Capítulo 40 - Amigos

— Maldito cavaleiro! — Praguejei, socando a parede com força.

Minha raiva era enorme. De todos os cavaleiros, por que tinha de ser logo ele? Aquele maldito assassino me dava náuseas. Saber que ele era um ser tão desprezível já me consumia por dentro, mas ser salvo por ele era algo ainda pior. Meu ódio pelo cavaleiro se remexia por dentro de mim, como uma floresta em chamas.

— Também teve um dia difícil?

Olhei para trás, dois garotos de aparência familiar vinham até mim. Um garoto alto, de um topete avantajado e jeito nobre de se portar, e um garoto de pele morena e um cabelo peculiar repleto de longas tranças.

— Parece que não fomos os únicos, não é mesmo Gareth? — disse o garoto moreno ao garoto de topete.

Finalmente me lembrei de onde eu os conhecia. Eles estavam comigo na prova de seleção e entre a turma dos novos recrutas. Assim como eu, aparentavam estar um pouco irritados.

— Não se preocupe, novato. O Merua foi obrigado a carregar caixas o dia todo — bufou Gareth. Merua cruzou os braços e franziu o cenho. — E eu tive que escovar todos os cavalos e limpar os estábulos. Sabe quanta bosta aqueles cavalos conseguem fazer por dia?

— Onde já se viu, sermos obrigados a isso! — praguejou Merua, também socando a parede. — Nos alistamos para sermos cavaleiros, não meros serviçais e limpadores de esterco.

— Mas parece que nem mesmo o garoto prodígio teve sorte — falou Gareth olhando para mim.

— Garoto prodígio? — perguntei de forma acuada.

— O famoso novato que derrotou Sir Amik — respondeu Merua. — Você é o assunto mais comentado do castelo. Deve ser até difícil lidar com tanta fama. Nem mesmo deixaram treinar no pátio com a gente. E agora surge esse tal boato sobre uma luta na cidade, era realmente você? — Merua soltou um risinho.

— Eu não vim até aqui por fama e não me importo com o que dizem sobre mim. Agora se me dão licença, eu tenho que ir. — Eu não queria parecer rude, mas não me sentia bem em conversar com outras pessoas, sempre que possível, eu me evadia de conversas como aquelas.

Segui até o refeitório do castelo. Meu ódio por Sir Wallace ainda inflamava dentro de mim. O olhar da maga do fogo voltava à minha mente. O mesmo inflamar que eu sentia por Sir Wallace também estava em seu olhar. De alguma forma eu senti pena quando os cavaleiros a levaram acorrentada até a prisão do castelo. Eu não tive tempo de obter respostas e nem mesmo sabia se conseguiria falar com ela novamente.

Continuei divagando por algum tempo, pensando no que eu faria a seguir. Eu havia perdido a fome, mas tinha aprendido que não era sábio pular refeições. Eu precisaria de energia para enfrentar o dia seguinte.

— Um pouco de sopa, por favor — falei ao velho magricelo e de aparência nada agradável que servia a comida. Seus dentes faltantes e seu cabelo desgrenhado, me fazia perder a pouca fome que me restava.

— Ainda não tá pronta, — respondeu o velho com rispidez — senta lá e espera!

Voltei e sentei na última mesa daquele refeitório praticamente vazio. Os poucos cavaleiros que estavam lá, me olhavam de forma ameaçadora, como se não gostassem muito de minha presença. Parece estranho o refeitório do castelo não ter muitas pessoas, mas era sempre assim. A maioria dos cavaleiros preferia comprar a sua própria refeição na cidade ou ir beber em tavernas. Eu não tinha esse luxo, então aceitava de bom grato a sopa horrível daquele velho.

— Você aparenta não gostar muito de conversas — saudou Gareth, se sentando junto a Merua à minha mesa. — Acho que não nos apresentamos formalmente. Eu sou Gareth, da casa Kellor.

— E eu sou Merua, da casa Ameram.

Nobres, eu sabia. Ambos pareciam empolgados em me conhecer e aquilo me deixava incomodado. Depois de um dia tão agitado, a última coisa no qual eu queria, era ter uma conversa com nobres, mas talvez jogar conversa fora me ajudaria a esquecer aquele maldito cavaleiro e esperar a sopa ficar pronta.

— Eu sou Jack, — respondi — prazer.

— De qual casa você é, Jack? — perguntou Gareth. — Pelo seu sotaque, deve ser um sulista. Talvez um parente do Duque de Florência?

— Meu sotaque? — respondi com um sorriso. — Não pertenço a nenhuma casa. Meu sotaque é de um plebeu.

Gareth e Merua mudaram suas feições. De animados, foram para um olhar curioso, como se sentissem incomodados por estarem conversando com alguém que não fosse nobre. Gareth então começou a rir.

— Eles estavam falando sério mesmo quando disseram que não fariam apenas os nobres passarem na prova. — Ele olhou em meus olhos. Seu olhar não era de nojo ou desprezo, e acreditem, eu conhecia o olhar de um nobre. — Fico feliz por isso! Ao contrário de nós, você realmente merece estar aqui.

— Como assim ao contrário de nós? — arqueei as sobrancelhas.

— Você não sabe? — cochichou Merua. — Um dos requisitos para se tornar um cavaleiro, é ser da nobreza. Em nosso caso, eles não poderiam recusar. Nossas famílias são muito influentes no reino. Você provavelmente não passaria se não tivesse derrotado Sir Amik.

Comecei a me lembrar daquela luta. Sir Amik não baixou sua guarda em nenhum instante, mesmo assim, eu consegui acertar aquele soco. Por mais que Gredy houvesse segurado suas pernas, eu não acho que ele deixaria ser acertado tão facilmente assim. Me pergunto se ele me deixara vencer para que eu passasse no exame.

— Mas eu não entendo, vocês nobres já têm tudo o que querem, por que perder seu tempo limpando estábulos e engraxando o sapatos desses cavaleiros?

— Não é como se tivéssemos alguma escolha — falou Merua com um tom de voz cabisbaixo.

— Nós podemos até ter sangue nobre, mas somos filhos rejeitados — explicou Gareth.

— Como assim filhos rejeitados? — perguntei. Eles conseguiram chamar a minha atenção.

— Nenhum desses cavaleiros nobres são primeiros filhos. Todos nós somos os filhos que sobraram de suas casas e alguns também bastardos. Nobres que não teriam utilidade nenhuma para herdar as terras de seus pais e nem seus títulos. Como última opção, fomos mandados para cá, afim de que o nome de nossas casas possa ser honrado de alguma forma. É tradição ter algum cavaleiro branco em uma família nobre — Gareth tomou fôlego após a longa explicação. Merua continuou cabisbaixo, parecia frustrado.

— É por isso que existem tantos pesos mortos nesse lugar. — Olhei para trás, e lá estava ele. Gredy falava com seu jeito arrogante de sempre. Parecia ter ouvido toda a nossa conversa.

— Como é? — perguntou Gareth, o olhando firme.

— Tá surdo? — implicou Gredy. — Vocês, assim como metade desses cavaleiros, não merecem nem limpar a merda que sai dos cavalos nos estábulos. Não deveriam se dizer protetores do reino, já que não passam de beberrões e aproveitadores. — Suas palavras chamaram a atenção dos cavaleiros em volta, que pararam de conversar para assistir a discussão.

— E quem o peso morto acha que é para falar assim? — Gareth se levantou, ficando de frente para Gredy. Gareth era alto, mesmo assim, precisava olhar para cima ao encarar Gredy. — Afinal, enquanto o Jack derrotava Sir Amik, você comia areia do chão.

— Se me acha um peso morto, por que não tiramos a prova agora? — provocou Gredy, o encarando.

— Se vão brigar aqui, então terão que brigar até a morte. — Merua arregalou os olhos e Gareth ficou mais branco do que já era. Eu e Gredy olhamos para trás e percebemos o motivo. Titânia os repreendia.

— Como é? — respondeu Gredy com displicência.

— Um cavaleiro nunca deve levantar a mão para um irmão juramentado. Se fizerem isso, é melhor que lutem até a morte — disse Titânia. — Se querem mesmo brigar, vão em frente. Mas só permitirei que parem até que um de vocês esteja morto.

— Por mim, que seja — disse Gredy, balançando os ombros com indiferença.

— Você está louco! — falou Gareth para Gredy. Então se virou para Titânia e fez uma mesura. — Perdão, mi Lady, eu me excedi. Não tinha intenção de começar uma briga com esse animal indomado e arrogante. — Gareth olhou de volta para Gredy com desprezo.

— Você disse que nenhum desses cavaleiros mereciam estar aqui — implicou Titânia. — Você acha que merecia mais do que eles?

Gredy a devolveu um olhar tão feroz quanto o dela. Em seguida, desviou o olhar para mim. Ele parecia queimar de ódio por dentro, como se me culpasse por tudo aquilo.

— Parece que os novatos estão com os ânimos exaltados hoje. — Sylas se juntava à reunião já bastante agitada. — Acho que o dia puxado que tiveram e a ansiedade pela sopa deve tê-los deixado um pouco mais nervosos do que o habitual. Tenho certeza de que depois de um bom prato de sopa quente, já voltarão ao normal.

Sylas, como sempre tentando nos salvar de situações embaraçosas com seu bom humor típico. Ele apoiou o braço no ombro de Gredy, enquanto ria calmamente. Gredy o lançou um olhar fulminante de volta.

— Já que é assim... — Titânia aparentava ter ficado mais calma. Pelo visto, Sylas novamente tinha acalmado as coisas. — Ficarão sem comida hoje. Apenas água e mais nada. E se eu souber que algum de vocês saiu do castelo ou conseguiu comida, sofrerão consequências.

Titânia deu as costas e saiu do refeitório à passos pesados. Os outros cavaleiros deram risada de nós e saíram às pressas até o balcão ao ouvirem o velho badalar o pequeno sino, sinalizando que a sopa estava pronta.

— Sofrerão consequências... — Gareth a remedou. — Quem ela pensa que é...

Gareth se sentou, bufando e resmungando tão baixo que eu não pude entender o que dizia. Gredy empurrou Sylas e saiu também bufando, mas não antes de me lançar outro olhar ameaçador.

— Parabéns pelo belo espetáculo, agora ficamos sem comida — disse Merua a Gareth.

Sylas se sentou com a gente, tendo a mesma feição alegre de sempre. Parecia não se importar muito por ficar também sem comida.

— Não me culpe. Culpe o sabichão aqui, que a deu a incrível ideia de tirar nossa comida — apontou Gareth a Sylas.

— Eu não entendo. — Finalmente se acalmaram o bastante para que eu pudesse falar. — Se vocês são nobres, por que comem aqui?

— Como se tivéssemos escolha — respondeu Merua com um dar de ombros.

— Nossos mestres cavaleiros nos proibiram de dormir ou comer fora do castelo. Eles disseram que, enquanto estamos em fase de teste, precisamos nos habituar com a vida aqui — completou Gareth.

— Sir Amik não te disse nada? — perguntou Merua com uma expressão curiosa.

— Eu... ainda não treinei com ele... — respondi acuado.

— Como assim? — Merua e Gareth quase falaram juntos.

— Vocês não sabem? Amik raramente fica no castelo. Ser líder é uma tarefa que o mantém bastante ocupado. Provavelmente não terá muito tempo para treinar o Jack. Então passou para Sir Wallace o treinar — respondeu Sylas.

— Não me diga que está treinando com o capitão Wallace. — Gareth ficou boquiaberto, seus olhos reluziram. — Você é um cara de sorte, treinar com um homem tão honrado é invejável. Não que ser escolhido por Sir Amik também não seja motivo de inveja.

Eu cerrei os dentes e apertei minhas mãos ao lembrar daquele maldito. Honrado... Aquele cavaleiro nunca teve honra alguma! Eles me olhavam com certa curiosidade por causa do meu silêncio inesperado.

— Então o tal boato da luta na cidade contra uma bruxa era realmente verdade... — assentiu Merua.

— Bom... — interrompeu Sylas. — Acho que o Jack, assim como nós, está muito cansado. Mas saco vazio não para em pé. Por isso, esse será nosso pequeno segredo. — Sylas retirou debaixo de sua blusa alguns pãezinhos frescos. Gareth e Merua arregalaram os olhos.

— Como você conseguiu isso? — perguntou Gareth com a boca cheia de saliva.

— Eu peguei um pouco antes de vir para cá — respondeu Sylas, soltando um sorriso. — Como a sopa não estava pronta, eu pedi alguns pães. Eu ia guardar para comer mais tarde, mas prefiro dividir com vocês.

Sylas deu um pãozinho para cada. Gareth ficou um pouco receoso, mas pegou o pão, enquanto que Merua, sem hesitar, pegou das mãos de Sylas e começou a comer.

— Se eu fosse vocês, eu guardaria para comer em outro lugar. Se virem vocês comendo, podem ter certeza de que logo chegará aos ouvidos de Titânia — sussurou Sylas.

Merua rapidamente engoliu o pedaço que comia e guardou o resto dentro de sua camisa. Gareth fez o mesmo.

— Vamos Jack, pegue. — Sylas estendeu a mão com mais um pãozinho. — Você também deve estar com bastante fome.

— Agradeço, mas não. Eu já não estava com muita fome antes, então não me faz muita diferença. Pode ficar com ele.

— Eu insisto. — Sylas continuou com a mão estendida. — Se não comer bem, terá problemas no seu treinamento e isso não será bom para nenhum de nós. Afinal, nós novatos temos que mostrar para eles o quão bom nós somos.

Sylas soltou outro sorriso, o que me fez não ter escolhas a não ser aceitar. Eu peguei o pãozinho e o guardei rapidamente em meu bolso.

— Isso é ridículo! — praguejou Gareth. — Termos que nos rebaixar a ponto de comer escondidos, como se fossemos animais... Se meu pai soubesse disso, ele...

— Esqueça sua vida passada — interrompeu Sylas. — Tudo o que você era já não importa mais. Seu nome, sua família e tudo em que você acredita. Agora você é um cavaleiro, não mais um nobre.

— Ahhh, essa vida de cavaleiro é trabalhosa demais... — suspirou Merua, se debruçando sobre a mesa, aparentemente cansado.

— E é isso que a faz tão empolgante! — exclamou Sylas, abrindo os braços. — A incerteza de sabermos o que o futuro nos aguarda, essa sensação é incrível, me faz sentir vivo.

— Temos mais um louco entre nós — debochou Gareth, soltando uma risada.

Quando percebi, todos nós estávamos rindo. Aos poucos, fomos nos conhecendo melhor e ficamos ali durante algum tempo jogando conversas fora. Embora as nossas diferenças, naquele momento, eu percebi que tinha feito amigos. Talvez fosse ainda cedo demais para confiar neles, mas algo em mim me dizia que, pela primeira vez, eu não estava sozinho.

· · • • • • • • · ·

A vista acima da Cidade Branca sempre foi um espetáculo à parte. A noite estava tão fria quanto eu podia me lembrar, mas seu céu brindava com uma variedade infinita de constelações e, é claro, a linda luz do luar que tinha uma coloração azulada devido ao inverno. Ao andar pelos pátios do castelo, percebi que eu não era o único que me impressionava com a beleza daquela noite. Gredy a observava, sentado na sacada de uma janela. A vista dava para os jardins lírios e sua infinidade que sumia no horizonte escuro.

— A vista do castelo talvez seja uma das maiores recompensas por estarmos aqui — disse a Gredy, me sentando ao seu lado.

Gredy continuou em silêncio, como se nem mesmo tivesse notado a minha presença. Ele olhava fixamente para o horizonte. Eu retirei o pãozinho do bolso, parti ao meio e estendi a metade para ele.

— Você deve estar com fome — falei.

Gredy se virou para mim e me olhou fixamente. Sua mão se estendeu em direção ao pãozinho, mas ao invés de aceitar, ele o tirou de minha mão em um tapa, derrubando o pãozinho da sacada.

— Quem você acha que é? — respondeu Gredy, de forma arrogante. — Primeiro você me humilha e agora sente pena de mim?

— Não foi a minha intenção, eu só queria te ajudar.

— Eu não preciso da ajuda de alguém como você. — Gredy voltou seu olhar para o horizonte.

Eu reparti a pequena metade que sobrou do pãozinho ao meio novamente e lhe estendi mais um pedaço.

— Mas que... — Gredy já ia dar outro tapa na minha mão, quando avistou meu olhar sincero. Ele, com relutância, aceitou o pãozinho. — Você tem algum problema sério — respondeu, com a boca cheia de pão.

— Eu já tenho muitos inimigos Gredy, só quero que saiba que você não é um deles — respondi, me levantado e aprontado a sair. Não esperei uma resposta dele, e provavelmente não ganharia uma.

Aquela noite fria rapidamente se esvaia e daria lugar a mais um novo dia. Eu me aprontei até os dormitórios e dormi calmamente, pronto para tudo que viesse no dia seguinte. Eu enfrentaria qualquer coisa, independente do que fosse. Enquanto os garotos reclamavam dos beliches e do ambiente sujo em que dormiam, eu já caía em sono profundo, confortável em meu beliche.

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