Capítulo 30 - A face da obsessão

Você está com as bochechas coradas?
Já teve medo de ficar com alguém na cabeça
Que gruda como algo nos dentes?
Há alguns "ases" na manga?
Você nem imagina que está envolvida?
Sonhei contigo quase toda a semana
Quantos segredos você consegue guardar?
Pois encontrei uma canção que me remete a você
E eu a coloco para repetir
Até adormecer
E derrubo bebida sobre o sofá
Será que quero saber se esse sentimento é recíproco
(Do I Wanna know? - Arctic Monkeys)

🍂


Seu maldito... Desgraçado! - Me liberei do enlace de Lizzie e parti para cima do homem parado à porta, lhe dando tapas e chutes, tentando ver quem habitava por de trás da máscara - Eu juro que você vai queimar no inferno, miserável! - um choro descontrolado ia ganhando cada vez mais força e eu já não respondia por mim, nem por meus atos, tamanha a dor que sentia.

Meu pai estava morto e de frente para mim, parado com a postura mais serena e tranquila do mundo, estava o homem que havia tirado sua vida. Eu não o podia ver, seu rosto era um mistério, mas eu o amaldiçoei com toda a fé que nem ao menos tinha.

Golpeei seu peito com tanta força e até minhas mãos doerem, mas aquilo parecia não surtir nenhum efeito sobre ele, que por sua vez, jogou-me sobre a cama, fechando a porta atrás de si, como um covarde fugindo de seu julgamento.

A sua voz, mesmo que adulterada, ainda podia ser ouvida do lado de fora, denunciando sua fraqueza em olhar para mim. Era horrendo pensar que eu o conhecia e que de alguma forma o fiz nutrir esse sentimento insano, o motivando a cometer os mais variados crimes.

- Pensei que estivéssemos fazendo progresso, Sarah - falou - Seu pai era uma pedra em nosso caminho e me livrei dele para o seu bem - fez uma pausa curta - Não era pra ser assim, mas infelizmente aconteceu.

Era sério o que eu estava ouvindo? Ele julgava o assassinato de uma pessoa inocente como um simples contratempo? A fúria me dominava e o fato de Lizzie estar ao meu lado não diminuía minha fala agressiva. Meu pai estava morto e a culpa era do desgraçado que me mantinha refém.

- Mas que merda!!! - esbravejei enquanto chutava a porta exaltada - Me deixa sair daqui, seu filho da puta!

- Eu vou deixar, mas só quando você perceber que tudo que estou fazendo é pra que possamos nos entender - disse-me pausadamente, como um professor explicando as regras da classe aos alunos - Sei que podemos ter um futuro lindo juntos.

Meu choro era audível, denotando todo meu desespero, mas ele parecia não notar, ou talvez isso fosse irrelevante em sua mente pervertida.

Deixe de ser covarde e se mostre - provoquei, aos berros e em meio a soluços, tentando fazê-lo voltar e finalmente se revelar - O que você quer de mim, seu degenerado?

- Só quero que sejamos felizes, meu amor - aquele jeito açucarado de se comunicar comigo me causava náuseas - Logo teremos uma casa inteira só pra nós e nossa pequena Liz.

O nome de minha filha saído dos lábios de um assassino era repugnante, mas não seria engenhoso de minha parte continuar com aquela agressividade, sabendo que lidava com um psicopata.

Abracei Lizzie e ela retribuiu. Mesmo que a vinda dela para junto de mim tenha causado a morte de meu pai e a tenha colocado em risco, meu coração agora estava tranquilo. Jamais deixaria algo acontecer com ela, ao meu lado, eu a protegeria.

Seu rosto molhado pelas lágrimas partiam meu coração. O avô era muito importante para ela e como se não bastasse a perda do pai, esse maldito havia lhe proporcionado um trauma para o resto da vida. A cena do assassinato de meu pai ficaria gravado como a memória mais dolorosa e perturbadora que uma criança poderia ter.

- Sarah? - a voz quebrou o silêncio que o abraço entre mim e Lizzie trouxera - Vamos lá, me perdoe, meu amor.

Engoli nervosa. Não era possível que alguém pudesse ser tão frio ao ponto de achar que o assassinato de alguém é algo a ser perdoado. Limpei meu rosto com os punhos, eu não podia me dar ao luxo de ficar de luto, o vazio que a perder meu pai provocava era algo que jamais deixaria meu peito, mas agora eu precisava cuidar da minha filha e encontrar um modo de nos tirar daquele inferno.

- Está bem, eu perdôo você! - doía dizer aquilo, mas era o único jeito de conduzir bem a loucura daquele homem - Mas por favor, me diga quem é você. Quero conhecer seu rosto.

- Você já me conhece melhor de que imagina!

Os passos ecoaram e foram se afastando gradativamente pelo corredor e eu sabia que ele havia nos deixado. Seria mais difícil do que eu pensava descobrir quem ele era e mesmo usando todos os neurônios existentes em meu cérebro, eu não conseguia pensar em ninguém que pudesse nutrir um sentimento tão obsessivo e doentio por mim.

- Tô com medo, mamãe! - a voz suave de minha pequena criança acordava-me de meus devaneios - Quero ir pra casa.

A apertei, trazendo-a para meu colo, sobre a velha poltrona - Eu sei, minha querida, mas precisamos cuidar uma da outra, enquanto isso não acontece.

- A tia Emma e o tio Anthony não queriam me falar onde você estava, então mentiram que logo voltaria, mas eu sabia que não - seus olhinhos novamente inundaram-se de lágrimas - E o tio Scott disse que traria você pra mim, mas ele também mentiu.

- Calma, meu amor! - tentei consolá-la, mas ela era apenas uma criança, não havia nada que eu pudesse dizer para explicar o motivo de estarmos presas alí.

- A vovó disse pra eu rezar, pedir pro meu anjo da guarda trazer você de volta, mas eu fiz tudo errado, mamãe - havia culpa em sua voz - Eu pedi pra ele me levar até você e agora o vovô foi pro céu.

Me surpreendi com toda sua sagacidade, já que, segundo ela, ninguém lhe contava nada, ela tinha a percepção de que eu não poderia voltar por livre e espontânea vontade, então pediu, na sua inocência, para que o anjinho a levasse até mim.

- Não diga isso! - a repreendi, mas de maneira doce - Nada disso é culpa sua, entendeu? Você ainda é muito pequena para entender o porquê de tudo isso estar acontecendo conosco, mas um dia, quando você crescer, a mamãe explica.

- Eu sei que o homem mau quer a gente pra ele - mordeu os lábios com nervosismo - Como a fera queria ficar com a Bela, mas ela não queria ficar longe do pai e mesmo assim, ele prendeu ela no castelo.

Era tão curta sua experiência de vida, agia sempre com total inocência, mas intimamente era mais esperta do que as outras crianças de sua idade. Podem achar que estou dizendo isso por ser minha filha, mas desde a morte de Tyler, até meu sumiço, Lizzie sabia de tudo e nossas tentativas de camuflar a verdade não haviam servido de nada.

- Isso mesmo - concordei com sua comparação - E assim como a Bela fez com a Fera, nós precisamos ensinar ao homem mau que isso é errado. Ninguém tem o direito de obrigar ninguém a nada.

- Mas acho que ele não é bonzinho lá no fundo, como a Fera era - constatou - Não vai mais deixar a gente ver a vovó e nem a tia Emma - o rosto vermelho e os olhos encharcados me enchiam de compaixão.

- Olha pra mim, Lizzie - segurei seu rosto entre minhas mãos - Nós vamos dar um jeito de sair daqui. Eu prometo!

Deitamos de conchinha sobre a cama e eu a abracei de forma protetora, enquanto alisava seus cabelos e cantarolava baixinho em seu ouvido, sua canção favorita:

"Em algum lugar, acima do arco-íris, bem no alto, há uma terra que eu ouvi uma vez em uma canção de ninar. Em algum lugar, acima do arco-íris, os céus são azuis e os sonhos que você se atreve a sonhar, realmente tornam-se realidade..."

🍂🍂🍂🍂

O sol já havia ido embora há horas, sentia que a noite fria se aproximava, num sombrio e nebuloso crepúsculo. Enrolei Lizzie sobre um dos cobertores disponíveis no quarto e deixei que continuasse dormindo.

Chorei toda a dor que mantive guardada, pus para fora toda a frustração e impotência acumulada enquanto eu tentava ser forte para que Lizzie não notasse minha desesperança.

Não havia nenhum barulho vindo do outro lado da porta, somente na rua o cricrilar dos grilos, o vento que soprava sua melodia deprimente e, vez ou outra, o coaxar de um sapo, mas nada do estranho conhecido.

Já estava entrando em um colapso nervoso, quando escutei ao longe o caminhar do homem vindo até o quarto, mas ele continuava com a vestimenta que ocultava sua identidade.

Trouxera nossas refeições, mas era impossível comer com o estômago revirado, com a mente completamente desordenada e o coração destroçado. Deixei o prato de Lizzie sobre o móvel e lhe devolvi o outro, enquanto ele avaliava meus movimentos cautelosamente.

- Coma! - ordenou - Ficará fraca se não se alimentar.

- Me diga quem é você! - pedi com a voz trêmula.

Ele levou alguns segundos para responder, suspirou e trancou a porta com a chave, andando até o outro lado do cômodo e sentando-se sobre a poltrona - Se eu fizer isso, você come?

O quê? Ele estava me chantageando, como um pai faz com o filho que não quer jantar? Isso era ridículo, mas vindo de um maluco que prendia uma mulher contra à vontade dela e mesmo assim achava que iria fazê-la se apaixonar, não é nada absurdo.

- Está bem! - concordei, pegando o prato e me acomodando ao pé da cama, onde Lizzie repousava - Agora se mostre.

- Primeiro preciso lhe contar uma história - ele mantinha a máscara com o modificador de voz - Depois dela, você nem precisará ver meu rosto para me reconhecer.

Assenti, concordando com aquele discurso patético dele - Sou toda ouvidos.

- Tudo começou quando nos conhecemos, ainda no colegial - iniciou ele - Você era tão linda, tão meiga e mesmo tímida, fez questão de me ajudar, inúmeras vezes, quando eu me encontrava sozinho nos intervalos.

Eu estava certa, ele era alguém próximo, alguém que eu conhecia bem, mas em meio a tanta gente conhecida, ficava difícil saber de quem se tratava. Deixei que ele prosseguisse.

- Depois de um tempo, nos tornamos amigos e mesmo com tantos outros ao seu redor, você nunca deixou de me dar atenção. Eu sentia que estava prestes a te conquistar, sonhava todas as noites em poder te beijar e já havia idealizado todos os passos para pedir você em namoro - suas mãos passeavam pela máscara, como se o nervosismo o tivesse atrapalhando de falar - Até que o maldito King e todos os seus amigos ricos e metidos apareceram, te tomando de mim e fazendo com que tudo que eu havia construído ao seu lado se tornasse insignificante.

Minha mente maquinação freneticamente em busca de alguém com quem eu estivesse tido uma espécie de aproximação romântica na época, mas antes de Scott, ninguém em especial havia passado por minha vida.

É bem verdade que, ao conhecê-lo, acabei me afastando de algumas pessoas, mas não me recordava de ninguém em especial que houvesse sido deixado completamente de lado, como ele afirmava ter sido.

Conhecer Scott foi pura obra do acaso. Nos esbarramos na saída do vestiário masculino e depois de algum tempo, sua insistência em me levar pra sair acabou surtindo efeito e depois disso, nós começamos a namorar. Ser tão bem recebida, em meio às pessoas mais populares da escola, foi uma grata surpresa e me tornei, sem querer, tão popular quanto eles.

Sempre fui uma menina quieta, não gostava dos holofotes e mesmo com a insistência de minhas amigas nunca aceitei fazer parte das líderes de torcida. Sempre me dei bem com todos e acho que era isso que Scott mais gostava em mim, ser diferente e transitar pelos mais diferentes grupos.

- Você passou a ignorar nossas tardes de estudo pra ficar ao lado daquele monte de músculos sem cérebro - aumentou a voz - E meu coração foi aos poucos se tornando amargurado e frio.

Tardes de estudo? Só havia uma pessoa com quem eu tinha esse tipo de interação, mas não era possível. Ele não seria capaz de uma maluquice como essa. Ou será que seria?

- Você era tudo o que eu tinha, Sarah! - ele parecia ferido - Era horrível ouvir você me chamar de irmãozinho, doeu ouvir sobre seu primeiro beijo, sobre sua primeira transa com King e todas as viagens que vocês dois curtiam juntos, quando tudo o que eu queria era estar no lugar dele.

Abri os lábios e tentei argumentar, mas a história cruel de sua juventude de rejeições parecia ainda não ter acabado.

- Depois da formatura, acompanhei seus passos por mais algum tempo e quando achei que teria uma chance, quando vi o maldito King ser deixado pra trás, Tyler apareceu e em seguida a gravidez - fez uma pausa, suspirando incomodado com a própria história - Fui pra faculdade, cursei medicina e me formei cirurgião. Quando voltei pra Salt Lake Tahoe, conheci minha esposa e me casei, mas ela não soube lidar com a paixão que sinto por você e as coisas se tornaram difíceis.

Era ele, eu não podia crer, mas era ele. Como eu não notei, como fui tão cega e não vi o que era tão óbvio? Todos os momentos aleatórios em que nos encontramos, depois de tanto tempo, todos os olhares trocados e a propriedade com que ele falava de nós, agora tudo se esclarecia, bem diante dos meus olhos.

- Eu queria muito saber no que você está pensando, mas tenho medo de perguntar. Preciso de você e eu sei que também precisa de mim, por isso fiz tudo o que fiz - o medo crescia, à medida que ele ia explicando como tudo havia acontecido - Tyler vivia te aborrecendo, sei que no fundo, tudo que você queria era se livrar dele, então eu o fiz - ele desligou o aparelho acoplado na máscara e uma voz rouca fez-se ouvir - Acho que está na hora de saber quem eu sou.

Não teria mais necessidade de vê-lo, sabia bem a quem pertencia aquela voz, sabia quem era o protagonista daquela história completamente distorcida e fantasiosa.

Quando a máscara finalmente deixou seu rosto, ele arfou, se revelando diante dos meus olhos e a única coisa que fui capaz de pronunciar, ainda que em murmúrio, foi o seu maldito nome:

— Shane Rhee!

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