🎬 44%

Enquanto Jungkook caminhava até o apartamento de Stan naquela quarta-feira, sua mente tentava processar o maravilhoso dia que havia tido – em algum momento entre os primeiros quarenta minutos de sua aula, começou a temer o arrependimento, o momento em que a barragem iria se romper e toda sua dor e erros o afundariam em águas perturbadas.

Quando ele sentiria os toques de Taehyung queimarem sua pele como pecados vivos. Quando ele ouviria sua voz rouca como um castigo sussurrado em seus ouvidos. Quando ele perceberia que o dia inteiro foi simplesmente um martírio, tanto para ele quanto para Taehyung.

E então, nada veio.

Nada.

Nenhum arrependimento, nenhum pensamento negativo, nenhuma insegurança – mal havia dor recente ali, apenas tranquilidade, como se seu sistema finalmente tivesse aceitado o fato que era Kim Taehyung, e todo seu conjunto – sua presença suave ao mesmo tempo alarmante que deixava os sentidos de Jungkook em pane, seus toques tão simples quanto dedos tocando uns nos outros mas tão poderosos como raios em uma tempestade, seus olhares tão brilhantes quanto estrelas em um céu límpido de verão mas tão intensos quanto um tiro a queima roupa, suas palavras tão delicadas quanto pétalas de rosas recém regadas mas tão cortantes quanto ventos em pleno outono, e a parte favorita de Jungkook (ou seria o contrário?), sua compreensão, ele não se sentia pressionado, pelo menos não mais, como se Taehyung o deixasse livre para seguir qualquer caminho que quisesse, e, caso deseje, poderia ter sua companhia também.

E tudo que Jungkook sempre precisou foi do benefício da escolha, da paciência e da compreensão.

Por isso, completamente confuso com o sentimento novo dentro de seu peito, o estômago cheio pela salada de lentilhas e chocolate, o pescoço coçando pela sensação ainda existente da tira da Nikon repousada ali e a bochecha formigando aonde ganhara dois beijos intensos e delicados, abriu a porta do apartamento, se deparando com Stan cantarolando na beira do fogão, a colher de madeira raspando a panela que emanava um cheiro ótimo, e claro, a televisão ligada para ninguém em especial.

- Ei. – Stan cumprimentou, sem realmente se virar para encarar Jungkook, que apenas fechou a porta e deu longos passos até seu quarto. Embora estivesse feliz com o desenrolar do dia, tinha receio de estragá-lo ao falar sobre, ou vai ver só estava com medo de pensar mais sobre o ocorrido e se arrepender. Era melhor deixar guardado dentro de si, encubado em seu peito e longe de qualquer pensamento ruim que possa estragar seu brilho.

Ele gostava de pensar que estava fazendo como a rosa da Bela e a Fera, guardada e preservada em uma cúpula de vidro, aonde duraria mais do que no exterior. Ele iria fazer isso com seu dia incrível com Taehyung.

E então, algo o impediu.

Seu celular vibrou ligeiramente no bolso – Bobão. Era uma foto frontal na qual apenas se via ombros largos e musculosos, um maxilar bem afiado, e Namjoon, trançando cabelos castanhos grandes e ondulados.

"Namjoon é péssimo em tranças"

Ele havia aconselhado que Taehyung trançasse o cabelo e conseguisse um capacete menor, caso chovesse, para evitar que o mesmo caia em seu rosto durante o jogo. E ali estava ele, fazendo o que havia sugerido.

Antes mesmo de se dar conta, Jungkook já havia virado de frente para Stan e murmurando, baixo e confuso, imediatamente chamando a atenção do amigo ao que raramente puxava conversa, se viu compartilhando seus sentimentos.

- Stan... posso, hm, pode me dar uma opinião sincera sobre algo?

Talvez fosse pelo fato de que a dor e o arrependimento não haviam o atingido, deixando que a felicidade (ou ao menos alívio) tomasse conta de seu corpo inteiro – e fazia tanto tempo, céus, Jungkook sabia quanto tempo fazia que ele não se sentia feliz, leve, confortável com alguma sensação. Ou vai ver ele só não sabia lidar com tudo aquilo (tão novo quanto inesperado) que temia lidar de forma errônea e precisava de uma opinião extra.

Independente do motivo, sua fala foi o suficiente para Stan colocar a televisão no mudo e sorrir ameno para o amigo, que parecia assustado, porém satisfeito, como se seu dia tivesse sido bom (e de fato foi) – sua pele estava mais corada, o que indicava que havia comido e seus olhos, embora baixos pelas olheiras, pareciam mais atentos, mais brilhantes. Stan não pôde evitar em suspirar aliviado.

- Isso, por um acaso, teria a ver com aquele rapaz que comentou da última vez?

Jungkook mordeu o canto dos lábios ao relembrar do dia em que perguntou a Stan como se afastar de alguém quando se causa algo ruim na vida dela, só você, e mesmo assim ela insiste em tê-lo por perto – "Você não afasta, você confia. Se mesmo ciente do perigo, ela escolhe ficar, você deveria confiar nela porque ela claramente confia em você. E também agradecer, pessoas assim são difíceis de encontrar".

Fora um ótimo conselho, afinal.

- Taehyung. – com os olhos fixos na bancada de mármore, Jungkook murmurou, a ondulação que aquele nome causava em suas cordas vocais fazia seu corpo inteiro retumbar, como se ele próprio estivesse gritando em seus interiores. – Ele se chama Taehyung.

Stan assentiu para a panela, sem realmente encarar Jungkook, tendo consciência de que isso o ajudaria a se abrir mais. Abaixando a chama do fogão para diminuir o barulho da cebola fritando, concentrou-se na voz baixa de Jungkook.

- Nós... eu—er, nós, meio que—hm...

- Kook. – não era uma repreensão, era mais um aviso, uma nota de rodapé que o alertava sobre inspirar e expirar em um intervalo de cinco segundos bem espaçados. Virando sobre o ombro, Stan pode ver Jungkook suspirando e apertando os dedos juntos, nervoso. – Se não quiser falar...

- Não! Eu quero, eu quero. – rapidamente murmurando, Jungkook passou a mão no rosto, tentando organizar seus pensamentos e coloca-los para fora de forma que Stan pudesse compreendê-lo. – É só que... não sei por onde começar—nem sei se tem realmente um começo.

Stan ponderou por um instante ao que agarrava o pote de alho moído e cutucava-o com a colher. Ele sentia o olhar de Jungkook em suas costas e medindo suas palavras, jogou a quantidade que julgou necessária de alho na panela com as cebolas já translúcidas.

- Comece por Taehyung. – simplesmente, Stan pôde ouvir o engasgo confuso de Jungkook ao que o alho chiava na panela quente.

- Taehyung? – Jungkook sussurrou, confuso.

- Sim, Taehyung. Ele parece ser o motivo central então... – dando de ombros, Stan continuou mexendo a colher na panela.

Jungkook pensou por longos segundos até finalmente dizer algo – Taehyung era tão complexo que organizar sua pessoa em palavras lineares que expressam características físicas ou rotuladas como padrão não o parecia fiel o suficiente.

- Taehyung – Jungkook murmurou, mais para si mesmo. – Ele—ele é quarterback dos Wolves, o-o time da uni. Hm, cursa fotografia, e-e ele tem as melhores fotos das coisas mais inesperadas—

- Por que das coisas mais inesperadas?

Stan surpreendeu Jungkook ao cortá-lo com uma pergunta, contudo, o mesmo apenas assentiu e ponderou alguns instantes sobre sua resposta, Stan casualmente jogando molho de tomate na panela e espirrando-o em todo lado.

- Ele—ele diz que alguém tem que dar atenção, voz, o... reconhecimento que aquelas pessoas, coisas realmente merecem. – Jungkook fitou seus dedos embolados uns nos outros sobre o mármore. – Que suas histórias merecem serem ouvidas.

Um silêncio se instalou na cozinha ao que Jungkook se afundava em pensamentos e Stan permitia sua reflexão. E então, se pronunciou:

- Esse Taehyung parece ser um cara intenso.

- Isso é um eufemismo. – Jungkook respondeu tão rápido e tão automático que provavelmente mal ouviu as próprias palavras deixando sua boca, os olhos fixos, mas a mente vagando lugares obscuros. – Taehyung é... não existem palavras pra descrevê-lo, ele é tão único que—que seria injusto ao menos tentar.

- Mas você sabe quem ele é, então é só desc—

- É como tentar nomear cada estrela do céu. – Jungkook piscou, completamente absorto em pensamentos, atraindo por completo a atenção de um Stan confuso. – Sempre esquecerá de alguma, e é simplesmente injusto limitar a imensidão de cada uma a letras insignificantes ordenadas linearmente para formar uma palavra com um significado oco.

Os olhos claros de Jungkook ergueram-se do mármore para fitar Stan, e foi um olhar tão intenso que, por um segundo, Stan pareceu atordoado. Pela primeira vez, em muito tempo, ele vira Jungkook, o verdadeiro, o que conhecia desde criança, o Jungkook atrevido, petulante e confiante de si, aquele que faria de tudo para provar seu ponto, para conseguir o que quiser e para garantir o que fosse seu por direito – mas, no final das contas, pôde compreender o que Jungkook estava dizendo, o que estava tentando comunicar por cima de toda aquela armadura.

- Você está enganado, Kook. – assim que as palavras deixaram a boca de Stan, o corpo de Jungkook pareceu recuar, não de medo, mas em preparação, semelhante ao gato segundos antes de atacar, nem um mísero músculo de seu rosto retraindo em incerteza. – Taehyung não é tão complexo assim, palavras não são ocas e inúteis de significado para descrevê-lo. Está enganado—

- Nem ao menos conhece ele!

- Você o vê assim. – Jungkook piscou, a boca se abrindo para deixar uma lufada de ar quente sair. Stan soava ameno. – Taehyung é complexo para você, ele permitiu que você o conhecesse tão profundamente que simplesmente o deixou carente de palavras para traduzi-lo. Compreende?

- Não muito...

Stan deixou a colher de lado, a chama do fogão já desligada ao que encostava na pia para fitar Jungkook com mais clareza.

- Você vê um Taehyung diferente, um Taehyung que só está ali para você. E isso é incrível, isso é—é tão íntimo que te deixa sem palavras, Kook. Cada um enxerga uma pessoa de uma forma, dependendo do que ela deixa visível. E se não consegue transmitir para mim quem é Taehyung, é porque você vê mais do que eu jamais poderia ver. É como se não o conhecesse literalmente, mas sim, espiritualmente, algo mais... profundo que apenas o exterior. E não conseguir descrever isso é o mecanismo de defesa, é o que limita sua visão de Taehyung apenas para você.

Jungkook desviou o olhar de Stan, suas palavras ecoando em sua mente ao que ele tentava compreendê-las. Ele abrigava um sentimento sufocante no peito, ele tinha tudo que era preciso para explicar Kim Taehyung para Stan e então, como uma palavra que esqueceu, mas está na ponta da língua, simplesmente não conseguia colocar para fora.

Vai ver Stan estava certo.

Talvez se haviam passado minutos, ou segundos, Jungkook não sabia dizer direito, mas quando ergueu o olhar do mármore, pôde ver Stan mexendo o que parecia ser macarrão na panela. Sua própria voz soou mais profunda ao que dizia:

- Nós ficamos por um tempo.

Stan pareceu ter sido pego desprevenido ao que encarava Jungkook com os olhos levemente saltados. Ele desligou o fogão e colocou a panela de lado, voltando a dar atenção total ao amigo, mais uma vez.

- Quanto tempo?

Jungkook inspirou longamente, o que deixou Stan se questionando se ele estava ponderando sobre ou relembrando os momentos que passaram juntos – seus olhos estavam neutros embora sua voz carregasse o peso de palavras que só podiam traduzir intensidade.

- Pouco mais de um mês, eu acho.

- E o que aconteceu?

Stan jurou ter visto o clarão dos olhos de Jungkook oscilar entre apagado e super brilhante – mas podia ter sido apenas sua imaginação. Jungkook demorou tanto para responder que o macarrão da panela já estava dividido entre duas tigelas repousadas na bancada, garfos e queijo ralado as acompanhando quando voltou a abrir a boca.

- Eu tive um passado... ruim... com meu... – o nó na garganta de Jungkook quase o sufocou, e não conseguindo engoli-lo, apenas manejou de falar sobre ele. – ex-namorado. E Taehyung também... digo, eles—ele, hm, eles não terminaram bem.

- Taehyung namorou o seu ex?

Jungkook parecia que ia vomitar. Negando com a cabeça, apenas, incapaz de falar no momento, puxou a tigela de macarrão e cutucou-o com o garfo, distraidamente ao que Stan sentava a sua frente nas banquetas.

- Certo, tudo bem. E qual o problema?

Aquela era uma pergunta de muitas respostas. E Jungkook não sabia exatamente qual dar para Stan. A situação toda foi complexa, rápida e dolorosa – tentar traduzir em palavras não parecia uma tarefa possível para Jungkook, e havia um pingo de incerteza em seu sistema sobre abrir seu coração para alguém, mesmo que esse alguém seja um amigo de longa data tão carinhoso como Stan.

O objetivo geral que justificava todas suas ações nos últimos meses não foi justamente evitar que a dor se espalhe? O que havia mudado para Jungkook estar se abrindo para Stan sobre tudo? – vai ver, mas era apenas uma hipótese, que a dor havia ficado no passado, ou ao menos tivesse sido sobreposta por outro sentimento... algo mais forte, capaz de superar o sofrimento...

Por fim, ele decidiu dar uma chance, afinal, Stan não conhecia Ryan, muito menos presenciou a situação – o que dava a Jungkook o benefício de omitir detalhes dolorosos demais.

- Em linhas gerais, esse cara com quem saí... nós, hm—nós namorávamos quando ele encontrou com Taehyung, não encontrou, na verdade, eles já se conheciam e...hm, bem, era uma festa. Eles eram do mesmo time—dos Wolves, o time se chama Wolves, eu já disse isso, né?, hm – Stan fitava Jungkook com as sobrancelhas franzidas, parecendo tão confuso quanto o menor ao que as palavras fluíam, mas decidiu deixa-lo se expressar da maneira que conseguia, afinal, Jungkook parecia bem atordoado em relembrar os fatos. – E,e... ele se aproveitou de Taehyung, hm, sexualmente – a voz de Jungkook caiu um tom ao que ele apertava o garfo nos dedos em nervosismo. – E em todos os outros sentidos, também. Ele—ele drogou Taehyung e—e—embebedou ele e—bateu nele e—eu vi, eu vi Stan mas, eu juro, e-eu... eu juro que pensei que ele estivesse me traindo e—e se eu soubesse... se ao menos eu tivesse prestado mais atenção, tivesse me preocupado com alguma coisa além do meu próprio umbigo, eu—talvez eu pudesse ter ajudado ele, sabe? Pudesse ter impedido, ou... não sei, eu—nós terminamos e—e ele bateu em Taehyung depois e—ele fez pior, sabe? E—

- Não foi sua culpa. – Stan tratou de intervir ao que Jungkook tinha as bochechas vermelhas e as mãos trêmulas. Ele parecia exaurido em informações, sobrecarregado em sentimentos e acima de tudo, preso em memórias, os olhos fixos enquanto o claro parecia visitar lugares sombrios, o rosto inteiro congelado em intensidade.

Stan esticou os dedos e tentou agarrá-lo pela mão, mas Jungkook não permitiu, ele parecia fora de si embora estagnado – o que só preocupava mais ainda o amigo. E então, sua voz voltou a soar, ainda mais baixa e mais intensa, como se o causasse dor.

- Não vamos entrar nesse tópico, ele é bem extenso. – puxando ar pra dentro dos pulmões, Jungkook piscou, tão rápido que Stan pensou ter imaginado o movimento. – F-foi... foi um inferno, Stan. E-eu tinha duvidado dele e... fiz coisas horríveis, defendi um cara terrível, me virei contra—contra Taehyung, contra meus amigos, perdi—eu perdi tudo, Stan, carreira, oportunidades, Taehyung, outras amizades, perdi... o sentido da vida. E—e Taehyung estava lá. – Jungkook ergueu o olhar e fitou Stan no fundo de seus olhos, e por um instante, ele viu algo tão intenso ali dentro, inundado pelo claro, que pareceu sentir toda a angústia de Jungkook, e só teve vontade de agarrá-lo e apertá-lo até que toda essa dor desapareça. – Ele... ele sempre esteve, eu acho. Ele me perdoou, me impediu de ir embora... mesmo depois de tudo, ele estava lá e... e as coisas ficaram pesadas demais, difíceis demais pra aguentar e... eu vim pra cá. Eu o deixei.

Stan piscou ao observar Jungkook calar-se e mexer no macarrão já frio, ele parecia diferente do Jungkook carregado de decepções e sofrimentos de antes, havia algo a mais naquele momento – arrependimento?

- Você veio para cá pra fugir de Taehyung?

Jungkook negou, um balançar tão singelo de cabeça que Stan suspirou. Ele parecia esgotado após toda aquela história, mas de alguma forma, as linhas ao redor de seus olhos e de seus lábios pareciam menos tensas.

- E-eu... eu quis me afastar dos meus amigos, e de Taehyung, de certa forma. – as sobrancelhas de Jungkook franziram. – Mas—mas não deles exatamente, eu—eu não suportava ver ele sofrendo por... por mim. Por causa de mim.

- M-mas... – Stan engoliu as palavras e repensou-as antes de despeja-las. – Pelo que entendi, o vilão da história não é seu ex?, que, só pra deixar registrado, já é a pior pessoa do mundo para mim. Sério, terei pesadelos com ele, urgh.

- Eu, Stan, foi eu quem colocou ele nas vidas dos meus amigos, na de Taehyung e—

- Mas não foi você que o obrigou a fazer aquelas coisas, Kook. Não tem porque se culpar por algo que não teve parte. Você não tem culpa pelos erros dele, se foi isso que ele te fez pensar.

Jungkook sentiu um arrepio subir sua espinha ao que Stan terminou de falar. No fundo, ele sabia que aquelas palavras estavam certas – só era difícil desacostumar com o que lhe fora ensinado durante anos. Mesmo que fosse errado, era um errado conhecido – e Jungkook tinha medo do que não conhecia.

- Eu só... – Jungkook voltou a falar, ignorando o nó na garganta e ignorando as palavras de Stan momentaneamente. – Eu só queria livrá-los do peso que eu trazia comigo. E—eu queria ver como seria a vida deles sem... sem Jungkook.

Um momento de silêncio caiu sobre a bancada, Stan fitou Jungkook por longos instantes até decidir responder, independentemente do olhar perdido ou da expressão conturbada do rapaz a sua frente.

- Acha que eles ficaram melhores sem você?

Jungkook despertou – ao menos seus olhos deram indícios de que sim. Stan observou enquanto o amigo ponderava na banqueta, exceto por sua mão firme ao redor do garfo, todo seu corpo estava tenso, imóvel, congelado – mas mesmo assim, sua voz saiu como fogo.

- Não vejo meus amigos há meses. Não vejo Y-yoongi... – os olhos de Jungkook lacrimejaram e Stan tentou mais uma vez agarrar sua mão, porém ele parecia bem mais distante do outro lado da bancada. – Seokjin, Namjoon... eles saem todos os dias, se divertem. É... é um alívio, de certa forma—quer dizer, eu não faço tanta diferença assim—eu não faço diferença alguma. Eles prosseguiram suas vidas sem o estorvo que era Jeon Jungkook. E—eu consegui, certo? Era o que eu queria e—

- Mas e Taehyung? – Jungkook piscou, dispersando as lágrimas que se formaram ao redor de seus olhos para fitar Stan, confuso. O amigo, no entanto, tinha um olhar acolhedor. – E Taehyung, Kook? Como ele ficou sem você?

Jungkook sentiu seu estômago cair, além do chão do apartamento de Stan até chegar no concreto da rua. Era uma pergunta simples, mas poderosa – tão poderosa que fazia Jungkook querer chorar e gritar ao mesmo tempo. Mas havia algo no olhar calmo de Stan que o fazia questionar o propósito dela.

Ele buscou sentimentos reclusos durante todos aqueles meses para responder, relembrou das mensagens de texto, de voz, dos vídeos, das fotos com frases impactantes, dos emojis, das conversas aleatórias sobre Friends, dos sussurros chorosos trocados em madrugadas, dos gritos de felicidade que abafavam a voz rouca e baixa de Taehyung ao contar que ganharam mais um jogo no campeonato e enquanto tudo que se ouvia era festa, Jungkook só podia ouvir o eco de "volta pra mim", das fotos de cachorros-quentes do James que faziam-no sentir falta daquela noite especial, das fotos dos rapazes no Balls&Blues jogando dominó nas terças...

Jungkook rodou a chave que abria o baú de todas as lembranças felizes e tristes que havia trancado para longe de seu coração danificado, com medo de que elas se esvaíssem por meio dos quebrados e fugissem de seu alcance. E, surpreendentemente, tudo que conseguia visualizar, sentir ou ouvir levava a uma pessoa.

Uma pessoa com cachos definidos (outros nem tanto) no final dos longos fios castanhos que o lembravam cachoeiras de chocolate, com olhos tão escuross que o lembravam a mais vívida floresta tropical após uma chuva torrencial, com as covinhas tão profundas e tão bem localizadas que o fazia pensar em como Picasso gostaria de retratá-las em uma de suas pinturas, com a pele oliva mais bem contrastada com toda sua vivacidade de cores, as espinhas ocasionais que recordavam Jungkook que aquilo era, de fato, uma pessoa real, os dedos longos e cheios de anéis que o faziam sorrir pelo senso de moda (ou a falta dele) – e todo seu conjunto.

Kim Taehyung.

Não importa no que pensasse: nos rapazes, na audição, no campeonato, em Ryan, seus cortes profundos, na uni – tudo terminava em Taehyung. Ou talvez começasse?

E percebeu que não, as lembranças boas que havia trancado no baú não se esvaíram pelas brechas entre os pedaços de seu coração – elas ficaram ali, tão firmes e seguras que o davam a sensação de ter um coração inteiro de novo.

- Kook? – resgatando Jungkook do mar de devaneios, Stan sorriu ameno, tendo sucesso, desta vez, em segurá-lo pela mão. – Está tudo bem?

A resposta veio em segundos, sem gaguejar, sem hesitar, sem duvidar – Jungkook tinha certeza de cada palavra que professara, e não sabia o que era pior: saber que era verdade ou fingir que era mentira.

- Não, Stan, não está tudo bem. Taehyung ficou desolado sem mim, ficou triste, ficou desesperado. Ele sabe se virar, claro que sim, Taehyung é a pessoa mais forte que conheço na vida. Ele nunca fez ninguém questionar sua sanidade e bem-estar, nem mesmo quando Ryan abusou dele. Ele é tão contido, Stan, e nos últimos meses em que estive longe, eu senti que quebrei isso. Eu quebrei ele. Achei que causava dor estando lá, uma vez ele me disse que eu o lembrava de Ryan, e aquilo não saía da minha cabeça. Eu não podia colocá-lo naquela situação, quer dizer, beijar o cara que duvidou de um estupro? E namorava o estuprador? Foi demais para mim mas acho que, meu maior erro foi não perceber o quão difícil foi para ele. Eu fui egoísta, com a justificativa de que estava poupando ele de sofrimento – eu só estava cutucando a ferida ainda mais, Stan. Eu o fiz passar pelo inferno durante esses últimos meses e... ele não é igual os outros, ele não desistiu igual os rapazes. Taehyung nunca desistiu de mim. E ao invés de agradecer, porque, meu deus, ele não desistiu de mim nem mesmo quando dei todos os motivos do mundo para tal e o afastei incessantemente, eu só piorei ainda mais o sentimento. Stan, eu tentei de tudo para deixa-lo longe da minha bagunça, mas parece que quanto mais ele via, mais ele queria ficar. E—

- Você quer deixar ele ficar?

Jungkook prendeu o fôlego. Ele havia disparado palavras rapidamente para cima de Stan sem ao menos pensar se o amigo estava o compreendendo, e agora, sendo cortado, pegou-se desprevenido. As palavras simplesmente saíram de seu coração diretamente para sua boca, sem ao menos passar por filtro algum, e o que mais o assustava é que, ali, ouvindo-as em voz alta e deixando seus próprios lábios, não podia evitar em pensar como elas eram verdadeiras.

Sua mente clareou por um momento, seu coração tomou conta, uma vez que sentia seus batimentos em todos os cantos de seu corpo, ele fitava Stan, mas não o via propriamente. E então, as palavras do amigo ecoaram.

Você quer deixar ele ficar?

- Quero.

Stan fitou Jungkook com algo diferente, um sentimento que o amigo não conseguiu captar. E então, sorriu. Ele parecia aliviado, mesmo que Jungkook estivesse perturbado com a própria confissão.

- Kook, se você quer e ele quer, qual o problema? – Jungkook abriu a boca para falar, pronto para argumentar e apresentar fatos plausíveis para justificar a distância e, calando-o, Stan ergueu o dedo. – Me dê um motivo que não envolva algo do passado ou o ex problemático. Quero um argumento real, algo que envolva vocês dois, algo bom o suficiente para compensar todo esse sofrimento e essa distância.

E Jungkook não tinha argumentos.

- A dor, Stan—

- Jungkook, você fala dele como se ele colocasse as estrelas no céu. Você está tentando desesperadamente se livrar do peso que carrega, das dores, do sofrimento, do arrependimento, mas é esse mesmo peso que se sente tão seguro em carregar. Tem que deixar ir embora, soltar o peso do passado e começar a correr atrás do futuro.

- Eu sempre vou querer o que é melhor para ele, Stan, mesmo que isso signifique minha ausência.

- Mas você mesmo disse que nunca viu ele tão devastado assim! Kook, olha, eu não o conheço, mas pelo que me contou, ele passou por muitas coisas, mas sabe da única coisa que ele nunca abriu mão? – Jungkook o encarou com os lábios abertos e olhos arregalados, o peito subindo e descendo. – Você, Kook. Não percebe? Ou acha que eu não sei que está saindo e vendo ele? Que viu ele hoje? Você chegou mais leve, mais... livre. Enxerga, Kook, as pessoas que são destinadas a ficar a sua vida não são aquelas que não te quebram, felicidade é a coisa mais assustadora no mundo, porque a partir do momento que se sente feliz, essa felicidade pode ser tirada de você, as pessoas as quais devem estar ao seu redor são aquelas que sabem como gentilmente esperar até você se curar. Taehyung está esperando que você se cure, Kook, e caso não tenha notado, ele precisa de você para se curar.

Jungkook estava uma confusão de pensamentos, sentimentos e palavras. Ele tentava ouvir Stan e tentava raciocinar, mas seu coração batia tão alto em seus músculos e veias e ossos que simplesmente se sentia a deriva no mar. O que ele não compreendia é que a resposta já estava ali – ao invés de tentar pensar sobre os batimentos de seu coração, ele devia deixar os batimentos tomarem conta.

- Stan, Ryan—ele... eu não po—

- Kook, eu sei que passou por coisas ruins com esse tal ex, coisas que não quer me contar, e tudo bem – Stan lançou um olhar reconfortante para Jungkook, que agarrava a bancada da cozinha como se fosse cair a qualquer instante. – Mas não pode se prender a ele, não pode deixar seu passado te impedir de prosseguir.

Ele já havia tentado seguir seu cérebro – e olha como estava. Era a vez de dar voz ao coração. Mas e o medo? Qual a probabilidade de ouvir algo já quebrado em pedaços e não acabar se quebrando mais ainda?

- Você não entende. – a voz de Jungkook soou tão instável que Stan achou melhor deixar o assunto acabar, temendo que o amigo não consiga aguentar muito. – Eu o amei, Stan. Eu o amei, e o protegi, e ele era um monstro. Eu estrago o que eu amo, e—

Stan se levantou, contornando a bancada e pegando Jungkook pelos ombros gentilmente, forçando os olhos claros a focarem nos seus. Sua voz soou amena, embora ele soubesse que suas palavras eram afiadas.

- Você nunca ama da mesma forma duas vezes, Kook. E eu compreendo que ele te machucou—

- E machucou Taehyung, também.

- E vocês vão amar com mais intensidade que os outros, porque sabem como é, já estiveram no escuro e aprenderam a apreciar tudo que brilha. – Stan apertou os ombros de Jungkook, já sentindo seu próprio corpo ficando tenso. Ele precisava contar tudo, precisava colocar para fora o que havia guardado todos esses meses. – Eu conheço você desde sempre, Kook, eu sei que a UAL era seu sonho desde pequeno. E sabia que quando me ligou e pediu para morar comigo por um tempo... Jungkook, só algo muito ruim poderia ter acontecido pra te tirar daquele lugar. E então você chorava durante a madrugada inteira, faltava semanas seguidas na aula, mal comia... e-eu te conheço e sei que quando se abre, se culpa mais ainda, com toda aquela coisa de espalhar o sofrimento, mas... eu não posso mais fingir que não estou vendo. Desde que se mudou, seus menos piores dias são aqueles que envolvem Taehyung de alguma maneira. Ou acha que deixei de ver os jogos durante semanas apenas pra deixar você ver Friends pela milésima vez? Acha que não sei que estavam conversando? Que aquilo é importante pra vocês dois? – Jungkook fitava Stan com olhos enigmáticos e então, lágrimas tomaram conta. Com um abraço, Stan continuou, a voz abafada pelo corpo trêmulo de Jungkook. – Eu não aguento mais ver você sofrer, Kook, sofrer por achar que faz Taehyung sofrer. Só... coloca na sua cabeça que se isso realmente estivesse acontecendo, ele não estaria insistindo tanto.

Minutos de silêncio se passaram, Jungkook contendo lágrimas e se engasgando em soluços enquanto Stan derramava lágrimas silenciosas – ele se arrependia, claro, de ignorar os sinais óbvios que Jungkook estava deixando, mesmo que não propositalmente. E então, a voz melodiosa e quebrada de Jungkook soou, baixo e rouca contra o ombro do amigo.

- E agora?

Stan sorriu, o queixo sobre a cabeça de Jungkook.

- Segue seu coração.

- Qual dos pedaços?

- Posso te contar uma coisa, Kook? – sem esperar a resposta que nunca viria, Stan continuou, beijando os cabelos de Jungkook conforme falava. – Todos os nossos corações estão quebrados. É assim que a luz entra.

Jungkook não falou nada até terminarem de jantar (Stan esquentou o macarrão mais uma vez), não abrindo a boca nem mesmo quando o amigo disse "Já percebeu que sempre quando conversamos, comemos macarrão?". E somente quando estava deitado em sua cama, coberto até o pescoço e olhos no teto, é que permitiu-se falar com Stan, que estava parado em sua porta a muitos minutos.

- Está tudo bem?

- Fomos muito felizes, sabia? – dizendo ao mesmo tempo que Stan, Jungkook riu baixinho enquanto ainda mantinha o olhar fixo no teto. Demorou alguns segundos para sentir a cama afundando perto de seus pés e sem ouvir nenhuma resposta do amigo, prosseguiu. – Eu e Taehyung. Nós nos divertimos muito, ele... ele é incrível.

- Tenho certeza que sim. – a voz de Stan estava calma, reconfortante, e Jungkook se sentiu grato pelo amigo.

- Estava pensando sobre aquilo que me falou... bem, sobre tudo, mas especificamente daquilo que disse sobre descrever Taehyung. – Jungkook apertou a coberta em seu peito enquanto sentia o olhar de Stan queimar em si. – Só queria que você soubesse que ele é... vamos começar com maravilhoso e quando achar uma palavra melhor, eu te digo. Ele é o dono das minhas memórias mais felizes e incríveis. Você disse... sobre meu sonho sempre ser a UAL e que algo muito terrível devia ter acontecido pra me fazer deixar aquele lugar. A verdade é que eu fiquei três anos lá e não vi a uni como ela realmente é, entende? Com Taehyung... no nosso primeiro encontro, que foi em um dos dias mais tristes que tive depois que tudo desmoronou, assistimos os minions em ua projeção no prédio de Design, eu acho, enrolados em edredons e acabamos a noite discutindo sobre qual das meninas era melhor, e dos minions, claro... ele—ele cantou aquela música estúpida e, deus, se eu soubesse o quanto sentiria falta dela, teria deixado ele cantar pela quinta vez. Stan, eu nunca me senti tão... Jungkook. É... 'tá fazendo sentido?

Pela primeira vez fitando Stan desde que ele entrou no quarto, Jungkook viu que o amigo tinha um sorriso no rosto. Ele assentiu lentamente e fazendo gestos para que continuasse, o incentivou.

- Continue, continue. Nunca se sentiu tão Jungkook...

Jungkook voltou a fitar o teto, o estômago revirado – e pela primeira vez em muito tempo, não era de náuseas ou choro eminente, era de felicidade, aquele frio na barriga de quando se lembra de alo intenso. Jungkook estava se lembrando de Taehyung.

- É louco falar assim mas... quando eu estou com ele, principalmente naquela noite, ele me olha e—e eu me vejo nos olhos dele, como se fosse tão verdadeiro, tão simples, tão... tão real quanto um reflexo, e isso me assusta, o fato do sentimento estar tão cristalino para ele quando está para mim. Mas então eu olho mais pra baixo e vejo o sorriso dele, o medo some, e o pior é que justamente pelo medo sumir é que eu fico mais apavorado. Stan, ele não tem medo algum e me passa tanta confiança...

- Isso é bom, não é?

Jungkook engasgou com as palavras e alguns segundos depois, retomou o fôlego ao continuar a dizer:

- E se eu for longe demais? Confiança é uma coisa perigosa, Stan, ela te faz fazer coisas que sentimento algum faria. E sem justificativa nenhuma—

- O amor justifica. – Jungkook voltou a encarar Stan, a sobrancelha franzida e o coração tão acelerado que ele precisou se esforçar para ouvir as próximas palavras: - A confiança te faz fazer coisas em nome do amor.

E, como se não conseguisse impedir, Jungkook respondeu:

- Eu confiava em Ryan.

- Não era amor.

Fitando o teto pela milésima vez em horas, Jungkook se viu calado (algo bem raro para o antigo Jungkook, mas tão comum quanto doloroso para o atual). Stan estava certo, desde que começou a falar, no começo da noite, até aquele momento, Stan estava certo.

Jungkook suspirou, os olhos fechados ao que já via luzes coloridas no teto em alucinações. Ou ele iria se arrepender do que pretendia fazer em seguida ou iria agradecer muito depois. Só lhe restou rezar.

- E se for amor? – ele engoliu o nó, a testa molhada em suor assim como o pescoço. – Com Taehyung. E se for amor?

Stan disparou palavras tão rápidas quanto um tiro e tão certeiras quanto uma flecha – Jungkook já sabia, contudo, o que deveria fazer, só precisava ouvir de outra pessoa, de uma testemunha.

- Deve dar uma chance.

- Devo ligar? – embora já estivesse alcançando o celular no criado-mudo, Jungkook questionou. Stan sorriu e assentiu, observando o amigo desbloquear o aparelho e colocá-lo na orelha em alguns segundos. – O que eu falo?

Stan piscou, ele estava orgulhoso de Jungkook e vendo-o ali, ligando por iniciativa própria para Taehyung, o cara para a qual derramava lágrimas de saudade e gotas de sangue (embora ele não soubesse dessa parte) por meses, era um alívio.

- Stan, o que eu falo? – Jungkook insistiu, enquanto o telefone tocava. Ele parecia aterrorizado, mas não havia um pingo de arrependimento em suas feições. – Não consigo pensar em nada.

- É porque não tem que pensar. Deixa seu coração falar, não seu cérebro.

Antes que Jungkook pudesse fazer qualquer outra coisa, a ligação foi atendida e a voz rouca e familiar soou do outro lado.

"Gukkie?"

:)

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top