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4 de Novembro de 2018
22h17

José Flávio Bento.

 Havia algum parentesco, alguma residência ou familiar próximo ao bairro ou escola da menina? Ele conhecia a família Costa Bosco através dos veículos de comunicação? Já havia feito algum serviço para um dos pais da criança? Teixeira não conseguia entender como o caminho de um homem de 35 anos, sem filhos, que vivia a 45 minutos de distância do Vale do Porto estava envolvido no caso de Ana Clara.

 Mas era o DNA dele que foi encontrado na menina, aquilo era algo verídico e irrefutável. O sêmen era dele. E um dado bem importante: Flávio Bento estava sendo investigado por violência sexual.

 Teixeira tirou os olhos da estrada por um segundo para conferir a hora no painel. 22:17. Alguns quilômetros depois e o silêncio na viatura foi quebrado por Lopes.

— Que merda, isso acabou com a minha noite. — reclamou pela quinta ou sexta vez. Teixeira e o outro oficial, Pereira, foram obrigados a ouvirem os resmungos do companheiro por toda a viagem.

— Que azar, cara. — Pereira deu um tapinha no ombro do outro, claramente mais simpático com a situação que Teixeira.

— Eu penando uns dois meses pra ela aceitar sair comigo.

— Ih, rapaz, é das brava.

— É mas eu, cê sabe, olha isso aqui — ele alisou o próprio rosto, se inclinando para olhar Pereira no banco de trás. — Cê acha que as mina resiste? A gente saiu duas vezes, hoje era a terceira e tinha uma boa chance dela finalmente querer ir lá pra casa.

 Pereira riu e empurrou a cabeça de Lopes

— Tu se fudeu bonito hoje!

— Tem um amigo meu que já pegou ela, sabe, e ele falou que ela é bem liberal, entende? Gosta de umas coisas aí.

— Ô se entendo. Depois apresenta ela pra Dani, talvez assim ela me libere outras áreas.

 Lopes soltou uma risada.

— Cara, só de imaginar... — ele usou as mãos pra desenhar uma bunda gigante no ar.

Cara, você é tão imbecil. — Teixeira finalmente falou, imitando a fala arrastada dos companheiros.

Teixeira já havia passado muitas horas dentro de carros ou salas sendo a única mulher presente. A experiência lhe ensinou que tentar impor respeito não levaria à lugar nenhum, na verdade a levaria a ser taxada como estressada, mal-humorada, revoltada e até mal-comida, mas às vezes não conseguia se segurar.

— Por quê? — Lopes estava verdadeiramente confuso. Aquilo já era motivo suficiente para ela desistir.

— Você fica falando da menina como se ela fosse um buraco pra você meter o pinto. Deixa de ser babaca.

 Lopes se remexeu no banco, desconfortável. Pereira também ficou quieto lá atrás.

— A gente não tava falando nada demais não, Teixeira, eu hein.

— Não tavam?

— Conversa de homem é assim mesmo.

— Pois guardem a "conversa de homem" de vocês pra quando não estiverem trabalhando, cara. Ou se quiser, eu encosto pra vocês descerem e baterem uma enquanto eu resolvo tudo.

— Que é isso, Helena? Isso aí já é desrespeito, sabia?

— Engraçado você falar sobre desrespeito.

 Lopes a encarou, tentando entender as palavras dela. Teixeira suspirou. Era extremamente frustrante perceber como homens como Lopes tinham como naturais a objetificação das mulheres. Ele realmente não percebia.

 Foi inevitável pensar em Pedro. Será que ele era assim também? Será que estava agora mesmo tendo uma “conversa de homem” com algum amigo sobre ela? Falando do corpo dela e de como gostaria de usá-la? Aquilo fez seu estômago revirar. E Tiago? Só de relembrar de mais cedo a fez trincar os dentes e apertar as mãos no volante.

 Quem ele pensava que era? Sumia por meses e, ao ver uma foto dela no jornal com outro homem, aparece como um cachorro querendo marcar território. Helena não sabia em que buraco o ex-marido estava, mas as fotos dela com Pedro o alcançaram onde quer que fosse. O caso de Ana Clara estava por todo o país, agora a fofoca sobre a vida dela também.  

 O resto da viagem foi silenciosa, mas não durou muito. Logo a oficial viu a placa indicando a entrada da cidade. Atravessou o centro e o GPS mostrou que o endereço que procurava ficava em um bairro próximo.

 Estacionou em frente ao número 34 às 22:50. Haviam poucas pessoas na rua e elas olharam para os oficiais com curiosidade, trocando cochichos. Lopes havia batido no portão de ferro preto.

— Quem é?! — foi uma voz masculina que respondeu.

— Polícia civil. Precisamos falar com José Flávio Bento. — Teixeira informou.

 O portão foi aberto e um homem usando apenas um calção de dormir apareceu. Era jovem, cabelo escuro e cavanhaque.

— Me disseram que iam me ligar. — ele acusou,  claramente irritado.

 Os oficiais trocaram um olhar, até que Teixeira percebeu que ele achava que estavam ali por sua outra questão. Antes que ela pudesse falar algo, Flávio continuou.  

— Disseram que iam ligar quando fosse pra eu ir ver o juiz. Mano, quase onze da noite, meus pais são idosos...

— Somos do Vale do Porto, estamos trabalhando no caso da menina Ana Clara Almeida Bosco.

Flávio os olhou.

— E o que eu tenho com isso? Tão aqui por quê?

— Você está envolvido na investigação, precisa nos acompanhar.

Eu? — ele apoiou a mão no meio do peito. — Eu tô sabendo dessa menina aí, o que eu tenho a ver? Mano, tão tentando me acusar de ter estuprado a Amanda e agora colocaram uma menina na história?

— O que foi, Flávio? — uma senhora apareceu, de camisola.

— Né nada não, mãe, vá se deitar que eu tô resolvendo.

— Como que não é nada, Flávio? É a polícia?

— Mãe, por favor, vá lá pra dentro.

 Teixeira colocou as mãos na cintura.

— O senhor precisa nos acompanhar até a guarda civil.

— Meu santo Deus! Ô João! João! Vão levar o Flavinho de novo, João! — a senhora gritou, uma mão se firmando no teto de um carro estacionado na garagem e a outra sobre o coração.

 Flávio correu para a mãe e a amparou, repetindo que estava tudo bem.

— Eu vou colocar uma roupa! — ele gritou para os oficiais, ainda segurando a mãe.

— Não, meu filho, de novo não, meu bom Deus, por que esse sofrimento todo? Meu Deus! Eu vou chamar o adevogado.

— Não, mãe, não preciso de advogado não. Eu não tenho nada a ver com aquela menina, eu resolvo sozinho mesmo. Sei nem por que eles tão aqui.

 Os dois continuaram discutindo enquanto entravam.

— Vai com ele. — Teixeira ordenou para Lopes. — Não deixa ele fugir, verifica se no quarto tem janela.

— Eu sei fazer meu trabalho, superior. — ele resmungou e entrou na casa.

  Pereira trocou o peso do corpo para a outra perna e tossiu.

— É, Teixeira, foi mal aí pelo negócio do carro. A gente não devia...

— Tu não tem uma filha, Pereira?

— Tenho.

— Quantos anos ela tem?

— Tem seis.

— Ela não vai ter seis anos pra sempre.

 Teixeira viu pelo olhar dele que o companheiro entendeu.

— É, eu sei. Tem razão, eu... — ele balançou a cabeça e olhou a calçada. — Tem razão.

 Lopes voltou depois de uns minutos, seguindo Flávio vestido. O homem trancou o portão e se virou para Teixeira.

— Vocês tão só perdendo tempo.

— Isso é problema nosso. Tem certeza que não quer chamar seu advogado? — Pereira ainda estava mal-humorado.

— Tenho. Vamo logo resolver isso.

 Flávio tentou descobrir como a polícia o havia ligado ao crime, mas apenas lhe disseram que seria informado quando chegassem ao Vale do Porto. Teixeira também precisou segurar a curiosidade, queria saber mais sobre o outro crime que ele estava envolvido.

 Aparentemente Flávio namorou por alguns meses com uma garota e, logo após terminarem, ela prestou queixa contra ele, alegando um estupro. Flávio, por sua vez, afirmava que tudo havia ocorrido baixo consentimento de ambos.

 O delegado Domingos e Menezes, o escrivão, estavam esperando por eles, já prontos para a interrogação. Houve algumas trocas de informações rápidas e então o superior cruzou os dedos sobre a mesa e travou o olhar em Flávio Bento. Perguntou:

— O que você fez em 7 de Setembro desse ano?

— Dia 7? Ah, no feriado.

— Sim, feriado nacional, Proclamação da República, você deve ter ouvido falar.

 Flávio sentiu o deboche do delegado, apoiou as costas na cadeira e cruzou os braços.

— Nesse dia de manhã eu ajeitei a calha de casa e fui fazer compras no mercadinho.

— Aposto que fez mais coisas depois.

— Quando eu voltei do mercadinho fui jogar vídeo game até a hora do almoço. Almocei e acho que dormi.

— Você acha?

— Eu não lembro bem, mas acho que sim.

— E depois? A tarde?

 Flávio uniu as sobrancelhas e pensou por um minuto.

— Eu fiquei em casa um tempo... Ah! Eu joguei bola no campinho, é, foi.

— Jogou com quem?

— Com a galera do bairro, uns amigos, meu irmão...

— Isso até que horas?

— Umas cinco.

— Ainda tinha sol, geralmente esses jogos vão até o anoitecer.

— É, mas eu tinha que buscar o terno do meu casamento.

— Ah, você vai se casar?

— Isso interfere no caso, vossa excelência? — devolveu o deboche. O delegado riu.

— E onde você comprou seu terno? Tem nota fiscal?

— Não, eu não comprei. É o terno do meu primo, eu só levei na costureira pra ajeitar.

 Quando Flávio parava de falar, o único som na sala era o das teclas enquanto Menezes digitava. Teixeira estava parada como uma estátua, avaliando o homem.

— E a noite?

— Eu sai com minha mulher, minha irmã e minha cunhada.

— Pra onde vocês foram?

— A gente saiu pra comer.

— Jantar?

— Sim.

— Que horas saíram de casa?

 Flávio riu sem humor.

— Como é que eu vou lembrar? Não sei!

— Consegue lembrar que horas saíram de lá? Quanto tempo ficaram?

 Ele balançou a cabeça.

— Não faço a menor ideia. Isso já tem um tempo e eu bebi, sem condição de lembrar.

— Em algum momento da noite você saiu sozinho?

— Só pra mijar.

— Voltaram para casa todos juntos?

— Sim, a gente tava em um carro só.

— Como foi a volta para casa?

 Outra vez ele precisou se esforçar para lembrar.

— A gente deixou minha cunhada e minha mulher em casa. Era minha irmã que tava dirigindo, porque eu bebi. Depois ela levou a gente pra casa.

— Não consegue me dizer um horário?

— Não.

— O que você fez quando chegou em casa?

— Tomei banho e fui dormir.

— Você pode ser mais específico?

 Um sorriso zombeteiro surgiu em Flávio.

— Bom, pra tomar banho primeiro a gente tira a roupa, seu delegado. Depois a gente mija, geralmente.

 Domingos se inclinou para o homem. Estava sério.

— Estamos perguntando tudo isso porque sabemos que você está envolvido em uma suposta agressão sexual, e o seu sêmen foi encontrado na roupa de uma criança que apareceu molestada e morta.

 Todo humor e divertimento foi lavado do rosto de Flávio, como se um balde de água tivesse sido jogado nele.

— O quê?

— Você não parece tão divertido agora. — o delegado apontou.

— Do que o senhor tá falando? Sêmen? O quê? — o homem fez menção de se levantar, mas Teixeira apoiou as mãos em seus ombros e o forçou para baixo. Ele gastou meio segundo para encará-la, depois se inclinou sobre a mesa. — Seu delegado, eu não sei como isso pode ser verdade! Como assim meu sêmen apareceu na menina?

— Havia sêmen, retiramos o DNA e esse bateu perfeitamente com o seu.

— Mas como?

— Imagino que seja do seu conhecimento que a justiça tem em posse um preservativo utilizado por você.

— Sim, eu sei. A Amanda entregou quando me acusou, mas... — o delegado o cortou.

— Pois bem. O laboratório cruzou o DNA que encontramos com homens fichados por abuso em toda a área do Vale do Porto e seus arredores. Adivinha? O sininho tocou bem na sua vez.

 Flávio não era alguém que podia se chamar de amarelo, mas definitivamente aquela era a cor dele naquele momento. O homem ficou estático por um momento, parecia tentar encaixar as informações em sua cabeça.

— Isso não pode ser... Não tem como... — ele balbuciou.

— Será que você consegue lembrar dos horários agora? — quis saber o delegado.

 Flávio balançou a cabeça, pela primeira vez afirmativamente.

— Eu... Sim, só um minuto. Saímos de casa por volta das nove... Nove e... Seu delegado, pelo amor de Deus, não tem como eu ter matado essa menina! Eu tava jantando!

— Se você conseguir provar, pode sair por aquela porta.

— E como eu faço isso?

— Registros, fotos, provas. Cheque o seu celular.

— Eu tô sem. Vendi meu iPhone pra ajudar a pagar o advogado.

— Nesse caso...

— Eu quero falar com alguém, quero ligar.

 Teixeira ergueu as sobrancelhas para o delegado. Ele suspirou e empurrou o telefone fixo para perto do homem. A oficial viu que os dedos de Flávio tremiam enquanto ele discava.

— Alô, mãe... É, é o Flávio... Não, mãe, deixa eu falar, é eu tô bem... Eu tô na delegacia do Vale do Porto, pede pra Juliana... Porque tão dizendo que eu tenho alguma coisa a ver com o caso daquela menina... Eu não sei, disseram que eu tenho que provar que tava no Limoeiro no dia 7... Mãe, deixa eu falar! Pede pra Juliana vir e o adv... Quê? Quando?... Que merda, mãe!... Tá, tá bom, manda ela vir assim que chegar. E fala com o advogado... Tá certo, tchau. — Flávio desligou balançando a cabeça. — Minha irmã viajou com o namorado, ela pode ver como a gente prova que eu não tenho nada a ver com isso.

— Quando ela vai estar aqui?

— Tomara que amanhã de manhã, a gente volta na primeira hora, eu prometo. — Flávio começou a levantar, mas o delegado ergueu uma mão, o fazendo parar.

— Espera, rapaz, você não vai a lugar nenhum.

— Como assim?

— Você é um suspeito, vai ficar detido até poder provar que é inocente.

 Flávio terminou de levantar e bateu as mãos com força na mesa, se inclinando para o delegado.

— Vou porra nenhuma! — gritou.

 Teixeira segurou seus braços, puxando para trás, fazendo que o homem caísse de peito na mesa. Ela segurou firme enquanto ele se debatia, a oficial forçou um dos braços para cima, vendo o osso da omoplata apontar de forma não natural.

— Meu braço! Cacete, você vai quebrar meu braço! — ele gritou, tentando se soltar. Teixeira subiu ainda mais o braço. — Ai, Ai, Ai! Vai quebrar!

 A porta se abriu, os gritos do homem alertaram Morales e Pereira. Eles tentaram ajudar, mas Teixeira apenas revirou os olhos, mostrando que tinha tudo sobre controle. Flávio parou de se contorcer, apenas respirava como um touro descontrolado.

— Levem ele para uma cela. Desde que o Costa Bosco e a Almeida foram transferidos, elas têm se sentido tão vazias. — o Delegado Domingos brincou. Ao que parecia, o aparecimento de um suspeito lhe devolveu o bom humor por um momento.

 Teixeira deixou que os companheiros pegassem um em cada braço de Flávio.

— Chamamos você quando sua irmã chegar. — o delegado falou e fez um gesto com a mão, para que o levassem.

 Sozinhos, o superior se virou para Teixeira.

— Agora vamos falar sobre o seu assunto.

 A oficial suspirou e sentou na cadeira que Flávio havia ocupado.

— Por que o senhor não me ligou, delegado? — havia um tom de acusação em sua voz.

— Porque Santos me contou que você havia viajado para relaxar um pouco. Eu tinha certeza que se soubesse do jornal, iria voltar.

— Claro que eu ia voltar!

— Você merecia descansar, Teixeira, na verdade você precisava descansar. Por isso proibi que te avisassem.

 Teixeira fechou a cara, sabia que a mãe não havia lhe avisado pelo mesmo motivo. Ela não estava trabalhando tanto ultimamente, mas a pressão para resolver o caso nunca a havia deixado em paz.

— Aqueles filhos da puta estão fazendo um banquete com cada detalhe desse caso. — ela reclamou.

— Como estamos mantendo tudo sob total segredo, eles estão se agarrando no que podem, Teixeira.

— Na minha vida pessoal? O que eu tenho a ver com isso? Minha família?

— Você é a cabeça da investigação...

— Isso não tem nada a ver comigo! Eles se meteram com minha família, com meus filhos, tudo pra vender a merda de um jornal! Falaram sobre minha vida, meus relacionamentos, tudo. Se Lopes, Pereira ou qualquer outro aqui estivesse a frente da investigação, duvido que faria alguma diferença quem estavam namorando!

 O delgado ergueu os ombros e os deixou cair com pesar.

— Eu entendo, Teixeira, sinto muito por isso. Mas é só fofoca, não deixe isso abalar você.

 Ela cruzou os braços e se deixou cair no encosto da cadeira, ainda aborrecida.

— Posso fazer uma pergunta? — o delegado falou, com o olhar que a fazia sentir mais filha do que agente.

— É claro.

— Esse rapaz... Ele é gente boa? Merece você?

 Teixeira sorriu, sentindo um pouco da raiva ir embora.

— Ele é ótimo, delegado.

— Diga a ele que eu vou estar de olho, um pé fora da linha e... — ele deu um tapinha em sua arma, no cinto.

 Agora ela riu de forma completa.

— Eu vou dar o recado, com certeza.

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