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4 de Janeiro de 2019
A data do julgamento estava definida.
Os dias transcorreram devagar, sem que novas informações surgissem. As evidências que haviam aparecido, os suspeitos, tudo já havia sido analisado, comprovado e armazenado para ser usado em tribunal. O delegado queria novas provas, mais garantias, mas estava satisfeito e confiante com o que dispunham.
O ritmo do trabalho caiu consideravelmente, o que foi ótimo para a nova relação de Helena com os filhos. No começo foi um tanto estranho estar mais horas em casa, mas logo se adaptou e passou a gostar da nova rotina, de participar mais do desenvolvimento de Léo e, principalmente, ter tempo com Bia. A adolescente se transformou em outra menina com a mãe por perto, sua rebeldia e mal comportamento sumiram, voltou a ser a menina feliz que era na infância. Helena percebeu que aquela atitude da filha era resultado da falta de atenção que recebia da mãe. Com um sentimento de culpa que a manteve acordada por algumas noites, Helena se esforçava para recompensar todo o tempo perdido.
Era a primeira sexta-feira de 2019. A família havia passado o Natal e Ano Novo na chácara da tia Dinda, Helena conseguiu convencer Pedro a ir junto. A viagem serviu para apagar o estremecimento que todo o abuso da mídia havia causado na relação deles. Pedro havia se acomodado à família de Helena muito bem, até mesmo com Bia, mas nem sonhavam em avançar para algo mais. Ambos amavam ter seu próprio espaço, gostavam da sensação de sentir saudade, de marcar para se encontrar e das pequenas despedidas. Conviver definitivamente estava fora dos planos.
Bia ainda estava de férias da escola e Helena ganhara uma folga, já que as coisas na delegacia andavam paradas. Ela evitava sair para passear pelo Vale do Porto, o ódio e as críticas das pessoas ainda estavam afiadas, mas estava cansada de ficar em casa. Pegou o celular e mandou mensagem para uma vizinha do bairro que era manicure. Depois foi procurar Bia, que estava com uma amiga em casa. Antes de entrar no quarto, Helena ouviu cochichos, então bateu na porta para avisar que estava ali. Passou metade do corpo para dentro e viu as duas meninas olhando para ela.
— As duas dondocas estão fofocando é? — perguntou, sorrindo.
— Né nada não, mãe.
— É sim, tia. — Giulia, melhor amiga de Bia, falou. A menina, que estava deitada de barriga, sentou para dar espaço para Helena.
— Giulia. — Bia a olhou de cara feia.
— O quê? Sua mãe é policial.
— O que foi? Do que vocês tavam falando?
Bia cruzou os braços sobre a almofada de coração ainda de cara feia, mas resolveu falar.
— A gente tava falando de um menino da nossa classe.
— Crush, é? — Helena cutucou a barriga de Giulia.
— Eca, tia. O Diogo é um tarado, isso sim.
— Tarado? O que ele fez?
— Mãe, ele fica passando a mão nas meninas.
Helena olhou para a filha surpresa.
— Ele o quê? Ele pegou em vocês?
— Não! Deus me livre, mãe. Credo.
— Mas ele passou na Fabi, na Luana e na Dri. Não foi, Bia? — Giulia também falava com nojo.
— Foi.
— E ninguém contou pros professores? Pra diretora?
As meninas balançaram a cabeça.
— Ele disse que... — Giulia começou, mas Bia chutou a perna da amiga. — Ai, Bia!
— Beatriz, pode contar o que esse menino falou. Agora. — Helena abandonou o estilo mãe-amiga, passando para o mãe-onça. A filha pareceu envergonhada, mexia nos pelinhos da almofada.
— Eu conto. — Giulia decidiu. — Ele falou que se alguma menina contasse pra professora, ele ia passar aquilo na gente. E a gente ia engravidar.
Helena a encarou, pasma.
— Quantos anos tem esse menino?
— Tem treze, igual a gente.
Treze anos. Uma quase criança ainda, com uma conduta já tão sexual. Helena tentou lembrar se na sua época os meninos também eram assim, mas acreditava que não. Seus amigos começaram com os ataques de hormônios lá pelos quinze anos. Hoje em dia era tudo tão mais adiantado.
Então houve um clique na cabeça de Helena e ela pulou de pé.
— Eita, tia, o que foi?
Helena caminhou até o outro lado do quarto, sua mente era um turbilhão de pensamentos.
— Mãe? Mãe! — Bia gritou.
Helena a olhou, ainda meio perdida.
— Marquei manicure pra nós três, mas eu não vou. Preciso fazer uma coisa.
As meninas bateram palmas e soltaram gritinhos.
Seria possível que...?
— Mãe, o dinheiro. — Bia estava parada bem na frente dela.
— Ah é. — Helena abriu o guarda-roupa e pegou dinheiro da caixinha para as compras. — Toma.
— Obrigada, tia! — Giulia gritou enquanto Bia a arrastava pela mão.
Helena rodou pelo quarto, por um segundo não sabia qual o próximo passo. Organizou os pensamentos, depois olhou para o relógio. Iria precisar do distintivo.
Domingos largou o celular sobre a mesa para não atirá-lo contra a parede. Havia ligado para Teixeira o dia todo e ela não atendeu. Onde diabos estava sua agente e o que andava acontecendo com ela ultimamente?
O outro celular sobre a mesa pareceu aumentar de tamanho enquanto o encarava. Era o iphone de Ricardo Bosco, e o conteúdo que foi extraído de lá deixou uma sensação estranha no delegado. Era uma combinação de frio e calor, de pele pegajosa, de vertigem. Domingos virou as costas para aquilo.
Precisava de Teixeira. Sousa, após o êxito com o notebook, havia se dedicado aos celulares dos pais de Ana Clara. O Samsung de Cecília estava limpo, nada demais foi encontrado no aparelho, agora o iPhone de Ricardo...
Não que estivesse surpreso, Domingos já esperava por aquilo. Foi como juntar dois com dois. Ricardo Costa Bosco era um pedófilo que armazenava fotos de meninas loiras em seu notebook e era pai de uma. Não havia material de Ana Clara no notebook, já no celular...
O aparelho era como uma galeria doentia. As fotos que ficavam a vista não indicavam nada demais. Ana Clara sorrindo, mandando beijo, abraçada com o irmão. Material esperado a ser encontrado no celular de qualquer pai. Mas, escondidas em uma pasta fantasma, haviam centenas de fotos e vídeos da menina. Ana Clara de biquíni ou apenas de calcinha enquanto brincava, Ana Clara no chuveiro, Ana Clara dormindo com as roupas levantadas. Em grande parte das fotos era nítido que a criança estava dopada, seu olhar caído enquanto descansava em poses não naturais, ou totalmente adormecida. Domingos não aguentou ver todas as imagens, tampouco era preciso. Apenas passou o olhar por cima, constatando que todas as imagens pareciam ser recentes e que Ricardo não havia registrado nenhum ato sexual com a criança, aparentemente ele apenas a fotografava.
O delegado pescou o lenço do bolso da calça e secou o suor de seu rosto. Sentia o corpo frio e levemente trêmulo. Nunca, em vinte anos de carreira, havia visto algo tão doentio.
Onde está Teixeira?
Pegou o celular e ligou novamente para a oficial. O celular continuava desligado.
Teixeira dirigia, os dedos tamborilavam no volante, um nome girando em sua cabeça.
Leonardo Vieira Matias.
Era mais uma ponta para a investigação, poderia ser mais um beco sem saída, e a oficial sabia que não teria tempo para ir a fundo naquilo até o julgamento que aconteceria no dia seguinte. Era aqui e agora, mas sua intuição lhe dizia que aquele nome era a peça que uniria todo o quebra-cabeça.
Se sentiu em falha com Ana Clara. Agora que tinha uma hipótese que fazia sentido completamente, sem buracos, sem nuances, sem interrogações, parecia tudo tão óbvio. Por que não percebera antes? Estava bem debaixo do seu nariz, havia posto a mão sobre as respostas, mas não havia olhado mais de perto. Os últimos meses poderiam não ter acontecido, todo o estresse, as horas perdidas, o abuso da mídia, o ódio da população, tudo teria sido evitado se ela houvesse colocado os dados científicos sobre suas concepções morais.
Mas era impossível voltar no tempo, o que ela podia fazer agora era evitar que um inocente desperdiçasse anos de sua vida detrás das grades.
— Eu não vou deixar. — murmurou, enquanto fazia a curva para entrar na rua Marechal Pinheiro.
Teixeira diminuiu a velocidade, os olhos pulando nos números das casas enquanto passava, olhando para os dois lados da rua. Encontrou a casa 127 e parou junto à calçada. Ainda no carro, mediu a distância entre aquela casa e a de Ricardo Bosco. Apenas alguns metros.
Desceu, deu os dois passos necessários e apertou a campainha. Enquanto esperava, observou a entrada da casa, visível através do portão de grades. O piso era coberto por azulejos amarelados pelo uso. Duas bicicletas infantis, uma preta e uma cor de rosa com fitas, estavam apoiadas no muro. Uma bola de vôlei, alguns legos e uma barbie terminavam de mostrar que crianças moravam ali.
A porta da sala se abriu e um homem por volta dos 45 anos apareceu. Estava apenas de bermuda, o cabelo ralo amassado, como se estivesse deitado a pouco. Segurava um controle de tv.
— Oficial Teixeira. Estou trabalhando no caso de Ana Clara Almeida Bosco.
O homem a olhou com uma careta.
— O que você deseja? — perguntou o homem, um tanto ríspido. — Já vieram aqui.
— Eu poderia entrar? Gostaria de fazer algumas perguntas.
— E eu tenho escolha? — resmungou, sumindo de vista por um instante. Reapareceu meio minuto depois, com as chaves e foi abrir o portão.
Teixeira entrou e o seguiu até a sala. Era uma casa grande, organizada. Conseguia ouvir vozes de desenhos em algum lugar.
— Vocês já vieram aqui. — o homem repetiu.
— Eu sei, passamos algumas vezes, é verdade.
— Então? Já pegaram nosso depoimento, mexeram na nossa vida, pegaram meu sangue. O que mais vocês querem?
Ele estava visivelmente irritado e incomodado. Teixeira também não tinha tempo para enrolações, foi direto ao ponto.
— O senhor conhecia a menina Ana Clara Bosco?
— Claro, ela morava bem ali. Filha do Ricardo.
— O senhor tem filhos, correto?
— Tenho, dois.
— Com idades próximas a da Ana Clara?
— Sim, a Vitória tem sete anos. Acho que a menina do Ricardo tinha por aí também. Elas brincavam.
— A Ana Clara costumava frequentar sua casa?
O homem a olhou com raiva.
— Está dizendo que eu matei a menina? Eu sou suspeito, agora? Pelo amor de Deus!
— Não estou dizendo nada, foi só uma pergunta. Eu preciso saber se...
— Sim, ela vinha aqui em casa brincar com a Vitória. E a Vitória também ia pra casa dela. Todas as crianças andam aqui, as amigas da Vivi e os amigos do Léo.
Teixeira concordou com um aceno.
— Eu posso falar com o seu filho?
— Pra quê? O que ele tem a ver?
— Eu gostaria de fazer umas perguntas, não é nada demais.
O homem estava desconfiado. Se antes parecia irritado com a oficial, agora que seus filhos foram colocados no meio, Teixeira quase o viu expulsá-la. Mas ao invés disso ele levantou e foi até uma porta que dava para a sala. Ao abrir, o som de desenho aumentou.
— Leonardo, vem aqui. — chamou.
Do quarto saiu um menino baixinho, um tanto acima do peso. Tinha o cabelo preto cortado em um estilo que estava na moda, as bochechas bem vermelhas.
— Essa moça quer falar com você. — o pai disse, fazendo o menino sentar no sofá ao lado de Teixeira.
— Oi, Leonardo, tudo bem? — perguntou, sorrindo. Queria que o olhar de medo da criança sumisse.
Leonardo balançou a cabeça.
— Quantos anos você tem?
— Onze.
— Como vai a escola, tudo bem? Passou de ano?
Ele balançou a cabeça de novo, depois olhou para o pai.
— Você vai me prender? — ele perguntou, a ponto de chorar.
— Não, claro que não. Eu só quero te perguntar uma coisa.
O menino olhou outra vez para o pai, como que para ter certeza que ele continuava ali. Teixeira seguiu:
— Você conhece o João Miguel? Que mora aqui na rua?
— Sim.
— Ele é seu amigo?
— É.
— Você e o Miguel brincam juntos?
— Sim.
Ele estava nervoso demais. Teixeira se chutou por dentro, deveria ter ido até ali sem o uniforme.
— Leonardo, eu preciso que você pense bem no que vou te perguntar, ok? É muito importante.
O menino concordou com a cabeça, os olhos arregalados.
— Você se lembra do dia que a Ana Clara, irmã do Miguel, sumiu?
— Lembro. Foi no dia do desfile.
— Isso, foi no dia do desfile. Você viu a Ana Clara e o Miguel nesse dia?
Ele pensou, mas respondeu rapidamente e com confiança.
— Eu vi eles na escola, quando a gente foi desfilar.
— Os dois?
— Sim. A fila da sala do Miguel tava do lado da minha.
— E depois do desfile? Sobre o que você falou com o Miguel? Ele te falou alguma coisa?
Leonardo olhou para Teixeira, depois para o chão. Fez uma careta, então balançou a cabeça.
— Eu não falei com o Miguel depois do desfile.
Teixeira se inclinou para ele. O coração disparado.
— Você tem certeza?
— Tenho.
— Ele não passou por aqui? A noite?
Leonardo balançou a cabeça, negando.
— Tem certeza?
— A gente nem tava aqui. — o pai falou. — Depois do desfile eu levei ele e a Vi pra casa da mãe deles. Fomos direto pra lá.
A oficial precisou se esforçar para manter a expressão, seu estômago embrulhado não ajudava. Sorriu e passou a mão na bochecha de Leonardo.
— Obrigada pela ajuda.
— Posso ir?
— Pode sim.
O menino levantou, ainda hesitante, e voltou para o quarto, fechando a porta com cuidado.
— O que tem a ver se meu filho viu o Miguel?
Teixeira levantou.
— Não se preocupe, seu filho não tem nada a ver com a investigação. Mas ele ajudou bastante.
Leonardo fora crucial para a reviravolta no caso, reviravolta essa que, esperava Teixeira, fosse a última.
Domingos estava cercado por suas anotações, papéis, laudos, documentos e declarações. Repassava todo o caso mais uma vez, se certificando que havia feito tudo ao seu alcance. A partir do dia seguinte não estaria mais em suas mãos.
Era a primeira vez que entregava um caso com tantas indagações, não se sentia totalmente seguro. Obviamente era mais vantajoso quando ele tinha o culpado identificado, com provas concretas. Aquela não era a situação, mas havia chegado o mais próximo possível. As evidências apontavam fortemente para Ricardo Costa Bosco, e para Cecília Almeida como cúmplice. Esperava que o juiz enxergasse do mesmo modo e que aqueles dois apodrecessem na cadeia.
Quando ouviu batidas na sua porta e logo em seguida viu Teixeira entrar, não se surpreendeu. Sabia que alguma hora a investigadora iria aparecer. Ela carregava uma agenda e alguns papéis, precisou equilibrar tudo em uma mão para fechar a porta.
— Lembrou que trabalha aqui, Teixeira? — perguntou com um olhar feio para a oficial, mas não lhe deu tanta atenção, estava organizando os papéis.
— Desculpe, delegado, eu...
— Você tem falado isso muito ultimamente. O que está acontecendo? No momento que mais preciso de você... — ele balançou a cabeça. Se fosse qualquer outro oficial ali, Domingos sabia que estaria gritando a plenos pulmões, mas a falha de Teixeira mais o decepcionava que irritava, e ela pareceu perceber isso.
— Delegado. — chamou, sentando a sua frente. — O senhor pode me chutar para fora depois, mas preciso de cinco minutos.
Ele ainda não a olhava, fez um som de desgosto.
— Não tenho tempo para desculpas, oficial, estou tentando condenar dois demônios ao inferno.
— O senhor só tem um demônio.
Aquilo o fez se concentrar na investigadora.
— O quê?
— Nos enganamos, delegado. Nos enganamos feio.
— Do que você está falando? Vamos, cospe logo.
— Cecília não tem nada a ver com a morte da filha. Colocamos aquela mulher em uma cela por meses, e ela é inocente.
Domingos ficou estático, as mãos sobre os papéis que de certa forma provavam que quem estava enganada era Teixeira. A oficial seguiu:
— Me diga, delegado, o que temos contra a Cecília Almeida?
— Ela deu declarações falsas.
— Sim, ela falou que parou em uma rua e na verdade parou na seguinte. O primeiro depoimento dela foi dado sob uma montanha de estresse e preocupação, pois naquela altura Ana Clara ainda estava desaparecida. E Cecília havia tomado sua medicação mais cedo. Eu pesquisei novamente sobre o Lorazepam e descobri que ele pode causar confusão, uma dose mais elevada leva a um quadro de amnesia, principalmente para fatos recentes. Ainda há o componente emocional, se alguém perde o filho na praia, pode ficar tão desesperado a ponto de não lembrar qual a cor do biquíni que a criança estava usando.
— E como você sabe que Cecília estava medicada naquele dia mais cedo?
— Porque eu falei com ela.
Cecília estava em uma cadeia pública, fora do Vale do Porto.
— Quando?
— Hoje. Eu fui vê-la.
— Comece do início, Teixeira. Você estava em casa e, do nada, percebeu que Cecília Almeida era inocente e daí dirigiu até lá?
— Não, claro que não, delegado. Foi algo que uma amiguinha da Bia falou que me fez pensar. Mas eu vou chegar nessa parte.
— Uma menina de doze ou treze anos te levou a isso?
Teixeira respirou fundo.
— Só me escute por um minuto, tudo bem? Apesar dos depoimentos controversos, o que mais liga Cecília ao caso?
— Os medicamentos encontrados na menina, são os mesmos que ela toma.
— Ricardo comprou os medicamentos algumas vezes.
— Em datas próximas aos episódios de mal estar da menina na escola, por isso ele está preso também.
— O senhor sabia que o médico que prescreve as receitas da Cecília é tio do Ricardo Bosco?
— Isso foi levantado na investigação sim, mas não encontramos nada demais.
— Eu encontrei.
O delegado esperou enquanto Teixeira remexia nos papéis que havia levado. Entregou um deles para o homem.
— Essa é uma das receitas da Cecília. Vê a quantidade de medicamentos?
— Sim, duas cartelas de vinte comprimidos cada.
— Agora veja a data.
— 5 de junho... — Domingos olhou intrigado. — Espere, Ricardo comprou Lorazepam para a esposa no dia 7 de junho.
— Ricardo comprou Lorazepam, mas não para a esposa.
— Você acha...
— Eu tenho certeza. Tenho aqui todas as receitas da Cecília, ela própria comprou a maioria de seus remédios. Ricardo pegava receita extra com o tio para comprar mais de forma ilegal.
Domingos apoiou as costas na cadeira, a cabeça lhe dava voltas. Seria possível?
— Mas isso não prova que Cecília não ministrava os medicamentos também. Ricardo poderia ser o responsável por comprar, mas os dois poderiam agir juntos.
Teixeira começou a negar antes mesmo que o delegado terminasse de falar. Colocou a agenda sobre a mesa e a folheou.
— Essa é a agenda pessoal de Cecília Almeida. Por conta do Lorazepam, ela precisa anotar tudo. — passou mais algumas folhas.
— Como não encontramos isso antes? No dia do registro?
— Porque estava na casa da irmã da Cecilia. Ela a esqueceu lá na tarde do dia 7, ninguém pensou nela. Cecília comentou algo sobre suas anotações e eu fui até lá buscar. O senhor tem o depoimento das professoras aí?
— Tenho. — Domingos o encontrou no meio dos papéis.
— Qual dia a menina teve o primeiro mal estar na escola?
— Em 11 de junho.
Teixeira encontrou a página certa e a mostrou ao delegado.
— 11 de junho, foi uma segunda-feira. As crianças ficavam com o pai nos finais de semana. Cecília escreveu naquela segunda: “Buscar as crianças no Ricardo”.
— Ela não teve contato com Ana Clara nas últimas horas antes do episódio do enjoo. — Domingos pensou alto.
— Cecília não teve contato com Ana Clara antes de nenhum episódio. Ricardo fez outra compra de Lorazepam no dia 13 de julho, um sábado. A menina voltou a se sentir mal no dia dezesseis daquele mês e, segundo a agenda da mãe... — Teixeira virou mais algumas páginas. — Aqui. No dia 16 os filhos dormiram com Ricardo, porque ela tinha consulta com a psicóloga a noite. O último registro de compra que consegui foi do dia 18 de Agosto, outro sábado. Clara faltou aula na segunda. A mãe a buscou às 21:00 hrs daquele dia.
— “Minha mãe diz que eu tô doente para eu tomar o remédio” — citou o delegado, com a última suspeita que restava.
— Era um desses abridores de apetite. Cecília confessou que quando estava muito cansada dava o xarope pra Ana Clara dormir mais rápido.
— Então de certa forma ela também dopava a filha.
Teixeira deu de ombros.
— Sim, mas era só xarope. O senhor vai abrir um inquérito sobre isso?
A oficial terminou olhando para o delegado confiante. Ela tinha razão, Cecília não podia estar envolvida com os episódios de sedação da menina com Lorazepam, ela nem estava com a filha nos tais dias.
— Ricardo pagava o tratamento psicológico de Cecília e se disponibilizava para ficar com os filhos nos dias de consulta. — continuou a oficial, o brilho de entusiasmo havia desaparecido de seus olhos. Domingos entendia, era ótimo entender o que havia acontecido, mas isso significava descobrir o plano mirabolante de um pai para molestar a própria filha.
Os dois digeriram as informações por um instante, principalmente o delegado.
— Você conseguiu tudo isso hoje?
Ela concordou.
— Por isso não atendi o celular. Ele descarregou e não pude passar em casa. Tinha apenas hoje para confirmar tudo isso, para ligar as pontas. Corri o dia todo de um lado para o outro. Cecília é inocente.
— Cecília é inocente. — Domingos repetiu, absorvendo aquela nova verdade. — Esse tempo todo só havia um culpado...
— Não. — Teixeira encarou as próprias mãos entrelaçadas sobre a mesa. — Tem alguém mais envolvido.
— Quem?
A oficial pareceu precisar tomar coragem antes de falar, como se ela própria fosse confessar o crime.
— Quem foi a última pessoa a estar com Ana Clara? Quem a levou até a casa do pai e mentiu duas vezes sobre o que aconteceu? Quem era tão leve a ponto de não quebrar a escada podre que levava até a casa na árvore? Qual era o único DNA na casinha além do de Ana Clara?
Domingos sentiu o sangue fugir de seu corpo. Era quase a mesma sensação que havia sentido quando soube que a menina estava morta.
— Miguel. — saiu como uma pergunta. Instantaneamente sentiu a necessidade de negar. — Teixeira, como... Você está dizendo...? Ele é só um menino.
— Esse foi o nosso erro, delegado. Desde o começo da investigação, focamos em suspeitos maiores de idade. Chegamos a checar alguns vizinhos adolescentes, é verdade, mas quantos anos tinha o mais novo? Quinze? Dezesseis?
— Aquele menino tem doze anos, Teixeira.
Ela deu de ombros.
— Infelizmente as crianças de hoje não são mais crianças com essa idade, delegado. Tudo leva a colocar João Miguel na cena do crime.
— Ainda não sei...
— Primeiro ele disse que deixou Ana Clara no portão, era mentira. Depois admitiu que não viu a irmã ir para casa porque ficou conversando com um amigo e esse amigo nem mesmo estava em casa naquela noite. Eu confirmei. Quer ouvir minha teoria?
Domingos não respondeu, estava em um estado de incredulidade que o impedia de raciocinar bem. Teixeira seguiu mesmo assim:
— Ricardo Bosco colocou Lorazepam no sorvete da filha, esperando que ela dormisse com ele para que pudesse ficar com ela naquela noite, mas a menina não pediu para ficar de início. Cecília levou os dois para casa, mas Ana Clara quis voltar para o pai. João Miguel aproveitou a sonolência da menina e a levou até a casa da árvore, acredito que aquela não foi a primeira vez, e a molestou. Ana Clara estava adormecida por causa do Lorazepam, Miguel se assustou com a imobilidade da irmã, a deixou lá e voltou para o carro, por isso demorou tanto. Ana Clara teve uma parada respiratória por conta da alta dose de medicamento e veio a falecer.
O delegado ouviu a teoria de Teixeira, mas também estava fazendo as próprias ligações.
— Um adulto não poderia ter chegado até a casinha, a madeira da escada estava estragada...
— O meu peso quebrou a escada facilmente. — ela concordou.
— Pensamos que o assassino havia dado um jeito de não deixar DNA na cena do crime...
— Mas havia DNA dele em toda parte. Havia DNA dele na vítima.
— E pensamos que por serem irmãos estava lá...
— O senhor diz que ele é muito jovem, eu concordo é claro, mas estamos falando de um pré-adolescente que convivia com um pai pedófilo. Miguel pode ter descoberto os abusos contra a irmã e veio a repetir o que via, ou ele próprio pode ter sido molestado e reproduziu o ato.
Os papéis sobre a mesa pareciam encarar o delegado e perguntar “e agora?”. O lado profissional entregou imediatamente as respostas, ele sabia o que tinha que fazer, mas no momento se sentia sem forças até para se mover.
O momento de inércia foi quebrado pelo celular do delegado tocando. O homem o pegou automaticamente e atendeu. Era do presídio onde Ricardo Bosco estava detido.
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