O "Trem" do Mal

Tudo em Belo Horizonte me lembrava do meu marido e do acidente que o tirou de mim. Eu estava a ponto de enlouquecer a mim e aos meus filhos quando a carta do advogado chegou, me falando sobre a morte de um tio que eu nem conhecia e a fazenda que ele me deixou de herança.

Depois de um tempo eu decidi seguir a orientação da minha psicóloga, de que talvez uma mudança de ares poderia ser o que eu estava precisando para "voltar a viver", e à medida em que eu me aproximava da cidadezinha onde a fazenda ficava, eu percebia que ela realmente poderia estar certa. O maior desafio seria a adaptação dos meus filhos, Marcos de treze anos e João de oito.

A primeira semana na fazenda foi de muito trabalho. A casa era muito grande e se não fosse a ajuda da Patrícia, eu nem teria conseguido arrumar tudo. Ela trabalhava para o Tio Sebastião desde que sua mãe não pôde mais trabalhar por conta de uma doença, e como cresceu na fazenda e sabia tudo o que precisava fazer, foi fácil assumir o lugar da mãe como empregada da casa.

Outro empregado cuidava dos animais e da área externa da fazenda, mas eu raramente tinha contato com ele, já que estava ocupado o dia todo e antes de anoitecer ele ia embora. O nome dele era Jonas e Patrícia disse que por algum motivo que ninguém soube explicar, ele tinha ficado mudo. Diziam que era um trauma ou algo do tipo, mas a verdade é que ele simplesmente parou de falar e nunca mais voltou.

A casa era bem antiga, e possivelmente tinha muitos ratos que disputavam com os encanamentos quem fazia mais barulho durante a noite. No início até eu me assustava com os barulhos semelhantes a passos ou a sussurros, mas Patrícia me explicou que desligava a bomba de água do poço artesiano antes de ir para casa ao anoitecer, e os barulhos eram do vento passando pelo encanamento.

Quando os meninos começaram na escola da cidade, eu ficava o dia todo sozinha em casa e só saía para buscá-los às dezessete horas. Certa vez, após voltar da aula, João me disse que chamou alguns amigos para virem brincar na fazenda, mas as mães deles não deixaram, dizendo que tinha algum "trem" do mal aqui e que era para eles evitarem até de conversar com ele. Eu achei um absurdo completo e fui reclamar com a direção da escola, mas eles me disseram que era para eu relevar, pois, as pessoas das cidades de interior eram muito supersticiosas e como isso estava enraizado neles, era impossível fazer qualquer coisa à respeito, mas que iriam cuidar para que nenhum tipo de discriminação fosse feita contra o João dentro da escola.

Comecei a perceber olhares estranhos vindo das pessoas quando ia na mercearia, nas ruas, ou mesmo na escola e estava ficando incomodada com a situação. O que será que tinha acontecido na fazenda para eles terem tanto medo a ponto de me desprezarem só por eu morar lá?

Uma vez eu perguntei para a Patrícia porque as pessoas da cidade agiam assim, e porque falavam que tinha um "trem" do mal na fazenda. A resposta dela foi a mesma da professora, mas após insistir bastante ela me contou tudo. Rosa, filha única do meu tio, desapareceu e pelo fato de suas roupas e uma mala terem sumido também, eles deduziram que ela tinha fugido. Sem ter notícias da filha, a minha tia Ana entrou em depressão e depois de um tempo se matou. Por fim o Tio Sebastião também adoeceu e morreu.

Ela contou ainda que muitos funcionários abandonaram seus empregos, ou foram diagnosticados com problemas psicológicos e uma delas era sua mãe, que precisou ser internada em um lar de assistência psicossocial da cidade vizinha, além de Jonas que uma vez foi encontrado encolhido em um canto do curral, tão assustado que depois disso nunca mais falou uma única palavra sequer e também passou a ir embora antes que anoitecesse.

A história da fazenda era realmente terrível, mas acreditar que era algo sobrenatural já era demais. Será que as pessoas do interior tinham a mente tão pequena assim, a ponto de acreditar em assombração? Se a Patrícia que está aqui todos os dias, disse que nunca viu nada de diferente na fazenda, por que o povo que nunca veio aqui acreditaria nisso?

Alguns meses se passaram, e coisas estranhas começaram a acontecer. Objetos que misteriosamente desapareciam de um lugar, e apareciam em outro sem ninguém mexer, luzes acendendo e apagando sozinhas, móveis amanhecendo revirados e animais gritando desesperadamente de madrugada. Com exceção do caso dos animais, eu cheguei a pensar que eu ou um de meus filhos éramos sonâmbulos ou algo do tipo, e estávamos fazendo isso enquanto dormíamos.

Com a ajuda de Jonas, eu instalei algumas câmeras com visão noturna pela casa, e foi aí que eu comecei a perceber que a fazenda não seria uma fuga de meus tormentos e que eu havia apenas trocado um pesadelo por outro.

Algumas noites se passaram e nada foi detectado, até que eu tive um pesadelo onde eu estava presa em uma antiga cabana de madeira, acorrentada e usando apenas uma camisola branca. Pelo volume de minha barriga dava para perceber que eu estava grávida e sentia muito medo de morrer ou de perder o meu bebê. Uma mulher cujo rosto não pude ver, mas podia perceber que era idosa pela pele de suas mãos, vinha trazendo um prato de comida e eu a implorei para que me deixasse fugir.

— Fique tranquila. — Ela me disse, acariciando meus cabelos. — Isso não irá durar muito tempo. Por hora apenas coma, ou irá prejudicar o bebê.

Mesmo com o toque aparentemente carinhoso, eu senti maldade nela e em suas palavras e enquanto eu comia ela simplesmente fechou a porta e saiu. Após engolir algumas porções da comida, eu senti uma forte dor abdominal e um líquido viscoso escorrer em minhas pernas me fazendo olhar para baixo, para ver que a camisola branca estava manchada de vermelho entre as minhas coxas.

Me lembro de sentir um grande desespero, temendo pelo bebê e olhando para o prato com o resto da comida que estava comendo segundos antes, o vi cheio de larvas. Num impulso de horror e nojo eu me levantei ainda sentindo as fortes dores e ao me encostar na parede de madeira, senti que algo saía de dentro de mim e escorria pelas minhas pernas até cair no chão. Olhando aterrorizada para o chão, vi que em meio às minhas pernas estava um bebê em estado avançado de decomposição sendo comido por larvas.

— O meu bebê não é lindo? — ouvi uma voz feminina perguntar e quase paralisada de terror, ergui a cabeça e direcionei o olhar na direção da voz, para ver uma bela jovem que usava uma camisola branca semelhante à que eu usava. Ela tinha longos cabelos encaracolados que pendiam sobre os seus ombros e olhava apaixonadamente para o cadáver pútrido do bebê que agora estava em seus braços.

— Ele não é lindo? — Ela perguntou novamente, mas agora o seu rosto estava monstruosamente distorcido, e sua voz era de um tom grave e assustador. Em um movimento rápido ela se aproximou me fazendo cair para trás e então tudo escureceu.

Acordei e vi que estava deitada no chão da mata que era propriedade da fazenda, e o sol começava a nascer. O que me levara até ali era um grande mistério, já que a última coisa de que me lembrava era de me deitar em minha cama na noite anterior. Alguns metros à minha frente, uma cabana de madeira figurava em meio às árvores, mas no perímetro ao seu redor, nenhuma vegetação nascia, conferindo a ela um visual sombrio e nefasto.

Eu não tive coragem de entrar lá e ao invés disso eu fui para casa antes que alguém me visse de camisola ali na mata. Quando entrei em casa, percebi que os móveis da sala estavam fora do lugar e as portas dos armários todas abertas, mas a primeira coisa que eu fiz foi correr até o notebook para ver as imagens a fim de saber o que havia acontecido. De início tudo estava normal e na imagem eu me vi dormindo coberta com meu edredom, mas após adiantar um pouco o vídeo um movimento chamou a minha atenção me fazendo voltar à reproduzi-lo normalmente.

As portas do guarda-roupa se abriram e a televisão ligou, ambos sozinhos. Na cama, o meu edredom foi descendo como se estivesse sendo puxado, me descobrindo totalmente. A imagem falhou por um milésimo de segundo e quando voltou, eu estava de pé e caminhando para fora do quarto. Mudando a câmera eu me vi andando pela sala, e medida em que eu passava pelos móveis eles se afastavam como se um campo de força invisível estivesse ao meu redor. A porta que dava para a varanda se abriu sozinha e eu saí para a escuridão. Nas imagens da câmera da varanda, eu me vi passando pelo carro e de relance vi um reflexo estranho no vidro espelhado do mesmo, até que segui em direção à mata.

Mesmo assustada com tudo o que estava vendo, eu voltei as imagens e pausei no momento em que passava pelo carro. Aproximando a imagem, eu vi algo que quase fez o meu coração parar. O reflexo no vidro do carro não era meu e pelos longos cabelos encaracolados pude ver que era a mulher que apareceu no pesadelo que tive, mas o terror não parou por aí e quando fixei o olhar para ver mais detalhes, ela virou o rosto direto para a mim, com a mesma aparência cadavérica e grotesca do pesadelo, me dando um susto que me fez jogar o notebook para longe.

Eu estava aterrorizada, mas ainda assim eu me vesti e ajeitei os móveis antes que Patrícia chegasse ou meus filhos acordassem, para não assustá-los com toda essa loucura.

Naquele dia após deixar os meninos na escola, eu decidi ir até o Lar Psicossocial onde a dona Marília, mãe de Patrícia, estava internada. Talvez ela pudesse me falar algo sobre a fazenda e os mistérios que a rodeiam. O lar era bem simples, mas organizado e pela felicidade com que a dona Marília me recebeu mesmo sem me conhecer, deu para perceber que ela não recebia visitas há muito tempo.

Ela não parecia ter qualquer problema mental e eu preferi não falar nada sobre a fazenda. Talvez por estar há muito tempo solitária, ela me contou quase tudo sobre a vida dela, inclusive sobre um caso de amor que teve com o ex-patrão, que ela não fazia idéia de que era meu tio. Ela disse que o caso lhe rendeu uma filha chamada Patrícia mas que não pôde contar para ninguém por causa do escândalo que seria, pois ambos eram casados.

Quando eu perguntei o porquê de ela estar ali, ela desconversou e então eu precisei perguntar se tinha a ver com o "trem" do mal que todos falavam que tinha na fazenda. Ao ouvir a minha última pergunta as feições dela mudaram de simpatia para irritação e ela disse que estava na hora de uma consulta e eu deveria ir embora. Foi então que eu disse quem eu era, que estava morando lá com os meus filhos e que tinha visto a mulher dos cabelos encaracolados.

— Saia daquele lugar o mais rápido possível! — Ela gritou, com o terror estampado em seus olhos. — O "Trem" do mal que está naquele lugar matou seus tios e irá matar você e seus filhos também!

Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa as enfermeiras entraram no quarto alarmadas com os gritos dela e me mandaram sair.

Entrei no meu carro decidida a pegar os meus filhos e sair daquele lugar, mas ao chegar na fazenda avistei João correndo para a mata. Mesmo achando estranho por saber que ele ainda deveria estar na escola naquela hora, eu me desesperei e saindo do veículo corri atrás dele. Chegando na cabana eu o perdi, até que um barulho vindo de trás da cabana me fez correr até lá.

Passando pelas árvores, vi que João estava ajoelhado na ponta de um deck de madeira na beira de um grande lago e parecia tentar pegar algo na água. Eu gritei o seu nome, mas quando ele olhou para mim algo o puxou com força para dentro da água. Eu corri desesperadamente e pulei, nadando para o fundo com os olhos abertos e mesmo na água turva eu pude ver ele sendo puxado para baixo, então acelerei as braçadas com todas as minhas forças até conseguir segurar a mão dele e começar a puxá-lo para cima, mas a mulher dos cabelos encaracolados estava segurando-o pelos pés, impedindo que eu o salvasse.

Mesmo quase perdendo os sentidos e me afogando, eu não soltei a mão dele e quando eu pensei que era o nosso fim, senti uma mão forte nos puxando para o alto e nos tirando do lago. Sem fôlego, eu olhei para o meu salvador e vi que era Jonas, mas quando eu olhei para o outro lado João não estava lá, e em seu lugar havia apenas uma mala coberta de musgo, que imediatamente deduzi ser a mala que sumiu quando Rosa desapareceu.

Naquele momento eu comecei a entender o que estava acontecendo. Pedi à Jonas que pegasse a mala e a levasse até a casa, enquanto eu fui até a cabana e sem pensar em mais nada, entrei. A cabana era exatamente como no meu sonho e no chão próximo à parede eu vi algumas correntes e um prato de metal sujo e enferrujado. No chão de madeira uma parte parecia mais nova que o restante e ao forçá-la, eu vi que era um alçapão. Assim que eu o abri, um odor pútrido tomou conta da cabana e eu nem precisei entrar no pequeno porão para saber o que eu encontraria lá dentro.

Voltando até em casa eu liguei para a polícia, e eles fizeram uma busca no pequeno porão da cabana, onde encontraram o cadáver de Rosa Ribeiro, a minha prima. Dentro da mala que eu tirei do lago, tinha um vidro de veneno e as investigações encontraram nele as impressões digitais da dona Marília, que ao ser pressionada pela polícia, confessou o crime e contou tudo o que aconteceu.

Rosa tinha um romance com o padre da cidade e quando o meu tio descobriu, tomou uma decisão cruel. Ele resolveu deixá-la de castigo na cabana, acorrentada para não fugir e a única pessoa que a via regularmente era Marília que levava a comida. Eles descobriram que Rosa estava grávida e decidiram fazê-la abortar o bebê, mas por algum motivo, Marília já vinha colocando veneno na comida dela aos poucos e a jovem acabou morrendo.

Para não serem culpados, meu tio, minha tia e ela decidiram esconder o corpo no porão da cabana, pegar as roupas da jovem, colocar na mala e jogar no rio fazendo parecer que ela havia fugido de casa.

Dona Marília disse ainda que matou Rosa para ver se meu tio reconheceria Patrícia como filha, mas seu atestado de insanidade mental a livrou da cadeia e ela foi levada para um hospital psiquiátrico onde foi encontrada morta em seu quarto tempos depois. Disseram que ela parecia estar muito assustada e a causa da morte foi sufocamento, mas as filmagens do circuito interno confirmaram que ela estava sozinha no quarto.

Por fim eu deixei a fazenda, voltei com meus filhos para Belo Horizonte e transferi a propriedade para Patrícia, que por ser filha do meu tio, é a verdadeira dona.

Hoje eu ganho a vida investigando, resolvendo casos e contando histórias sobrenaturais como esta e tenho muitas outras que talvez lhes conte outra hora.

O certo é que o sobrenatural existe, você acreditando ou não.

( 2664 palavras)

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