzas do coração e do fígado de um vampiro. Disfarçou a ânsia subindo à boca com uma careta. Virou a página. Nenhum relato dos resultados.
— Se você fizer o seu trabalho direito, eles nunca vão precisar saber.
O médico podia sentir a faísca de insanidade reluzindo no caçador em sua própria pele. Ela era como a vela ao lado do Palomo, ainda inofensiva, mas que precisava ser tratada com cautela, disposta longe de toda substância inflamável.
Joaquim suspirou. Seus ossos doíam com o peso dos últimos dias, as janelas vedadas de seu escritório o deixavam inquieto. Não pela primeira vez, desejou sair, respirar o ar das ruas do Rio de Janeiro, participar de debates sobre a nova epidemia de febre amarela e a proibição dos túmulos dentro das igrejas. Principalmente, ele desejava fingir que vampiros eram apenas mais outro delírio dos homens de pouca instrução e não parte de sua rotina semanal.
— Já que a terra do túmulo do vampiro que o atacou não é uma possibilidade...
— Eu nem sei onde aquela coisa foi enterrada em primeiro lugar — Henri cortou.
—...então teremos de achar outra solução — Joaquim prosseguiu impassível diante da explosão do outro homem. Distante, como a profissão exigia. — Você teria como obter as cinzas do coração de um vampiro?
— De qualquer vampiro, ou do bastardo que fez isso comigo?
— Eu não sei — admitiu após um segundo e acrescentou rápido: — Talvez os dois. Esse relato não especifica.
— Me dê dois dias e eu arranco o coração de um. Mas o desgraçado que tentou me transformar já deve ter sido levado pelo vento.
O médico massageou as têmporas e rezou para que encontrassem algo dentro dos novos guias de botânica, que buscavam incorporar a botânica do Novo Continente em suas páginas. Quem sabe não encontravam alguma planta como a papoula ou a verbena em meio à flora local?
— Dizem que a transformação não se completa até ingestão de sangue humano — Joaquim murmurou.
Henri rangeu os dentes, colocando as botas no chão com um barulho abafado pelo tapete. Com passos ágeis demais para um homem moribundo, o caçador se colocou à frente do médico, as mãos sobre a escrivaninha, os olhos arregalados e vermelhos. O Palomo não era o corpo fragilizado da mãe de Joaquim, com a palidez mórbida acentuando o azul das veias, unhas que se assemelhavam a garras e um olhar vazio, mas o médico recuou mesmo assim. Ocorrera-lhe então que caso a transformação fosse concluída, Henri não seria como as histórias dos mortos-vivos que rondavam os becos. Havia algo de formidável na postura do caçador, no sangue escorrendo pela lateral da boca e os braços tremendo involuntariamente.
— Eu consigo ouvir seu pulso agora, doutor, e ele canta como uma sereia.
O médico engoliu em seco, agarrando o rosário amarrado em seu pulso e andando para trás até esbarrar na estante de crânios. À sua frente, Henri fechou os olhos e as mãos em punhos.
— Alguma outra informação? — o caçador perguntou.
O instinto gritava na mente de Joaquim, um eco de não fale, não dê a ele o que ele quer, a lógica dizia que uma vez que Henri tivesse toda a informação, o médico se tornaria descartável. Talvez, sempre tivesse sido. A Central poderia encontrar outro homem para curar seus feridos, alguém mais apto para aquele mundo sobrenatural.
— Não me faça perguntar outra vez.
— T-Talvez um feiticeiro possa reverter a maldição — a resposta tropeçou na boca do médico contra sua vontade. — Um t-tipo de bruxo.
O rosto de Henri se contorceu em uma expressão que o médico não soube decifrar. O caçador se afastou da mesa, voltando à poltrona com um andar cambaleante. Joaquim não o ajudou a se sentar, apenas observou, agradecendo a Deus e todos os santos por ter outra chance de continuar vivo.
— Amanhã começaremos a esgotar nossas opções — Henri proferiu, puxando outro lenço do bolso e descansando as botas no apoio. — Enquanto isso, quero que continue a procurar. Deve haver uma solução. Eu me recuso a me tornar um desses demônios.
O médico acenou afirmativamente e se sentou na mesa outra vez, o sono havia sido arrancado de seu corpo, e mesmo com os ossos doendo, ele sentia que caminhava em uma linha tênue, equilibrando-se sob as chamas do próprio inferno. Um passo errado e seria o primeiro alimentando o incêndio.
Mas apenas como medida de segurança, entre uma anotação e outra, considerou escrever um testamento. Que ao morrer seu corpo fosse decapitado e rogaria para que o padre o enterrasse em solo sagrado, ainda que longe da Igreja.
Se o Palomo era relutante em que medidas podia tomar para não se tornar um vampiro, Joaquim Costa não cometeria tal erro. Morreria como um homem e jamais seria reerguido como uma criatura da noite.
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