Capítulo 8 - Blackthorn
Ano de 1708, primavera. Vilarejo de Blackthorn.
Doze anos atrás.
Acordei no dia seguinte acompanhado de pesadelos vívidos com a noite em que meu pai fora executado. Vultos pairavam em volta dele com sorrisos estampados entre suas faces etéreas. Naquele sonho eu sempre tentava alcançá-lo, mas nunca conseguia. "Regicida", era o que os vultos gritavam. Percebi que eu suava muito e que minha respiração estava acelerada, como se meu corpo tivesse vivenciado aquele sonho.
Os raios de sol transpassando pela minha janela indicavam que eu havia dormido demais. Provavelmente tinha perdido toda a manhã. Por um momento senti um alívio por não precisar trabalhar naquele dia, ou levaria uma boa bronca do ferreiro.
Desci as escadas em direção à cozinha. O meu café estava posto à mesa, um copo de leite de cabra e pão fresco, como se nada tivesse ocorrido na noite anterior. Meu pingente também estava sobre a mesa, agora limpo e com um novo cordão.
Minha mãe era uma mulher incrível, forte e independente. Nada a abalava, eu a via como meu porto seguro, meu abrigo e melhor amiga. Vê-la chorando por minha culpa era imperdoável, eu precisava me desculpar, mas ela já tinha ido trabalhar.
Então engoli rapidamente meu pão e fui direto para a oficina, afim de desanuviar meus pensamentos. Por mais que eu estivesse dispensado dos serviços, eu não tinha outro lugar para ir.
A loja do ferreiro ficava em frente à uma fonte, no centro da vila. Na fachada da loja, podia-se notar uma enorme placa escrito: "armas e ferramentas do Mestre Artesão Ludwig", com um escudo e duas espadas cruzadas na frente. Eu diria que era um lugar requintado demais para um pequeno vilarejo como Blackthorn.
Ah sim, eu ainda não falei muito sobre o vilarejo. Blackthorn, como descrevê-lo? Um lugar pacato e aconchegante, talvez? Eu diria que o único lugar em que eu realmente pude chamar de lar. Não havia muitas casas ou uma variedade imensa de lojas e tavernas, apenas o básico. Uma capela, uma pequena taverna, vendas locais e a loja do ferreiro artesão. Eu odiava morar em um lugar tão longe da cidade. Lembro-me de quantas vezes reclamei com minha mãe por morar em Blackthorn. É irônico pensar o quanto sinto falta daquele lugar.
O centro do vilarejo obviamente era o local mais movimentado. As construções mais importantes davam a volta em torno da fonte do vilarejo. Em cima da fonte, uma estátua notável de um guerreiro há muito tempo esquecido. Ninguém sabia quem ele fora, apenas o chamavam de Blackthorn, por causa de seus entalhos de espinhos em sua armadura.
Chegando ao centro do vilarejo, percebi que as pessoas estavam muito agitadas, correndo de um lado para o outro, ocupados com seus afazeres. O festival se iniciaria naquela tarde, então era de se esperar que todos estivessem correndo com seus serviços. Pensar naquilo, me fazia lembrar de que eu iria no festival com a Nara, me deixando um pouco mais alegre.
— Senhor Ludwig, é o Jack. — Bati na porta da oficina.
Por de trás da porta, pude ouvir o tilintar do martelo. Pelo visto, ele ainda não tinha terminado de trabalhar com a dama da noite, o que soava estranho de se falar.
— Hunf! Garoto, pare de bater na porta e entre logo. E feche-a quando entrar — respondeu o velho, com seu jeito carrancudo.
Entrei na oficina, apertando os olhos para conseguir enxergar algo. Estava muito escuro lá dentro, com exceção de uma luz intensa que vinha das faíscas que voavam a cada martelada que o velho dava, e é claro, a arma que reluzia, agora com um brilho vermelho e alaranjado, deixando de lado aquela luz azul tênue de antes. Estranhei ao perceber que, na verdade, não parecia uma espada ou um machado, era uma foice. Mas por que alguém encomendaria uma ferramenta para colheita com um material tão raro, que de acordo com o mestre, era mortífero também?
— Olhe que obra prima, garoto. Esse metal é realmente lendário, estou desde ontem tentando fazer ele tomar forma. É realmente duro na queda, hahaha. — Mestre Lud soltou uma risada, um tanto quanto espontânea. Apesar de estar desde a noite passada acordado trabalhando na ferramenta, o velho ainda parecia muito animado.
— Mestre, por que uma foice?
— Há, Eu não faço perguntas aos clientes garoto, mas eu também achei bem estranho quando me pediram isso. Aparentemente, deve ser para enfeitar a parede de alguma mansão. Sabe como estes ricos são excêntricos e gostam de coisas extravagantes. E cai entre nós, o que seria mais excêntrico do que uma foice feita de um minério mortal, pendurado em sua parede?
Ele realmente tinha razão, os lordes e barões gostam de ostentar com coisas estranhas. Sinceramente nunca vou entender a mente de alguém que gastaria tanto dinheiro apenas para deixar uma arma estranha pendurada na parede de sua casa.
Pude ouvir o sino acima da porta da loja tocar, aparentemente algum desavisado não leu a placa escrito "fechado" e entrou na loja.
— Vá lá ver quem é, garoto. — O ferreiro apontou para a porta com seu martelo. — Diga que estamos fechados hoje.
— Tudo bem, senhor. — Acenei com a cabeça, o que foi inútil já que era impossível enxergar algo naquela escuridão.
Saí da oficina e deparei com um homem de capa e capuz preto em frente ao balcão. Outro homem atrás, também usava as mesmas roupas, mas estava de costas olhando as armas no mostruário.
— Posso ajudar? — perguntei aos homens.
Olhei bem nos olhos do homem que estava à minha frente. Seus olhos eram de um azul claro, profundo e gélido. Sua tez era branca, parecia que não tomava muito sol, e o que mais se destacava, era uma cicatriz que saía de sua orelha direita até a boca.
— Bom dia, por acaso o mestre artesão se encontra? — disse o homem da cicatriz.
Ao contrário de sua aparência e vestes, sua voz e seu sotaque se remetia a de um nobre. Falava de um jeito imponente, com um barítono claro e bem pronunciado. Eu sabia disso, pois passava muito tempo ajudando minha mãe em suas tarefas no castelo do duque, e todos os nobres falavam da mesma forma.
— Me desculpe senhor, mas hoje estamos fechados, terá que voltar outra hora — respondi de um modo respeitoso, pois se realmente fosse um nobre, eu não queria arrumar problemas com ele.
— Entendo. Apenas mande um recado a ele. Diga que buscarei a minha encomenda hoje à noite.
— Tudo bem senhor, deixarei o recado. Há algo mais em que eu posso ajudar? — Dei um típico sorriso de um vendedor. A loja podia estar fechada, mas eu poderia aproveitar para vender algo a um suposto nobre. — Seu amigo parece se interessar por algumas de nossas ferramentas. Temos uma variedade incrível de...
— Não queremos nada, tenha um bom dia — disse o homem da cicatriz, me cortando antes que eu terminasse de falar. Deu de costas e saiu com o outro homem.
— Mestre, parece que dois nobres vieram visitar nossa loja hoje. Um deles, provavelmente o nobre que encomendou essa foice, mandou avisar que vai vir buscá-la hoje à noite — falei ao velho, que arqueou as sobrancelhas ao ouvir isso.
— Hunf... — Mestre Lud deu uma bufada e enxugou o suor de sua testa. — Nobres idiotas, não se deve apressar o trabalho de um mestre artesão. Não sei se vai ficar pronta até hoje à noite, ainda preciso terminar alguns detalhes aqui e ali.
Ludwig deu mais três marteladas na lâmina e parou de repente, como se lembrasse de algo.
— Ah garoto, o festival vai começar daqui a algumas horas, por que não vai se divertir um pouco? Não há nada que você possa fazer aqui com um velho como eu que seja melhor do que o festival, por isso vá logo e me deixe terminar isso aqui.
Ludwig não era somente ranzinza, como também muito solitário. Ele não gostava de festivais ou interações sociais. Por isso eu não insisti para que fosse também, apenas me despedi do velhote e prometi lhe trazer alguns bolos após o festival.
Faltava poucas horas e eu não queria me atrasar. Corri para casa e procurei minha melhor roupa para vestir, ou seja, não achei nada. Mas isso não me impediria de me arrumar o melhor que pudesse. Me vesti com um colete velho que eu tinha ganhado de minha mãe há dois invernos atrás. Também fiz um certo esforço para esconder os remendos da minha melhor calça, que foi Ludwig quem me dera.
Ao descer as escadas, fitei o pingente em cima da mesa. Ele daria um certo charme para as minhas roupas, seria uma boa ideia usá-lo. Sua pedra cor de esmeralda cintilante, era algo de muita elegância. Mas eu não o usava por causa disso. O pingente era a última lembrança de meu pai. Por mais que eu o odiasse, eu mantinha o pingente comigo, como forma de lembrar que um dia, antes de se corromper, ele fora um bom homem.
Finalmente peguei o pingente e coloquei em meu pescoço. Talvez eu estivesse ansioso demais, ou fosse apenas algo de minha cabeça. Mas um sentimento forte me tomou. Um sentimento repentino de tristeza.
Eubalancei a cabeça, me desanuviando daqueles pensamentos e rumei ao tãoaguardado festival.
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