DIA 1
Não me considero uma pessoa indefesa, mas enfiada num porão em um navio cheio de homens maiores e armados eu era vulnerável. Minha única defesa, meu punhal, foi confiscado.
No dia seguinte, pouco após o sol nascer (e só deduzi isso dado o tempo que estive presa) o mesmo sujeito que me jogou porão abaixo me tirou de lá.
Meus olhos ficaram sensíveis com a luz, vi então que não estávamos mais no porto, e nem em qualquer outro ponto da minha ilha, e sim em alto mar navegando para sabe lá Deus onde. Comecei a entrar em desespero.
Achei que ficaria presa sob o toque áspero do marujo, mas ele me soltou e se juntou ao resto da tripulação que trabalhava nas cordas, velas, mastros e no timão. Fiquei desnorteada, sem saber para onde ir ou o que falar.
— Engraçado, ontem você parecia saber bem por onde ir nesta embarcação.
Esta voz...
Quando me virei para encará-lo, tive uma pequena surpresa: esperava encontrar feições severas e cruéis, grotescas até. A falta de luz nada tinha ajudado minha imaginação, além do comportamento violento.
Porém seu rosto era de fato jovem, pouco mais velho do que eu, por volta dos vinte e oito chutaria, as feições eram angulosas e definidas. O cabelo era sedoso demais para um pirata, ondulado como o mar. Os olhos eram castanhos e havia um sorriso ali, encantador e irônico. Inúmeros cordões rodeavam seu pescoço, estava cheio de pulseiras e anéis também. A roupa, hoje, era muito mais bem cuidada porém simples: camisa branca aberta até o meio do peito, calças pretas, um colete azul escuro e uma faixa cinza amarrava-se em sua cintura.
Levei um susto quando uma rata preta e branca surgiu por trás de seu pescoço, cheirando e mexendo em seus cabelos. Ele não parecia se importar. A rata pareceu notar minha aversão a toda a sua espécie e ginchou para mim.
— Sylvie, tenha modos — ele sussurrou para ela.
Pelo jeito, aquela coisa asquerosa era seu xodó. Tive a impressão que até o pelo da rata estava melhor do que eu.
Senti-me uma maltrapilha. Os cabelos ruivos eram vívidos mas estavam ressecados, antes bem trançados por cima e o restante solto, mas agora despenteados. Minha roupa não estava exatamente aos frangalhos, mas não era tão bem cuidada como a dele. A camisa branca já era áspera e desgastada, o colete de couro marrom estava coberto de manchas assim como as calças, e o capuz contava com alguns remendos.
Contrapondo isso, eu tinha traços muito bonitos e delicados apesar de tudo, sardas salpicadas causavam um charme além dos olhos cinzas. Era alta, do tipo esbelta, com curvas bem definidas e proporcionais.
Nada disso ajudava quando minha carranca se formava e podia senti-la se formando naquele momento.
— Eu sou o que agora, uma refém? Lamento, mas não tenho muito valor.
Sua expressão era indecifrável.
— Ah, mas claro que tem. Um valor quase imensurável se o que disse ontem a noite foi verdade.
Cruzei os braços.
— Do que diabos você está falando?
Havia uma diferença gritante entre nós, enquanto eu falava ríspida e com raiva, ele falava deleitoso e calmo.
— Falo daquilo que tentou roubar ontem a noite, se lembra? Falando em ontem à noite, peço desculpas para a bela dama pela agressividade, normalmente não sou assim, mas dada as circunstâncias...
— Não me chame de dama — rosnei.
De onde venho, no meio do mais baixo tipo de gente, dama não era agradável.
Uma sobrancelha sua se ergueu e um sorriso torto o tomou.
— Faz algum tempo que estou longe da terra firme, mas pelo o que me lembro dos bons modos, dama é algo bom.
— Não sou uma dama, eu roubo damas. Me chame de ladra, é o que sou.
Aquele desgraçado parecia divertido com minha irritação.
— Então nossa relação vai ser mais fácil, já que somos colegas de trabalho. Eu roubo por mar, você por terra. Mas acho que prefiro um nome.
Ele tinha uma leveza estranha na voz, melodiosa, talvez fosse o carisma que me fazia seguir com a conversa.
— Dione, gosto de Dine.
— Sou o Capitão Ítalo — sorriu. — Dine, já ouviu falar no tesouro das três irmãs? Eu presumo que não. É dita como um mito antigo, quando muito, uma mentira dos mares daqueles que passaram a vida toda procurando.
— E o que isso tem haver comigo? — Estava sem paciência.
Ele deu um sorriso amarelo, mesmo com a feição ainda séria.
— O que tentou roubar ontem à noite não é um telescópio comum, como notou. Ele na verdade é um mapa para o tesouro, um mapa até então inútil, visto que não sabíamos como decifrá-lo...
Minha expressão era incrédula.
— Está de brincadeira?
Seu sorriso desapareceu por completo.
— Possuo esse mapa há três anos, viajando para todos os lugares procurando quem possa decodificá-lo e nada. Nem mesmo uma única parte.
Tinha algo de errado ali. Mas a sensação de poder revelar aquele mistério, de encontrar um tesouro tão valioso... agitou meu peito.
— O que ganho se conseguir decifrá-lo?
A expressão séria se desfez, um sorriso zombeteiro se abriu, duvidando de que fosse tão fácil assim.
— Terá sua devida parte, de acordo com seus esforços. Além, é claro, de não ser jogada ao mar pela tripulação. — Meu olhos se arregalaram. — Deve saber que os homens não gostam de mulheres em mar aberto. — Ele deu de ombros. — Má sorte.
Engoli um pequeno bolo que se formava. Teria de conseguir.
— Me dê o telescópio — pedi.
Ítalo magicamente tirou-o das costas, e me entregou, com certa curiosidade. Não era de se admirar, afinal estava há três anos naquele mistério.
Examinei cuidadosamente o objeto, buscando no fundo da memória o significado de cada símbolo. Não difícil: era minha cantiga favorita, que minha mãe repetia todas as noites.
— Você tem alguma ideia do que eu tenho que fazer? — Perguntei.
— Presumimos que, deva se decifrar anel por anel, do início a ponta, e que este seria o caminho correto. Já tentei várias combinações e não cheguei em lugar nenhum, então posso estar errado.
Franzi o cenho.
— Combinações fixas?
Ítalo demorou um segundo.
— Sim.
— Bom, se estiver certa, você não teria como chegar a lugar nenhum nem que tentasse todas as combinações. É um mapa celeste, as estrelas mudam de acordo com a época do ano e localidade... é um mapa que precisa ser refeito constantemente.
Os olhos dele brilhavam em expectativa.
— Só posso esperar então que você conheça essas estrelas, certo? Sabe formulá-lo?
— Bom... — Olhei para o telescópio, girando os anéis e vendo os símbolos. — Há uma canção, que diz a ordem de cada constelação...
— Faça.
Por sorte, essa localidade não sofria de nenhuma alteração a cantiga, algum tipo de ponto imutável, então foi fácil.
Comecei a girar os anéis, selecionando as constelações certas, enquanto recitava a cantiga em murmúros.
O guerreiro deseja a dama encontrar
com a lança
deve o monstro matar
A constelação era uma reta, como uma seta no fim, indo em direção a algo como um crocodilo ou de boca aberta com a calda serpenteando.
e salvar
a dama distraída
que olha para a rainha
de todo o mar
defensora da lua, logo abaixo ela brilha
onde antes eram três
Retas representavam a Dama que apontava com a cabeça para a Rainha, um ponto brilhante com três retas puxadas para baixo, com as pontas vazias, sinalizando as três.
Ela espera suas irmãs
do mar voltarem
e ao céu
ascenderem
Praticamente pulei quando, girado o último anel, o telescópio estalou, e um pequeno brilho saiu da lente maior.
Ítalo o pegou das minhas mãos antes que pudesse raciocinar de novo. Ele colocou-o no rosto, como eu fizera noite passada, mas pude ver seu corpo tremer de emoção. Ele olhou à sua volta, e parou num ponto, à direita de onde estávamos indo. Ao retirá-lo, ele era facilmente o homem mais empolgado do mundo, me deu o objeto e latiu ordens.
— Homens! Temos um trajeto definido! — Houve uma gritaria desenfreada. — Caçar cabos, guinar estibordo às três horas!
Envolvidos na animação do capitão, faziam os comandos com agilidade impressionante. Já podia sentir a proa mudar de direção.
— Andem logo seus infelizes, temos muito ouro para caçar!
Eu espiei pelo telescópio para onde Ítalo se concentrou, havia uma espécie de rastro de luz naquela direção, criado apenas na visão do objeto.
O pirata virou sorrindo.
— A combinação era para destravar o telescópio — ele explicava. — Quem realmente vai nos levar até lá é ele.
Ítalo tinha um sorriso majestoso e incontido no rosto. Pude sentir seus olhos brilharem de novo, mas desta vez, para mim.
— Seja bem vinda Dine à embarcação Divindade Lunar, sinta-se em casa.
Até mesmo sua rata apareceu entre seus cachos e guinchou amigável, como se me desse as boas vindas também.
Quando ele saiu, algo tomou conta do meu peito.
E não me parecia ser uma idiotice.
Nas horas seguintes fiquei no batente do casco apreciando a vista com certo desconforto. Odiava a sensação de mar aberto, odiava ainda mais navios piratas.
Os marujos ocupavam-se mantendo a rota correta de acordo com as ordens de Ítalo que novamente grudado ao telescópio, observava o horizonte como quem já enxerga o tesouro à distância. Os tripulantes desviavam o olhar para mim num misto de descontentamento, curiosidade e até preocupação. Homens do mar tinham superstições e as levavam a sério. Podia quase ouvir os boatos de bruxa e azar vindo de seus olhos.
Sem outro propósito ali, segui observando o mar.
Ao entardecer, Ítalo surgiu.
— Seria inteligente procurar se enturmar com a tripulação — ele disse com descaso, enquanto se apoiava no batente como eu, observando o mar. — Alguns estão beirando ao medo em relação a você.
— Medo? — O olhei pasma. Nem mesmo armada eu estava, e duvidada que isso pudesse mudar algo.
Ítalo voltou sua atenção para mim.
— Você fala de constelações desconhecidas, uma cantiga que nenhum dos meus homens sabem, e eles conhecem muitas. Desvendou um problema que nos martelava há anos...
— Ainda não entendo isso... Como não podem conhecer? Achei que fosse uma cantiga não tão conhecida, mas comum...
— Quem a cantava para você?
— Bem, meus pais. Mas pertencia a minha mãe, ela me ensinou a ver as constelações, como desenhá-las e seus nomes...
O pirata chegou mais perto, interessado. Pude sentir seu cheiro de canela, prata e sal.
— Sua mãe conhecia a lenda — havia tanta certeza em suas palavras que foi como se ele a tivesse conhecido. — Sabia o segredo de como chegar até ele.
Eu dei uma risada seca.
— Claro, ela saberia onde fica esse tesouro imensurável mas não se deu ao trabalho de ir até ele — a descrença transbordava em minhas palavras. Depois, ressentimento. — Ela era uma pirata, mas tinha deixado a vida para trás para me criar com meu pai. Até que quando fiz nove, ela saiu em uma expedição e meu pai a seguiu. Nunca mais voltaram. — Aquilo ainda queimava meu peito, mas as lágrimas já tinham se secado há muito tempo. — Se ela soubesse desse tesouro, teria ido atrás dele desde o início.
Reconheci, então, no rosto uma expressão que o vira fazer mais cedo: Compreensão.
— Sua mãe era Dally, a caçadora de tesouro? A Dally?
Por um instante fiquei confusa.
— Minha mãe se chamava Danyelle. Ela era uma pirata simples, subordinada que largou a vida no mar.
Podia sentir a empolgação em Ítalo, e ele já estava convencido de toda a verdade.
— Dally pode muito bem ser apelido para Danyelle, e um pirata nunca deixa o mar para trás, Dine. — Seu tom caiu para algo mais tranquilo. — Sua mãe não era subordinada, era capitã do navio Tesouro de Poseidon. Foi a melhor capitã da sua época, existem histórias dela, de como navegava impecavelmente a noite, da leveza e velocidade de seu navio... E de como ela podia encontrar qualquer tesouro.
Eu não era capaz de piscar. Aquela não podia ser minha mãe.
— Sua última história foi que Dally, a magpie do mar¹, após descobrir a localização do tesouro lendário das três irmãs, partiu em sua busca, mas morreu durante a viagem. Ela nunca mais foi vista. A tripulação assumiu o comando do Tesouro de Poseidon e seguiram navegando por algum tempo... Mas sem Dally eles desceram na hierarquia — a voz dele morreu por um instante, de novo, compreendendo algo.
— O que aconteceu com a tripulação? — Me vi concentrada, nervosa.
— Eles decidiram fazer o que Dally não foi capaz. Eles foram até o tesouro. — Seus olhos pesaram em direção ao mar. — Ninguém voltou e a embarcação nunca mais foi vista.
Foi como se parte da minha vida, de repente, fosse reescrita.
— Mas... em que parte eu entro? Quando ela saiu do mar para me criar?
Houve um pequeno sorriso presunçoso em seus lábios.
— Essa é a história contada, a verdade, porém, é outra. Dally foi em busca do tesouro sozinha, descobriu a localização e saiu antes que os marujos dessem conta. Quando voltou sem o tesouro, parecia outra, havia desistido dele e de qualquer outro tesouro perdido. Abandonou o mar e ficou sumida por muitos anos.
— Foi quando eu nasci... — murmurei.
Ele concordou e continuou narrando.
— A tripulação entretanto não havia desistido do tesouro perdido das três irmãs e seguiram por anos procurando sua localização. Até que, desesperados, caçaram Dally e a obrigaram a levá-los até lá. Sua mãe não te abandonou, Dine, e seu pai provavelmente só tentou resgatá-la.
Tentei segurar o máximo possível, mas senti uma lágrima escorrer. Virei o rosto para o mar.
— Como pode ter certeza?
Ítalo voltou-se também para o oceano mas olhava para suas próprias memórias.
— Meu pai era um dos tripulantes, o Tesouro de Poseidon foi minha primeira casa. Eu admirava muito sua mãe, era como uma heroína... Quando se foi, eu e meu pai fomos servir outra embarcação. Mas meu pai soube que a tripulação de Dally iria encontrar o tesouro se juntou a eles...
Entendi as palavras não ditas, óbvias e doloridas.
— Sinto muito.
Ítalo apenas assentiu.
— Deve ter algo muito perigoso pelo caminho... Você não quer achar esse tesouro com esperança de encontrá-los, não é? — Apesar de doer, isso era idiotice.
— Não — ele deu uma risada seca. — Vou encontrá-lo para concluir o que ele não pôde. E também, quero ser tão bom quanto a Magpie do Mar, pretendo superá-la.
Ficamos em silêncio. Eu aceitando os novos fatos da minha vida, ele respeitando o silêncio honroso que se deve ter nesses assuntos.
Já beirava meio dia e o sol, apesar de ser outono, estava me fazendo suar. ítalo me olhou por um segundo, eu quase não notei, mas tive a sensação que me olhou por inteira, tomando anotação das minhas proporções.
— O sol vai cozinhar sua pele debaixo de todo esse couro. Precisa de tecidos leves. — Ele nem sequer me esperou protestar, aquele arrogante. — Senhor Fred! — Juro, nunca vi um homem aparecer como esse fazia. — Por favor, leve a dam... Dine, até Albert e peça gentilmente para que ceda algumas peças para ela. Eles tem o porte similar... Vai servir.
Não sei dizer, mas fiquei constrangida. Senti-me ruborizar.
— Não, não tem necessidade.
— Ele não vai sentir falta, o desgraçado tem mais roupas do que eu. Costumávamos chamá-lo de Alfaiate.
Eu fui então com Fred para pegar minhas roupas novas.
Estava me tornando uma pirata, afinal.
O sol estava se pondo e eu aproveitava a brisa fresca do fim do dia com as roupas novas que permitam minha pele respirar. Odiava admitir, mas as roupas do mar eram muito melhores.
Por sorte Ítalo estava certo sobre o porte similar entre mim e Albert. Ele era magricela como eu, até mais na verdade, e não era muito mais alto. Tinha por volta da minha idade, uns vinte e tantos, e parecia que seu único lazer eram, de fato, as roupas. Seu descontentamento foi severo.
Ele me deu um uniforme clássico, por assim dizer, procurando as roupas que menos sentiria falta. Uma blusa branca (que já não era branca e sim amarelada) de mangas compridas de algodão fino, calças azuis, quase pretas, que iam até a canela, e deixou algumas faixas de tecido a minha disposição, além de um cinturão para que tudo ficasse no lugar. Permaneci com minhas botas que subiam quase até o joelho, eram confortáveis e macias.
A blusa que Albert me emprestara era de corte masculino, óbvio, e portanto tinha um decote significativo visto que não há maus olhares em peitos masculinos nus. Mas graças ao meu extenso colo, estava tudo certo, nada de fora. Com uma faixa cobri meus seios por baixo da blusa, só para ficar mais confortável. Lamentei a ausência de um espartilho em meio a toda aquela roupa larga. O cinturão estava um tanto frouxo mas usei uma segunda faixa verde mar apertando minha cintura e delimitando minhas curvas, em seguida coloquei o cinto por cima. O último detalhe foi meu cabelo que penteei e deixei solto.
Admito que, depois que me vi em um espelho que Albert me emprestou, gostei muito do resultado.
Em meio convés os marujos me olharam algumas vezes, certificando-se de que fato era eu. Alguns até falaram comigo pela primeira vez, brincando sobre fazer melhor uso das roupas do Albert. Aproveitei e enganchei uma conversa fiada, devolvendo as brincadeiras. O marujo em questão, um careca de uma extensa barba negra, regulava as velas e puxava alguns cabos quando me pediu para que ajudasse. Ele não precisava de ajuda, mas me disse como funcionava todo o sistema e ensinou-me alguns de seus nomes. Depois disso senti os olhares ficarem menos duros.
Ítalo, quem eu pensei que estaria lá para fazer cara de convencido, não apareceu pelo restante do dia. Apenas quando a noite veio e as estrelas começaram a brilhar pude vê-lo andando pela proa com a luneta dourada nas mãos, olhando por ela para o horizonte.
Estava treinando alguns nós que havia aprendido mais cedo e os larguei, me encaminhando para atrás do capitão.
— Seu tesouro ainda está longe demais para ficar olhando tanto — comentei.
Vislumbrei um pequeno sorriso em seus lábios. Não soube dizer se foi pelo comentário ou por reconhecer minha voz.
— Depende de como se olha — retrucou com aquela voz calma e melodiosa. — Tesouros podem se revelar sob o olhar de homens sem nunca serem descobertos.
Ele enfim afastou-se da luneta, e voltou o olhar para mim. Contive um pequeno estranho e invasor arrepio que correu minha espinha quando ele me olhou. Aquela expressão eu ainda não conhecia e não sabia interpretar, houve um momento de demora.
— O vestuário do mar lhe caiu bem. — Concordei, sem perceber, beirando ao constrangimento. — Está no seu sangue, você pertence a este lugar.
Sempre que a conversa me deixa estranha eu faço um comentário espertinho, muitas vezes infelizes que estragam qualquer momento.
— O telescópio ainda mostra o caminho? A essa altura já deve estar cega de novo...
Ítalo cobriu-se de uma pequena preocupação.
— Sim, já não vejo quase nada...
Eu o peguei de suas mãos mais rápido que ele pôde notar e me afastei, ainda que sentisse seu olhar queimando em minhas costas. Afastada, e com dificuldades para me concentrar, observei o céu decifrando-o e reorganizando as constelações.
A noite se aprofundou, alguns dos piratas pararam para me observar, de longe, com medo de atrapalharem. Ítalo foi o único que chegou perto quando já estava no fim.
— Está difícil?
— Não... — Passei a confirmar a posição de cada anel. — Só falta de prática... Não as procuro no céu há tempos, e em posições diferentes... Bem, a cantiga não é tão útil. Veja aqui, a Dama e o Guerreiro estão juntos, e o Monstro parece devorar as Três Irmãs.
Mostrei para ele, seus olhos castanhos estudavam os símbolos com cuidado e observavam o céu em seguida.
— Não tenho a menor ideia de onde os encontra, Dine — confessou derrotado.
Sorri, meio convencida. Após dar um pequeno giro em um dos anéis, o telescópio estalou e eu espiei por ele. Um rastro luminoso marcava o mar em direção ao horizonte como se a Lua estivesse sangrando. Entreguei-o para Ítalo.
Novamente houve gritos e alívio da tripulação ao reajustar o trajeto, felizes com a ideia de encontrarem ouro, juntaram-se em comemoração com rum e canções.
Eu ria e me divertia com sua alegria, os homens agarraravam uns aos outros sacudindo-se em um tipo de música enquanto o rum derrubava-se no convés quando gritavam suas canções sobre ouro, aventuras e mulheres.
Oh, ah, oh, ah!
Minha mulher era tão linda
quanto sereias nuas ao mar
tão linda que em sua presença
me fez todo o ouro gastar
Oh, ah, oh, ah!
Minha mulher era tão linda
que me fazia derramar, oh! Todo o rum ao mar!
Ela me deixava sóbrio, ah! Só de me olhar!
Oh, ah, oh, ah!
Minha mulher era tão linda
que até me fez escolher
entre ela ou mar
me disse: agora ou ninguém!
Oh, ah, oh, ah!
Eu escolhi o mar!
E é neste barco que vou ficar
até a morte me alcançar
Oh, ah, oh, ah!
Minha mulher era tão linda
Mas o mar é meu amante
e com ele vou casar!
Quando dei por mim estava cantando junto com eles, e havia um copo de bebida em minhas mãos. A energia era inebriante, mas senti como se faltasse algo. Meu olhos rolaram pelo lugar e encontrei Ítalo com não mais do que um sorriso e uma garrafa de rum afastado de toda a comemoração. Não tinha notado, mas era ele quem eu procurava.
Ele de repente olhou diretamente para mim e deu um sorriso que eu marcara como deslumbrante e ergueu o rum na minha direção, a distância.
— Não é bom que o capitão se junte muito à tripulação, precisa manter algum respeito — Fred, o imediato, comentou ao meu lado cheirando a álcool, respondendo minha pergunta silenciosa. — E também se ele se juntasse à festa, os homens ficariam acanhados.
— Parece meio solitário, não acha?
— Sim — soluçou. Ele ofereceu a mão. — Vamos fazer você se enturmar com eles.
Eu aceitei e me deixei guiar em uma dança animada onde meus pés saltavam. Os homens gritavam e revezavam para serem meus pares. A noite pareceu não ter fim.
Notei apenas que Ítalo se juntou à canção quando comecei a dançar.
______________
1 - MAGPIE: é um pássaro, primo dos corvos, de penas brancas e pretas com tons azuis que tem por comportamento roubar objetos brilhantes.
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