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8 de Setembro de 2018
20h37

 O IML é um lugar mais calmo do que a maioria das pessoas imagina. É claro que pesa sobre o local a ideia de morte e tudo mais, mas em suma era um espaço tranquilo. Entre os funcionários havia o clima de companheirismo como em qualquer outro trabalho, as pessoas conversavam e riam entre si. Um hospital era bem mais estressante e caótico. Ali os "pacientes" estavam tranquilos, podiam esperar sua vez de ser atendidos. A pressa estava nos vivos.

 Domingos estava sentado em um corredor estéril, a luz refletia no chão e nas paredes. Ele se sentia bastante exposto, era a única fonte de cor do lugar, até as pessoas que ocasionalmente passavam por ali o saudavam com seus jalecos brancos. Desejou ter um jornal ou uma de suas revistas de palavras cruzadas, já levava horas ali sentado.

 Não se sentia exatamente bem. Havia dormido pouco, comeu menos ainda. Rosália havia ficado preocupada com seu estado quando ele saiu de volta para a delegacia. O caso da menina o estava devorando por dentro. Poucas horas haviam se passado, menos de um dia, e ele já sentia a urgência em finalizar aquilo. Queria dar justiça àquela pobre criança, queria colocar as mãos em quem fez aquilo com ela. Mas o processo era sempre lento e minucioso. Por sorte a autópsia sempre trazia algumas respostas. Domingos fechou os olhos por um momento e voltou a pedir a Deus que encontrassem algum traço de DNA.

 A porta ao lado se abriu, fazendo o delegado se levantar, sentindo o corpo dolorido pela noite mal dormida. De lá primeiro saiu uma jovem mulher, que acenou com a cabeça para Domingos e seguiu seu caminho. Devia ser uma assistente. Depois quem apareceu foi um homem de idade já avançada, rosto enrugado, quase cobrindo os olhos. Ele e Domingos se conheciam a cerca de vinte anos, pois o dr. Mendes era o perito da polícia civil. Os dois assumiram seus cargos com poucos anos de diferença e estavam trabalhando juntos desde então.

— Desculpe pela demora, delegado. — o homem falou, estendendo a mão.

— Notícias boas?

— Nem tanto.

 Domingos sentiu as esperanças diminuírem.

— O que temos?

 O médico voltou a atenção para os papéis em suas mãos.

— Bom, a conclusão...

— Espere. — o delegado o cortou, pensando melhor. — Pode me falar sobre o processo?

 O dr. Mendes o olhou curioso. Em vinte anos de parceria, o delegado nunca havia pedido os pormenores. Era um homem objetivo, que gostava de receber o que precisava e nada além disso. Mas o caso da menina despertou nele um sentimento quase paternal. Ele queria saber o que havia acontecido com ela, por uma questão humana, não apenas para chegar ao assassino.

— Claro, não há problema algum. — o legista deu um passo para o lado, dando passagem para o outro homem.

 Domingos entrou na sala e não deu atenção para o ambiente, seus olhos foram direto para a mesa. Por um segundo esperou encontrar o corpo de Ana Clara ali, mas a mesa metálica estava quase vazia, não fosse por alguns pedaços de papel colados nela.

— Eu gosto de me organizar assim, os papéis indicam o que foi encontrado e em que parte do corpo. — o dr. Mendes explicou.

— Entendo.

 O médico se aproximou da mesa, como um professor que se prepara para dar uma aula.

— Começamos pela cavidade craniana, fizemos uma boa avaliação. Depois examinamos o tórax e o abdômen. Nesse caso também foi necessária a revisão da área genital.

— De quê ela morreu? — a pergunta estava em sua língua há tempo demais. Soltá-la foi quase um alívio.

— Tudo indica que por sufocamento. Mas o curioso é que não há sinal de violência ou de luta.

 Domingos franziu o cenho.

— Você quer dizer que ela não se defendeu?

— Exato. Veja — o médico tocou com a ponta do dedo no papel que estava colado onde ficaria a cabeça do corpo examinado. — Quando alguém é morto por sufocação produzida por obstrução do nariz e boca, geralmente se encontram lesões na parte interna, causadas pela tentativa da vítima de tentar respirar.

— Mas é impossível que alguém se mantenha parado enquanto é sufocado. A não ser...

— Que esteja sob o efeito de algum entorpecente, por exemplo.

 O delegado colocou as mãos na cintura, enquanto seu cérebro fazia conexões. Poderia Ana Clara ter sido drogada antes de ser morta? Isso explicaria porque ninguém a havia escutado, mesmo tendo sido sequestrada e morta em um local rodeado de casas, inclusive a do pai.

— Não havia DNA nas unhas nem nos dentes da vítima, nenhum sinal de luta. Se o nariz e boca foram pressionados, foi de uma maneira bastante cuidadosa, pois não deixou nenhuma marca ou lesão. As chances dela estar drogada são altas, mas só teremos a confirmação com os resultados dos exames.

— Você conseguiu determinar a hora da morte?

 O dr. Mendes checou os papéis, onde estavam as conclusões.

— O corpo foi encontrado às 2:03 da manhã, com uma temperatura de 27 graus em um ambiente de 20 graus célsius. Às 5:00... — o legista deve ter percebido a confusão de Domingos e pareceu editar sua fala para o que realmente importava — Fizemos os cálculos e chegamos à conclusão que a vítima havia falecido 4 horas e 21 minutos antes de ser encontrada. Isso dá por volta das 21:42.

 Ana Clara havia sido vista pelo irmão pela última vez por volta das 21:25. Se ela havia falecido às 21:42, isso dava um intervalo de 17 minutos. Aquele foi o tempo em que a menina esteve nas mãos do sequestrador. Apenas dezessete minutos.

— Algum sinal de como ela foi desacordada por tanto tempo?

— Como eu disse, não há sinais de resistência. Mas não é impossível que um quadro de sufocamento ocorra sem deixar lesões.

— Então ela pode ter sido asfixiada com alguma coisa? Sem estar drogada?

— Sim, é possível, mas... — o médico deu de ombros.

— Separou algumas amostras para o laboratório?

— Sim, já as encaminhei, inclusive. Em alguns dias saberemos os resultados. Infelizmente leva um tempo.

— E o que mais você descobriu?

 O médico seguiu o dedo pelos outros papéis.

— A vítima tinha alguns arranhões nos joelhos e na palma da mão direita. Talvez ela os tenha ganhado mais cedo, talvez em um possível cativeiro ou até mesmo no próprio local da morte. Não é algo muito relevante, no entanto.

— Algum indício que ela tenha sido amarrada?

— Não.

— Tem certeza?

— Bom, ela usava sapatos. Se a amarraram por cima das meias, foi de uma maneira sem muita pressão, pois não deixou marcas. Mas eu acho improvável.

— E os pulsos?

— Sem lesões.

 O delegado acenou com a cabeça, pensando na fita. Ainda assim gostaria de saber se havia DNA da menina ou de qualquer outro nela.

— O que mais?

 O dr. Mendes apontou para o maior pedaço de papel.

— Uma possível agressão sexual. A forma como o corpo foi encontrado, despido da roupa íntima, é o fator mais forte, além do possível sêmen presente no ombro da vítima.

— Não há resquícios de violência na... Na área íntima?

— O hímen não foi rompido, não há ferimentos internos que denunciam algum tipo de fricção violenta e nem presença de sêmen ou líquido pré-ejaculatório.

 Agora o delegado estava confuso.

— E o que isso lhe diz?

— Que se houve penetração foi um ato bem... Sútil.

 Domingos sentiu algo parecido com raiva encher seu peito.

— Me diga, dr. Mendes, como é possível que um possível homem adulto violente uma menina de sete anos sem deixar seu corpo dilacerado?

— Esse possível homem pode ter usado as mãos, por exemplo, algum objeto? Se houve penetração foi algo superficial, já que o hímen está intacto.

 Domingos sentiu o peito se apertar. Mesmo após tantos anos trabalhando com pessoas que estariam melhor taxadas como monstros, não conseguia entender o que levava uma pessoa a molestar uma criança. O legista continuou:

— Fizemos toda a coleta, também está sendo preparada para o laboratório. Vamos torcer para que tenha ficado algum DNA.

— Algo mais?

— Não, isso foi tudo.

 O delegado lançou mais um olhar para a mesa, pensando em como Ana Clara havia se resumido àquilo.

— Obrigada, doutor. — falou, oferecendo a mão para um aperto.

— Estamos sempre à disposição para ajudar.

 Quando deixou o IML, Domingos se surpreendeu com o fim do dia. Havia entrado no instituto pouco depois das 18:00 horas, e o relógio em sua viatura marcava às 21:17. A menina havia desaparecido na sexta, encontrada no sábado de madrugada e agora o domingo já espreitava. O tempo tinha aquela louca mania de correr descontrolado nos momentos mais inoportunos.

 O delegado foi distraído de seus pensamentos com o toque do seu celular. Viu o nome da oficial Teixeira antes de atender.

— Delegado Domingos na linha. — ele nunca perdia o costume de identificação, mesmo se tratando de seu telefone particular.

— Delegado, me informaram que o senhor estava acompanhando a autópsia da menina.

— Acabo de sair de lá.

— O que acharam?

— Morte por sufocamento, mas está cheio de buracos que precisamos preencher. Você pode dar uma olhada nos papéis na delegacia, estou indo para lá.

— Certo, também estou a caminho. Tenho algo... Interessante.

— O que é?

— O senhor reparou como a notícia do assassinato ainda não vazou?

 O delegado uniu as sobrancelhas, percebendo a verdade naquilo. O crime completaria um dia e nada havia saído na TV ou nos jornais.

— Você checou a internet?

— Sim, estão falando da menina apenas por meios informais, pelas redes sociais.

— Isso é, no mínimo, incomum.

— Sim, por isso eu falei com meu contato no A Voz do Porto.

 Aquele era o jornal oficial, pode-se dizer, da cidade.

— O que você encontrou?

— Digamos que a família Costa Bosco conversou com o jornal.

— Espere, está me dizendo que a família do pai da menina subornou A Voz do Porto para não publicarem nada?

— Se rolou dinheiro, foi por baixo dos panos, não vamos encontrar nada. Mas é bem possível que tenha sido um pedido. O jornal sabe que ter um favor nas mãos dos Costa Bosco é como ter um pedido com o Gênio da Lâmpada.

— E sobre as emissoras de TV?

— Eu arriscaria a dizer que o mesmo.

 Por que uma família que acaba de perder uma criança estaria tão preocupada em manter o crime longe do conhecimento público?

— Obrigada pelas informações, Teixeira.

— Tem algo mais.

— O quê?

— Acabo de falar com a mãe da Ana Clara.

— Algo novo?

— Sim, o irmão da menina mentiu.

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