4 - Dádivas amaldiçoadas
972 palavras.
O cheiro inebriante de álcool alcançou suas narinas. Mesmo que ainda não estivesse totalmente acordada, aquele odor levemente adocicado era tão marcante quanto o som do próprio nome.
—Mari... – A voz torpe lhe chamava. – Mari, onde está a sua carteira?
Silêncio.
—Mari... Mari, o que há com você? Já são oito da manhã! – A voz bradava, enquanto a garota sentia seu corpo tremer.
Até finalmente acordar de vez...
—Ah... O quê? Como é que... Onde está... – Ela balbuciava, completamente confusa. – Como foi que eu cheguei aqui?
Mari encarou o rosto do pai, ainda sob efeito das insanidades que tinha visto no Santa Elizabeth. Nem mesmo se usasse a mais potente e destrutiva das drogas, seria capaz de conceber tais visões. Será que Hugo e Liz tinham visto o mesmo? Aquilo era real? Ou era só um sonho?
—Mari, onde está sua carteira? – O semblante afoito do pai lhe trouxe de volta para a realidade. – Eu preciso de grana e sei que você tem!
—Eu não tenho nenhum dinheiro aqui! – A garota protestou, um pouco nervosa. Relembrando coisas que preferiria esquecer. – Está bebendo de novo?
O homem moreno, de vestes amarrotadas e bochechas coradas fitou a filha, com um misto de fúria e medo nublando o olhar. Ele começou a beber muito depois que a mãe de Mari, sua esposa, morreu. Todos os dias, sem pausa. Quando sóbrio, costumava ser um bom pai, mas bêbado como estava agora, era capaz das mais terríveis atrocidades.
—Isso é problema meu! – Cuspiu, furioso. – Me dê o dinheiro anda!
—Eu já disse que não tenho nada...
—Mentirosa!
Mãos se fecharam sobre a face de Mari, antes mesmo que ela pudesse pensar em escapar. Seu pai até poderia ser fácil de ludibriar, mas quando queria, tinha a força necessária para nocautear qualquer um. O cheiro de álcool era tudo o que Mari conseguia sentir agora, além de um corpo de noventa quilos pressionando seu frágil e pequeno esqueleto, ou a raiva queimando dentro das veias.
Eu te odeio! Eu te odeio! Eu te odeio!!!!
E então, rápido como um flash de luz, a íris avermelhada voltou a cegar os pensamentos de Mari...
Um ruído branco tomou o controle da realidade. Mari não estava mais se sentindo presa, não tinha mais medo e não existia mais sinal algum de ameaça. Era como flutuar pelo ruído, à deriva, até aterrizar em algo rígido, lamacento e coberto pelo véu sufocante da dor.
Porque Mari já não era mais Mari. Estava imersa dentro da mente do seu pai...
Os pensamentos dele vinham aos montes, cheios de ânsia e desespero, como se estivesse à beira da morte. Mari viu a bebida, viu sua mãe, viu a si mesma, viu lágrimas e culpa, tanta culpa. Uma quantidade absurda de informações, todas misturadas e atreladas a outras infinitas memórias, como um tsunami gigantesco de recordações confusas.
—Pare! – Mari implorou, em pânico. – Pare! Eu preciso que isso PARE!
Com um baque seco, a garota voltou para o seu próprio corpo, um pouco surda e atordoada, mas inteira. Ao lado da sua cama, o corpo inerte do pai jazia estatelado contra o chão. Sem sombra de embriaguez ou agressividade. Não falava, não se movia, apenas respirava pesadamente, desmaiado, ao que parece.
Mari tapou a boca, completamente apavorada. Não podia ter visto aquilo, não era natural... Só pode ter sido um delírio... Tem que ser um delírio.
Será que eu matei ele?
O telefone toca, despertando Mari, que quase o derruba, durante o sobressalto. Trêmula, ela recolhe o aparelho e dá uma boa olhada na tela, reconhecendo a foto de Liz, assim que consegue distinguir as feições da amiga.
—Liz, Liz, me escuta... Eu fiz uma coisa horrível. – Se atropela nas palavras, quase caindo no choro.
—Mari... Mari, não dá tempo! – Liz grita, num tom urgente. – Tem alguma coisa errada com o Hugo... Você precisa vir até a casa dele agora!
A garota desperta da sua atual crise, sem conseguir conter as lágrimas. Hugo era mais importante agora.
—O que aconteceu? – Pergunta, chorosa.
—Eu não consigo explicar, você precisa vir! E rápido!
Mari respirou fundo, limpou o rosto com o dorso da mão e se colocou de pé.
—Estou indo! – Disse, com o máximo de determinação que ainda havia lhe restado.
***
—Mas o que aconteceu aqui???
Mari e Liz estavam dentro do quarto de Hugo, mirando a maior confusão que já tinham visto em toda as suas vidas. Garranchos disformes brotavam pelas paredes claras, como um exército de baratas em fuga. Todos evidenciando olhos e globos oculares vazios, feitos em carvão, tinta e possivelmente sangue. Hugo estava amarrado sobre a cabeceira da sua cama, guinchando como um animal ferido, enquanto as pontas do seus dedos se abriam em carne viva.
Aterrorizante, sem dúvidas!
—Eu não sei... – Liz desatou a chorar. – acordei vendo coisas Mari, nem sei como acabei em casa... Daí fui dar um beijo na cabeça do Azazel e ele caiu mortinho... Juro... Queria falar com você, mas ninguém atendeu na sua casa. Agora o Hugo está assim.
—Sítaro... – O garoto balbuciou. – Sítaro, o olho de Sítaro... Eu não consigo parar!
—Quem é Sítaro Hugo? – Mari o agarra pelos ombros.
—O olho, o olho, o olho...
—Aquilo não era real, nós só... Vimos luzes, só isso. Hugo, me escuta, você precisa parar.
—Deixa ele Mari! – Liz avança contra a amiga, desesperada demais para pensar com clareza.
Hugo esperneia, Mari o segura e Liz se coloca entre os dois...
Mais uma vez, o trio sente o mundo revirar sobre a sua pele, assim como as pupilas desenhadas na parede. Girando, girando, rápida e fervorosamente, até não passarem de um simples borrão desconexo.
—A TEMPESTADE ESTÁ VINDO! – Hugo berra, instantes antes de desmaiar.
Mari e Liz se encaram, pois só havia uma pessoa no mundo que sabia o que aquilo tudo significava.
—Precisamos ver a Mendoza. – Concluem, em uníssono.
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