Capítulo XIX

Kassian Al-Magharabi🌙

"Dias após a invasão da mansão"

O calor do sol amenizado pela brisa marítima fez aquele dia parecer perfeito.

Mikaela estava esplendorosa e eu queria vê-la feliz por estar de volta ao seu país. Pedi até mesmo para vestir-se como uma "brasileira'. Ela atendeu ao meu pedido e usou um vestido esvoaçante que dançava à sua volta quando caminhava pelo terraço, onde ordenei que nenhum dos seguranças permanecesse. A beleza da minha aimra'a era exclusivamente para a minha apreciação.

Mikaela admirava o mar cor de esmeralda quando me aproximei e a abracei por trás. Senti seu corpo retesar, mas julguei que a assustei por estar distraída com a magnífica vista que tínhamos do horizonte. Afastei seus cabelos e beijei a região exposta do pescoço, demorando meus lábios por ali para sentir o perfume de frutas suculentas e flores aquáticas que ela exalava. Pêra e lótus combinavam com os dias mais quentes do final da primavera.

De novo ela estremeceu quando o metal frio da corrente de ouro tocou sua pele morna. Era para ser um presente emblemático. Uma única asa de anjo, cravejada de raros diamantes amarelos que representava tanto o esplendor quanto o poder destruidor do sol.

Não havia um motivo especial, eu apenas gostava de vê-la adornada com as jóias que lhe presenteava, pelo simples fato de estar com ela em viagens a locais luxuosos e exclusivos, vendo-a sorrir e se divertir em minha companhia. Saber que conquistei a mulher que eu desejei desde que vi pela primeira vez era motivo de orgulho para mim. Eu fui capaz de cortejá-la por semanas, controlando meu desejo, pois eu queria conquistar para sempre.

Mikaela não precisou fazer nada para me seduzir. Bastou o vislumbre dos seus olhos de cor única e seu sorriso espontâneo para aprisionar minha alma. Eu dizia que lhe dava pedras preciosas coloridas porque nenhuma se parecia com a cor das suas íris. Nem esmeraldas, nem safiras. Águas marinhas ou Jade. Nada se comparava ao verde acizentado e brilhante das suas orbes. Nenhuma mulher sequer se aproximava da sua perfeição.

- Meu malaki. Você vai voltar para mim. - mais que uma promessa, era um fato.

Na verdade, o que me cativou foi exatamente seu espírito iluminado e livre. Sua beleza angelical era um fator a mais que somada a uma sensualidade natural, a tornou uma conquista irresistível. Seu riso era como a canção dos anjos e a voz rouca quando me amava me enlouquecia. Eu era capaz de me perder no seu corpo perfeito, cometendo o pecado da luxúria, sem medo de arder no inferno.

Eu a seduzi. Eu a enredei para minha teia. Eu ultrapassei cada obstáculo até tê-la nos meus braços e na minha cama. Não ser "pura" não representou problema algum para mim. Desde que eu fosse o último homem a possui-la intimamente. Eu só não esperava me apaixonar tão perdidamente, a ponto de me recusar a deixá-la e ainda cometer a loucura de levá-la comigo para Baraki naquela fatídica ocasião.

Aquele mundo era inóspito, árido, opressivo demais para o meu malaki. Ela não poderia suportar por muito tempo, pois não conseguia ser indiferente ao sofrimento dos moradores oprimidos daquele pequeno feudo do meu tio. Apesar dos conselhos do Faizel, eu resisti em quebrar sua personalidade fascinante. Ele disse que uma mulher com a sua beleza era o verdadeiro demônio na vida de um homem devotado.

- "Homens cruéis não seduzem Anjos por muito tempo." - vaticinou como uma ave de mau agouro.

Quando tudo deu errado, eu não pude recusar as súplicas dela e voltamos para a Europa. Não só para despistar qualquer desconfiança do meu Baba, mas principalmente para salvar meu casamento e mantê-la ao meu lado. Deixá-la partir era uma ideia inconcebível e insuportável para mim.

Após o retorno da casa do meu tio, eu já não via o mesmo brilho em seu olhar quando ela estava comigo. Ela passou um longo tempo pensativa e assustada. Parecia que algo havia se quebrado e eu fiz de tudo para restaurar a antiga paixão que havia entre nós.

Fizemos uma longa viagem pelos Alpes Suíços e outros países europeus, mas nada foi capaz de despertar a genuína alegria do primeiro ano de casados. Mikaela prezava sua liberdade de escolha acima de tudo e eu com muito cuidado fui planejamento em segredo nossa volta definitiva para a cidadela do Faizel. Não pretendia levá-la contra sua vontade, mas não descartava essa opção. A única opção impensável era não ter minha aimra'a ao meu lado para sempre. Ela ainda não entendia os meus propósitos, mas com o tempo aceitaria.

A verdade era que eu não estava no Brasil somente para proporcionar a felicidade que a sensação de liberdade inspirava a minha mulher. Isso era um bônus. Esta seria a última vez. Quando voltássemos definitivamente para Baraki, ela não poderia se expor como uma mulher infiel e teria que se comportar como uma esposa devotada exclusivamente a mim, disponível para o meu prazer.

Ao final da guerra civil que quase arrasou o Emirado, Khaleb decretou o fim das milícias particulares e o desarmamento obrigatório. Somente a guarda oficial poderia ter armas para assim garantir a segurança da população civil. Ele contava ainda com as Forças de Pacificação enviadas pelos países aliados.

Nem todos concordavam com o cessar fogo. Nem todos quiseram abrir mão do controle sobre seu território, mesmo que fossem vilarejos perdidos no meio do deserto. Foram séculos de lutas internas entre clãs que reclamavam a supremacia e não mudariam por um simples decreto do Emir, escolhido por meia dúzia de velhos patriarcas feudais.

Meu pai baixou a cabeça para conseguir o apoio dos anciãos. Casou com uma nativa, desprezando minha mãe para atender às exigências de hereditariedade e angariar o apoio daquele povo ignorante, iletrado e miserável. Povo que eu vou controlar com mão de ferro e chicote.

Entre os que não aceitavam diminuir seu controle em prol do bem coletivo estava seu próprio irmão, o Mulá Faizel. Para fingir adesão às novas ordens ele entregou parte dos armamentos da sua milícia, a maioria inutilizada por anos de uso em combates incessantes pelo deserto.

Meu tio e eu tínhamos pressa. Khaleb não podia fortalecer mais a sua posição ou nunca teríamos o apoio dos Ulemás que ainda eram resistentes e só esperavam uma oportunidade para voltar às antigas tradições de controle total dos seus territórios. Eu não quero paz. Quero controle. Devemos mantê-los divididos em suas castas para dominá-los com a ilusão de que buscamos a união e o entendimento.

Nosso arsenal precisava ser restituído e a América do Sul era o paraíso do livre comércio. O Brasil nos pareceu o melhor lugar de entreposto para as armas serem traficadas. Uma rota pouco usada, além da conhecida facilidade de comprar silêncio e favores das autoridades.

Fazem dias que estou nesta gaiola, afastado dos criminosos comuns, mas ainda assim enjaulado como uma fera. Recordando o tempo que estive planejando essa operação passo a passo, tentando achar o erro que permitiu a interferência da tal ACIS. Não querendo acreditar que minha esposa me traiu e se traiu, como fazer para que a ira do meu tio não recaia sobre ela.

No momento da prisão eu tentei os kilab (cães) de farda, como a Serpente tentou Eva, na intenção de resolver minha situação usando dinheiro e influência, já que nesse país tudo é possível de se comprar. Inacreditavelmente, eles resistiram e ainda tiveram a ousadia de me tratar como um homem qualquer.

Assim que fui preso, meu Baba foi avisado e ficou muito decepcionado, claro. Mantive a versão de um mal entendido entre meus seguranças e a polícia local, após a invasão desproporcional da residência onde eu estava com a minha esposa. Permaneci em silêncio, orientado pelo defensor enviado pelo consulado e que está tentando me liberar dessa jaula.

Estou me sentindo claustrofóbico nesse cubículo que chamam de cela especial. Nem uma tenda beduína é tão desconfortável e simplória. Da cama onde estou prostrado, vejo o teto e paredes brancas. Uma mesa e cadeira fixas na parede oposta completam a decoração restrita ao básico.

O local é permanentemente iluminado por uma lâmpada, acesa durante 24h para permitir que eu seja monitorado e a pouca luz natural da janela alta e gradeada não é o bastante para indicar as horas do dia. Já que me privaram do relógio e obviamente do meu celular, o tempo é marcado pela entrega do que eles chamam de refeição, mas que não passa de uma ração que não seria servida nem mesmo aos meus cavalos. O banheiro, se é que se pode nomear assim, tem o mínimo para uma higiene decente. Chuveiro, pia e latrina. A humilhação a que estou sendo submetido só aumenta meu desprezo por essa corja que se denomina "autoridade" nesse país.

Quando a porta da cela foi aberta, eu continuei na mesma posição, não me importando com quem fosse o visitante.

- Boa tarde, Kassian.

Não me dei ao trabalho de responder, mesmo reconhecendo sua voz.

Ele deu poucos passos e apoiou uma perna sobre a mesa, ficando de frente para mim. Então, retirou do bolso da jaqueta de couro sintético um objeto brilhante de 12,7mm e colocou sobre o móvel.

- Limpei a bagunça dos seus capangas.

O tom irônico e íntimo era irritante, mas nem meu olhar o fez mudar sua atitude pouco respeitosa.

- Qual era a tua idéia? Revestir o fusil de ouro e combinar com a pistola que usou pra dar um tiro na sua mulher? E que por acidente pegou nas costas do agente da ACIS?

Fiquei o encarando, fingindo não entender seu inglês tosco e imaginando quando ele passou a achar que poderia falar das minhas escolhas pessoais.

- Até entendo essa fixação por ouro, mas personalizar arma é burrice. É ostentação de bandido novato. - o delegado olhou pra mim com expressão de quem estava me perfilando. - Se fosse uma pistola qualquer poderia culpar um segurança, mas além de ter sua assinatura só tinha as suas digitais. Isso ferrou a versão de auto defesa. Enfim, cada doido com sua mania.

Ele latia como um cão sem parar e despejava suas teorias de policial provinciano.

- Por sorte o sniper explodiu o helicóptero antes que essa arma fizesse um estrago maior ou seria quase impossível camuflar as provas.

Finalmente um comentário relevante.

- Quem é ele? - perguntei em um inglês perfeito que aprendi na melhor escola britânica.

- Uma pedra no meu sapato. Capitão Hawkeye, ex Forças Especiais e um fdp obcecado.

Normalmente eu não teria interesse nos seus desafetos, porém o nome fez soar um alarme na minha mente. Seria uma coincidência diabólica, porém nesse mundo tudo é possível. Quando ouvi o nome não acreditei na minha haza ou no meu hazu si' (sorte ou @z@r).

Para minha surpresa o soldado mais escrupuloso que destruiu o helicóptero, a arma e assim todas as provas do tráfico internacional é o mesmo que meu tio jurou de morte.

- Foi ele quem levou a minha mulher?

- Essa parecia a sua principal missão. O motivo e as consequências saberemos depois. - a ironia mal contida na voz.

- Minha esposa não vai dizer nada, ela sabe o quanto isso custaria.

Cortei suas conjecturas. Só há uma pessoa que pode julgar as ações dela e esse alguém sou eu e mais ninguém. Nem f#dendo eu iria discutir a vida da minha mulher com esse escroto. Me sentia sufocado por respirar o mesmo ar viciado que aquele ser desprezível, porém útil na ocasião.

Marco Aurélio foi um delegado federal fácil de comprar. Acostumado a extraviar armas para traficantes locais, bastou ter a noção do quanto lucraria no mercado negro da guerra para os cifrões brilharem nas suas pupilas.

- Onde está minha aimra'a agora?

- A Sra. Al-Maghrabi foi retirada da mansão e sua localização por enquanto é desconhecida.

- Descubra. Não deve ser tão difícil para você. - me sentei, irritado com a camisa amarrotada que deixava minha aparência desleixada.

- Seu consul trabalhou rápido. - ele continuou. - Blindou até o acesso ao seu aparelho celular. Só não vai antecipar sua soltura porque o relatório preliminar da Agência pinta um quadro conflitante com o dos meus policiais.

- E o que vai fazer?

- Manter minha versão. Sorte que meu grupo é responsável pela limpeza do local da ocorrência. - mostrou os dentes para valorizar seu desempenho pífio.

- Seria melhor se tivesse evitado a incursão a minha casa.

- Não consegui saber a tempo. A ACIS trabalhou em segredo e ainda não tenho um infiltrado no grupo. O Santoro escolhe bem seus homens. Ex fuzileiros mantém esse ranço de lealdade canina e o treinamento do Capitão dificulta encontrar um ponto fraco.

- Soldados bem treinados são um verdadeiro inferno.

- Podemos removê-lo do nosso caminho...

- Ainda não. Primeiro vamos garantir a saída das armas do país. Quanto menos atenção para o caso, melhor.

Dei três passos e estava ao seu lado.

- Me dê seu celular.

- Se fizer uma ligação daqui, será rastreado.

- Não sou idiota. Vou te dar meus contatos.

Ele me entregou o aparelho relutante e eu digitei as informações que o delegado precisava para cumprir seu papel.

- Vá primeiro até o Aziz e confirme a chegada do Neptune. Esse é o responsável no Porto que vai autorizar a saída imediata do Zenith. Garanta que a encomenda chegue até o meu tio e receberá o combinado.

- Ok. Assim que o navio aportar, será carregado e seguirá viagem. Eu garanto.

- Assim espero.

Ele sorriu abertamente, antecipando os valores que estariam na sua conta no banco estrangeiro. Antes de abrir a porta, voltou-se e perguntou.

- E quanto ao Hawkeye?

- Por enquanto deixe que faça o seu trabalho. Proteger os inocentes.

Quando Marco Aurélio se retirou, o ar ficou mais respirável e voltei aos meus pensamentos, abençoado pelo silêncio.

Aproveitaria o tempo para arquitetar minha vingança contra aquele que atravessou o meu caminho mais uma vez. E cuidaria para que fosse a última.


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