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17 de Setembro de 2018
16h42

 O DNA encontrado na roupa de Ana Clara não pertencia a Ricardo Bosco.

 Receber aquela informação foi como um tapa na cara de Teixeira. Ela tinha tanta certeza, tanta esperança, de que tudo aquilo iria acabar, que chegou a achar desnecessário todo o enfadonho trabalho que o delegado havia lhe imposto.

 Absolutamente tudo apontava para Ricardo. Ele fazia parte do círculo íntimo da vítima, o homicídio havia acontecido há poucos metros de sua casa, o possível contato com a mídia para abafar o caso, sua relutância em colaborar com a investigação, os registros de compras de medicamentos coincidentes com episódios de mal estar da criança na escola... Como não era dele?

 Eles tinham pontas demais para investigar, pouco pessoal. Geralmente com o passar do tempo, um caso ia ficando mais claro com os resultados de exames e depoimentos, mas aquele em particular parecia ficar cada vez mais confuso e frustrante.

 Pelo menos Teixeira se sentia melhor por já ter dado início ao registro de possíveis suspeitos. Aquilo era só mais uma mostra do porquê Domingos era o cabeça de tudo e ela não. Teriam desperdiçado dias esperando por um resultado que seria negativo.

 Com um suspiro, ela bateu no próximo portão. Foi atendida por uma senhora suada, marcas profundas de expressão no rosto e o cabelo preso de qualquer jeito, uma auréola de frizz como uma coroa em sua cabeça.

— Boa tarde, eu sou a oficial Teixeira. Poderia entrar por um minuto?

— O que você quer? — a senhora estava um pouco assustada, era nítido, mas também parecia irritada.

— Estou a cargo da investigação do caso Ana Clara Bosco.

— Eu sei, a menina da Cecília.

— Sim, isso. Estou passando em todas as casas para fazer algumas perguntas.

— Que perguntas? Eu não sei de nada não, moça. Eu fico o dia todinho aqui dentro, limpando, cozinhando, sei da vida de ninguém.

 Não era a primeira casa onde a oficial encontrava esse tipo de desconfiança, na verdade era esperado. As pessoas tinham medo de ser envolvidas em algo tão doentio.

— Vai ser bem rápido, eu prometo. — ela falou, esperando não precisar mostrar a ordem judicial. Quando se tornava uma obrigação, as pessoas geralmente ajudavam de mal agrado.

— Pode entrar, eu tô limpando aqui a área.

 Teixeira passou para dentro e sentiu um leve constrangimento por não saber onde pisar para não sujar o piso da senhora.

— Perai, minha fia, que eu vou botar um pano pra tu pisar. — ela sumiu porta à dentro e logo voltou com um pano de chão, que parecia ter sido uma toalha de banho em outra vida.

 Teixeira usou o pano para passar do portão para a sala, agradecendo que o espaço era bem apertado.

— Pode ficar à vontade, viu. Quer água?

— Não precisa, obrigada. A senhora ainda não me disse seu nome.

— É Carmen, mas o povo aqui tudo me conhece por Carminha.

— Certo, dona Carminha, como eu disse vai ser bem rápido. Eu só preciso saber quem estava na sua casa na noite do dia 7 de Setembro, há alguns dias atrás.

A senhora se sentou no outro sofá.

— Tava eu e meu marido. Só.

— Qual o nome do seu marido?

— É Fausto Januário da Silva.

— A senhora tem filhos?

— Tenho um fi, o Jardeson.

— Quantos anos ele tem?

— Tem vinte e quatro.

— Jardeson de quê?

— Jardeson Oliveira Januário.

— Ele mora aqui?

— Mora... Mora mais ou menos. Arranjou uma namorada tem uns tempo e agora vive mais na casa dela do que aqui. — Carminha cruzou os braços e fez um sinal de desgosto.

— Ele estava em casa no dia sete?

— Foi no dia do desfile, né?

— Sim.

— Tava não, tava pra casa da mocréia.

— Ela mora aqui perto?

— Mora não, é em outro bairro. Não sei qual é.

— A senhora teria algum contato, um número de telefone?

— Da mocréia?

— Da namorada do seu filho, sim.

— Não tenho nem quero ter. Quero é distância daquela ali. Mas pra quê? Por que esse interesse todo no Jardeson?

— Eu preciso confirmar se seu filho estava com a namorada nessa noite... É apenas uma questão de protocolo. — completou rapidamente, ao ver a mulher se estressar.

— Tu tá fazendo isso com todo mundo daqui é?

— Sim, senhora.

— O Jardeson tá no serviço, ele que tem o número dela. Mas só chega de noite, umas oito hora.

 Teixeira tirou a carteira do bolso e encontrou um cartãozinho.

— Esse aqui é o meu número, a senhora pode pedir pra ele me ligar?

— Peço sim.

— A senhora disse que seu marido estava aqui naquela noite.

— Tava nós dois.

— Ele chegou a sair em algum momento?

— Só de manhã, pra comprar o almoço.

— Certo. Outros familiares costumam vir aqui? Seus ou do seu marido?

— Eu sou do Piauí, minha família tá todinha lá. Tem minha cunhada, que volta e meia aparece aqui, e os sobrinho do meu marido. O resto só vem de vez em quando.

— Quantos anos têm os sobrinhos do seu marido?

— O Richardson tem doze, a Luana tem quinze e a Gabriele tem dois, eu acho. Ou três.

 O menino era novo demais, a menina estava descartada. O marido tinha a dona Carminha como testemunha e o filho aparentemente estava em outro bairro naquela noite. Teixeira levantou.

-— Acho que é só isso, dona Carminha. Muito obrigada pela sua ajuda.

— De nada, minha fia.

— Não esqueça de pedir para seu filho me ligar, por favor.

— Vou esquecer não, não se preocupe.

 A senhora a acompanhou até a rua, se despediram rapidamente e Teixeira caminhou até o carro estacionado ali perto. Lá dentro, pegou a folha e anotou os últimos nomes recolhidos, colocando uma anotação ao lado do de Jardeson.

 Aquela foi a última casa, já tinha a relação solicitada pelo delegado. Gastara outro dia inteiro naquilo, mas ao menos agora sabia que era útil. Não tinha mais que uma hora desde que recebeu o resultado do exame de DNA.

 O relógio marcava 17h04 e seu expediente estava quase no fim, precisava só deixar a relação com o delegado e torcer para que ele não lhe desse mais algum serviço até o dia seguinte. Teixeira descansava pouco todos os dias, fazia parte do seu ofício, e estava costumada, mas sempre chegava o dia que cobrava seu preço e o dia era aquele. Sentia que iria desmaiar por dez horas a qualquer momento.

 Ligou o carro e o barulho a fez despertar um pouco, lembrando que precisava cuidar daquilo antes que acabasse sem o único meio de transporte que tinha. Dirigiu até a delegacia, desceu rapidamente e entregou os papéis ao delegado, dando graças a Deus mentalmente ao ser mandada para casa. De volta no carro, quase deu a volta para pegar o caminho que lhe prometia sua cama, mas com um xingamento baixo acelerou a diante, virando na próxima rua e procurando pela tal oficina do Breu.

 Quase passou direto. O lugar não tinha nenhum tipo de identificação, era uma casa no meio de outras casas, apenas com o portão da frente aberto, por onde se via a bagunça e sujeira que se espera encontrar em uma oficina. Helena estacionou lá em frente e desceu. Conseguiu reconhecer Pedro deitado no chão, mexendo em uma moto. Ele levantou a cabeça e sorriu ao vê-la.

— Olha aí quem apareceu! — o sorriso dele ainda era de um jovem rapaz, se contrastando com seus traços já de homem feito.

— Eu disse que vinha se tivesse um problema.

 Pedro quase lhe ofereceu a mão, mas percebeu que estava suja de graxa. Ela apontou para o carro.

— O meu problema.

— Vixi. Eu ouvi mesmo o barulho quando você chegou, parecia ser no radiador. — a cara que ele fez a alertou.

— É muito grave?

— Depende. Preciso dar uma olhada.

— Certo, você tá ocupado agora, eu posso voltar amanhã.

— Não, de jeito nenhum, se for no radiador mesmo é melhor não andar mais.

— Merda, é grave.

 Pedro riu.

— Eu acho que ele vai sobreviver. Já tô terminando aqui com a moto e depois vejo. Tá com pressa? — ele lançou um olhar para o uniforme de Helena.

— Não, estava indo pra casa, mas algo me mandou checar logo esse barulho.

— Deve ter sido Deus. Se o problema for falta d’água no radiador pode ter prejudicado o motor.

 De tudo o que ele havia falado, Helena só sabia que um motor novo custaria muito dinheiro.

— Pode sentar ali, o banco tá limpo.

 Helena pegou o banquinho que estava perto da parede e o levou para o lado da moto, sentou e observou Pedro trabalhar. Após alguns minutos ela percebeu que estava observando o próprio Pedro. Ele estava totalmente sujo de graxa, o cabelo despenteado e seu jeans claramente deveria ter uns bons anos de uso, e tudo isso lhe pareceu atraente, sem comentar os braços e o peito visíveis pela camiseta. Resolveu levantar e dar uma olhada no lugar antes de começar a babar.

— Eu disse que a nossa oficina era simples. — ele falou, quase se desculpando.

— Mas parece que vocês tem todo tipo de equipamento.

— É, meu pai sempre investiu nisso.

— Você trabalha aqui quando chega do mercadinho?

 Pedro levou um minuto para responder, já que estava segurando alguns parafusos na boca.

— Só venho ver o que o Paulo não consegue consertar. Ele ainda tá aprendendo.

— Seu irmão?

— É.

— Cadê ele?

 Pedro revirou os olhos para Helena.

— Com a namorada. Mas eu prefiro que ele vá pra casa dela do que traga pra cá, a menina parece uma criança, mexe em tudo.

 Helena riu.

— Quantos anos eles têm? — ela não lembrava se já havia perguntado aquilo da outra vez que conversaram.

— O Paulo tem dezoito, a namorada dele tem dezessete.

— Bom, eles são crianças, praticamente.

— Nah, com dezoito eu já era bem mais responsável. Comecei a cuidar daquele moleque quando tinha onze anos, ele ainda hoje não sabe lavar uma roupa.

— Você teve que se tornar adulto muito rápido, não foi? — Helena perguntou, notando o tom de sua voz mudar enquanto voltava a sentar no banquinho.

 Pedro apertou o último parafuso e apoiou um braço no joelho dobrado.

— Meu pai era o pai da casa, alguém tinha que ser a mãe.

 Houve um pequeno silêncio. Ele mesmo o quebrou, depois de parecer refletir.

— Mas a culpa é minha, dele ser assim, sabe. Eu não queria que ele também tivesse que crescer logo, então acho que mimei o moleque. — um sorriso carinhoso surgiu em seus lábios.

— E você acha que já tá na hora dele crescer.

— Dá pra aproveitar a juventude e ainda assim ser responsável. Eu consegui, ele também consegue.

— Ah é? Você gostava de sair, namorar...?

— Eu adorava! Mas como o Paulo era pequeno não tinha muita chance. Mesmo assim, eu namorei com uma menina por muito tempo.

— Por que acabaram?

 Ele a olhou e sorriu.

— Estou falando muito de mim e não sei nada de você.

— É verdade.

— No outro dia nem deu tempo eu perguntar nada, o seu Chagas chegou e quase teve um treco quando me viu na viatura.

— Ele achou que eu estava prendendo você!

 Os dois riram.

— Vamos lá fora pra eu ver seu carro, enquanto me conta sobre você.

 Pedro começou a trabalhar, seus olhos e mãos treinados faziam parecer que ele estava mexendo em um brinquedo de criança e não em algo complexo como o interior de um carro.

— Pode começar a falar. — ele incentivou. Notou que Helena estava sem jeito e resolveu fazer perguntas. — Sempre quis ser policial?

— Desde criancinha.

— Você não tem medo? Tá tudo tão perigoso.

— Nós temos todo um treinamento e essas coisas, mas sinto medo principalmente pelos meus filhos.

 Pedro lançou um olhar para ela.

— Você é mãe?

— De dois. — Helena tentou encontrar algo na expressão dele, mas só havia curiosidade.

— Quantos anos?

— A Bia tem treze, o Léo é bebê.

— Policial e mãe de um bebê. Uau. Como consegue?

— Minha mãe me ajuda.

 Pedro passou a verificar outra parte.

— E o pai deles? — ele perguntou com a cabeça baixa, examinado algo.

— Foi embora.

Helena o viu balançar a cabeça.

— Que filho da puta... Desculpa.

— Ele merece.

— Faz muito tempo?

— O suficiente.

Pedro levantou e colocou as mãos na cintura.

— Olha, é falta de água mesmo.

— Merda. Meu motor morreu?

— Acho que não deu problema não, a água tá baixa, mas não tá vazia. E parece que não tá vazando nem nada. Quando foi a última vez que você colocou água ali?

Helena fez uma careta.

— Eu, nunca.

 Pedro ergueu as sobrancelhas e ela continuou.

— Meu ex-marido cuidava do carro. De uns tempos pra cá meu vizinho dá uma olhada nele de vez em quando.

— É importante dar uma olhada de vez em quando, em tudo. Por segurança.

— Agora eu conheço um bom mecânico. — eles trocaram um sorriso.

 Pedro fez sua mágica bem rápido, testou o motor e decretou que ele estava bem. Saiu do carro limpando as mãos em uma flanela.

— Está liberada, mas traz ele pra uma revisão geral qualquer dia desses.

— Vou trazer com certeza. Quanto foi?

— Não foi nada, era só a água.

 Helena balançou a cabeça.

— Não, você deu uma olhada. Me diga quanto foi. — ela já estava com a carteira na mão.

  Pedro revirou os olhos.

— Você me deve mais do que dinheiro. — Ela o olhou confusa. — Me deve respostas. Sobre você.

— Ah! Quando eu trouxer o carro para a revisão você pode fazer suas perguntas.

 Pedro olhou a flanela em suas mãos, a postura mudando.

— Olha, se você quiser a gente pode conversar sem ser aqui ou em frente ao mercadinho.

 Aquilo a surpreendeu, mas não totalmente. Durante o tempo que esteve ali percebeu que Pedro demonstrou certo interesse.

— Claro, vai ser bom ir a algum lugar que não seja a minha casa ou a delegacia.

 Pedro sorriu.

— Então pode escolher o dia e o lugar. — ele estava animado.

 Helena precisou pensar, há muito tempo não tinha uma vida social.

— Você não conhece um lugar legal? Nada de boate, por favor.

— Você gosta de barzinho? Tem um aqui perto, a música é baixa, dá pra conversar.

— Perfeito. — ao perceber algo, mordeu o lábio. — Sobre dia e horário... Eu não sei. Meu trabalho anda mais louco que o normal.

— Até nos fins de semana?

— É, mas tem os dias que sou mandada pra casa cedo. Eu posso te avisar.

— Salva o meu número.

 Helena pegou o celular e registrou o contato, imediatamente apareceu o símbolo mostrando que havia whatsapp.

— Eu te mando uma mensagem a qualquer momento, então.

— Vou ficar esperando.

— E eu pago as bebidas. — avisou, detestava sentir que estava em dívida.

— Por mim tudo bem.

 Ela deu um passo em direção a porta.

— Até mais.

— Tchau, Helena.

 Ela entrou no carro e foi embora. Dirigiu meio quarteirão, então parou. Pegou o celular e ligou para Kátia.

— Eu tenho um encontro.

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