5 - PODER

 Tudo estava escuro. Não conseguia ver nada, nem quando eu usava o brilho das engrenagens. O chão era fixo, havia alguma superfície. Não havia paredes nem teto. Eu estava sozinha no vazio.

 "Que lugar é este?" – falei com o brilho em minhas mãos – "É para aqui que as pessoas que não existem vêm?"

 Naquelemomento, uma luz apareceu a minha frente. Fui a sua direção. Era uma porta – ouum portal. Entrei.

 Mas, sem poder entrar naquele cenário, percebi que era apenas uma visão. Por volta das oito horas da noite, todos se arrumavam para dormir. Notei que ninguém falou meu nome, ninguém me chamou para dormir. Era como se eu não existisse. O portal desapareceu.

 À minha esquerda, outra luz surgiu. Lá, pude ver minha mãe pensativa na janela. Pude vê-la falar baixinho com papai que em breve Abel iria se casar. Ambos se abraçaram fazendo juras de amor. Estavam orgulhosos. O portal desapareceu.

"Eu não existo."

 Olhei a engrenagem, decidida a quebrá-la. Tudo estava perfeito sem mim, não queria a chance de estragar.

 Com muito esforço, separei as duas engrenagens unidas. Elas pararam de brilhar e ouvi um sussurro. Vários sussurros, na verdade. Era eu mesma fazendo diversos pedidos. Ali eu tive a lembrança – confirmação – de ter voltado no tempo. E entre esses sussurros, uma voz alta se destacou. Eu gritava por ajuda. Até hoje não me lembro desse momento. Foi antes das engrenagens "existirem". Implorando a mim mesma, gritei para minha magia me ajudar. Ouvi um barulho, o relógio de Abel sendo quebrado. Esse momento aconteceu e não aconteceu. Sem lembranças, eu supus que eu havia perdido tudo antes de acontecer. Quebrei o relógio de Abel no desespero, e suas engrenagens quebraram parte de mim. Com o relógio e minha dedicação, consegui fazer uma máquina do tempo. Voltei e, sem lembrar, deixei as engrenagens perto da caverna. Foi um paradoxo – algo que não aconteceu por causa da viagem no tempo, mas que de alguma forma aconteceu.

 Com magia – porque minha força física não era o suficiente –, quebrei as engrenagens. Então fui engolida pela escuridão.

 Uma luz forte incomodou meus olhos. Vi o lago que eu tomava banho, a grama que meus pés tocaram por meses, a terra que me sujou tantas vezes, a caverna onde morei. Tentei me aproximar, mas não senti meus membros. Meu corpo estava confuso. Abaixando o olhar, vi patas de cavalo. Assustei-me.

 Confusa, caminhei cautelosamente para o lago. Vi meu reflexo e quase dei um grito de horror. Consegui ver Pô, mas com olhos azuis, pelos e crina brancos. O que mais me assustou foi um chifre colorido que saía de sua cabeça. E ele irradiava uma energia familiar.

 Aquele foi meu primeiro contato com meu novo eu. Por muito tempo pensei que eu tivesse invadido o corpo de Pô, entretanto, não havia outra consciência além de mim. Eu não sei se Pô não tinha uma alma ou se éramos a mesma pessoa. Nunca soube. O fato é que meu corpo físico deixou de existir e minha alma fundiu-se a um cavalo. Meu novo corpo não suportava magia, então a magia se guardou num chifre que ela mesma criou.

 Ao ouvir outras vozes, corri desajeitadamente para a floresta. Escondi-me de todo adulto que poderia se aproximar. Às vezes uma criança perdida entrava naquela floresta perigosa e eu lhe mostrava o caminho de volta. Outras vezes moçoilas fugitivas me encontravam.

 Em alguns meses, uma criança doente despediu-se de mim, acreditando que seu fim estava próximo. Era uma simples gripe que tratei com a magia do meu chifre. Logo, circularam boatos na cidade que uma criatura mágica que curava qualquer doença vivia na floresta. Tive que fugir outra vez para não me encontrarem. Assim eu vivo, sempre fugindo.

 Uma vez fiquei próxima a minha antiga cidade. Meus pais e meu irmão viviam felizes, e ninguém se lembrava de mim. Sem poder falar (apenas relinchar), ouvi que Virgínia estava grávida. Fiquei feliz.

 Fiz uma promessa que apenas teria contato com crianças e moças jovens. Não confiei mais em adultos e eu me sentia mais confortável com garotas. Viver na floresta com os animais era interessante, apesar de preferir contato humano.

 Um dia, um grupo de crianças me apelidou de "unicórnio" e assim fiquei conhecida.

 Eu nunca soube por que tenho esse "dom"; tentei buscar a resposta de todas as formas. Acredito nas palavras de Abel: minha alma é tão poderosa que se expressou. Mas eu já conheci muitas pessoas de alma poderosa e nenhuma delas tem essa 'magia'. Conheci jovens bruxas, mas nenhuma com o poder de voltar no tempo ou curar doenças. Hoje em dia eu sou uma lenda, um conto de fadas. Vivo feliz. Sempre tenho companhia, ouço diversas histórias, cuido de muitas pessoas. Minha magia é admirada e quase endeusada, tão diferente de antes.

 Acredito que cada pessoa tem um poder – poder da inteligência, poder da imaginação, poder da empatia. Eu tenho o poder da alma.

 E, assim, minha história termina com uma reflexão. Apenas lhes peço para mantê-la em segredo. Não quero que ninguém me encontre, afinal nunca se sabe quando alguém pode lhe perseguir um uma tocha.

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