Capítulo 39 - O cavaleiro honrado

Por muito tempo eu sonhava estar entre os cavaleiros, mas depois de finalmente conseguir, percebi que tudo o que pareciam ser, na verdade não era tão real.

O primeiro dia no castelo branco foi mais tranquilo do que o esperado. Um dos cavaleiros, Sir Peter, me guiou por todo o castelo afim de conhecer as instalações. Era um lugar bem grande, com refeitórios, quartos, uma enorme biblioteca e vários outros cômodos. O quarto em que eu ficaria, era um grande salão sujo com vários beliches que provavelmente seria divido com os outros escudeiros.

O térreo do castelo seria o lugar em que eu passaria a maior parte do tempo. O enorme pátio era o lugar de treinamento da maioria dos escudeiros. O cenário havia mudado desde a última vez em que pisei ali. Bonecos de palha aviam sido fincados no chão do pátio. Caixotes empilhado e sacos suspensos por ganchos serviam como alvos para as flechas. Tanto escudeiros novatos quanto os mais experientes treinavam naquele pátio.

Sir Peter sugeriu que eu me juntasse aos treinos após me reunir com Sir Lorenk e os outros cavaleiros para um interrogatório. Confesso que detestei ter de passar o dia todo respondendo perguntas sobre a mulher misteriosa daquele beco. Eles haviam encontrado uma testemunha que aparentemente viu tudo o que ocorrera, o que acabou por confirmar minha versão da história.

Após os interrogatórios, fiquei a sós com Sir Lorenk. Ele tinha informações importantes para me passar. Eu era o único escudeiro que ainda não havia se juntado aos outros e nem mesmo recebido ordens.

— Parece que amanhã começará seu treinamento — falou Lorenk, sem tirar a atenção dos papéis que assinava.

— Há que horas devo me encontrar com Sir Amik? — perguntei de forma ansiosa.

— Sir Amik? Não... Você achou que o líder dos cavaleiros te treinaria pessoalmente? — respondeu Lorenk levantando seu bigode.

Fiz um semblante não muito feliz. Sir Lorenk notou meu descontentamento.

— Sir Amik precisará fazer uma viagem de emergência, então não poderá ficar responsável por você. Um dos motivos por ele não ter um escudeiro é por ser muito ocupado. Você terá de se acostumar com isso — explicou Lorenk com certa indiferença.

— Mas então, quem irá me treinar? — Me aproximei de sua mesa, apoiando as mãos sobre ela.

— Entenda garoto, isso não é um centro de treinamento. Você está aqui para servir ao seu cavaleiro e ao reino. Se quiser treinar, pode ir para o pátio e se juntar aos outros.

— Entendo... então eu serei o único escudeiro prejudicado por não ter um cavaleiro responsável até que Sir Amik volte?

— Ah é claro que não. Sir Amik foi específico em suas ordens e me pediu para que eu o colocasse sob a tutela de um cavaleiro tão forte quanto ele. Eu o chamei até aqui, na verdade já devia ter chegado... — Lorenk parou por um instante ao ver que alguém entrava na sala. — Que coincidência, estávamos falando de você. Garoto, Conheça Sir Wallace, um dos sete capitães dos cavaleiros brancos.

Ao olhar para trás, meu sangue se tornou frio como o gelo. O cavaleiro responsável por mim me encarava com seu olhar sanguinário entre seus cachos negros e seu sorriso maléfico. Eu treinaria com Sir Wallace, o cavaleiro assassino.

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— E então, para onde estamos indo? Algum lugar específico para que você possa terminar o serviço daquele dia? — retruquei ao cavaleiro, enquanto o seguia pelas ruas pavimentadas da cidade alta.

Após receber ordens de servir como escudeiro de Sir Wallace, não tive escolhas a não ser aceitar. Imediatamente, ele me trouxe para a cidade. Eu não entendia o que o cavaleiro buscava com aquilo, mas sabia que tinha algo em mente. Ele não pediria para substituir Sir Amik atoa, provavelmente tentaria me matar em algum momento.

— Acha que estou interessado em te matar? — Suspirou o cavaleiro, virando-se para mim.

— Eu sei seu segredo e, enquanto eu viver, sua reputação estará em risco — respondi cerrando as sobrancelhas e encarando-o.

O cavaleiro franziu o cenho e continuou a me fitar. Ele provavelmente não me mataria ali no meio da cidade entre tantas pessoas, mas fiquei preparado para um possível ataque. Ele parou de me encarar, quando algo se chocou contra a sua perna. Uma pequena garotinha que corria desatenta pela rua. Eu me desesperei, quando vi seu olhar indo em direção à pequena garota. Sir Wallace estendeu sua mão em direção a ela. Eu comecei a desembainhar a minha espada e a correr em direção a eles, mas parei no meio da investida.

— Tome cuidado, pequena. Você pode se machucar correndo assim por aí — disse Sir Wallace com um largo sorriso, enquanto acariciava a cabeça da garotinha de cachinhos louros.

— O senhor é um cavaleiro? — perguntou a criança de forma despreocupada. Suas bochechas rosadas emolduravam um sorriso orgulhoso ao ver um cavaleiro de perto.

— Amícia, não atravesse a rua assim. — A mãe da garota corria em sua direção, com um semblante preocupado. — Oh meu deus, mil perdões, Sir. Eu espero que minha filha não tenha arranjado problemas — desculpou-se a mãe ao ver o cavaleiro.

— Não se preocupe tanto minha senhorita, crianças gostam de correr. — Sir Wallace levou a criança em seu colo até sua mãe. — Especialmente essa linda garotinha.

O cavaleiro devolveu a criança para a mãe, que se despediram com um sorriso no rosto. Eu observava a cena ao fundo, sem tirar a mão de minha espada por um segundo, com medo daquele cavaleiro fazer algo àquela família.

— Sabe por que eu não tenho interesse em te matar? — falou Sir Wallace, respondendo em seguida: — Pois quem acreditaria em você?

O cavaleiro continuou andando e deu sinal para que eu continuasse a segui-lo. Meu coração ardia de ódio naquele momento, e eu sabia que minhas mãos estavam atadas. Ele estava certo, eu sabia da verdade, mas de nada adiantaria sem provas. Eu não tive escolhas, senão engolir meu ódio e entrar no ritmo de sua dança.

O restante do dia foi resumido em segui-lo pela cidade. O cavaleiro se exibia com sua armadura branca pelas ruas. Era recebido com honrarias pelo povo, como se todos o conhecessem e o venerassem. Eu não sabia se ele fazia aquilo de forma rotineira ou se apenas queria me humilhar ainda mais, talvez os dois.

Um grupo de garotos curiosos cercou o cavaleiro, afim de fazer perguntas. Ele mostrava seu arco e os ensinava a como armar uma flecha. Seus olhares eram brilhantes e seus semblantes maravilhados com aquele cavaleiro, aquilo me enojava.

— Ei moço, você é um escudeiro né? — Um garoto moreno de cabelos encaracolados veio até mim com um sorriso estampando em seu rosto.

— Sim, eu sou. — Me agachei até a altura dele e respondi com um sorriso.

— Como é ser escudeiro de um cavaleiro tão incrível como Sir Wallace? — perguntou o garoto. Sir Wallace me olhou de relance. Pude ver um fino sorriso saindo de seus lábios.

— É um ótimo aprendizado... — respondi ao garoto, forçando o sorriso.

— Quando eu crescer, quero me tornar um capitão como você, Sir Wallace! — exclamou o garoto, se voltando ao cavaleiro.

O garoto voltou correndo até a roda dos outros meninos em volta do cavaleiro. Sir Wallace me fitava com o mesmo sorriso presumido. Seu sorriso dizia: "eu venci". Eu me sentia mal por não ter dito a verdade ao garoto, mas do que adiantaria estragar sua infância com a realidade?

Virei meu olhar para longe do cavaleiro, eu não aguentava mais ver tanta hipocrisia. Por coincidência, meu olhar acabou se encontrando com algo instigante. Em meio à multidão que se aglomerava em volta do cavaleiro, uma pessoa suspeita passava em passos apertados em direção ao cavaleiro. Uma longa capa cobria todo seu corpo e seu rosto escondia nas sombras de seu capuz. Um fino lampejo de um reflexo saía de baixo de sua capa. Era uma adaga. Eu não pensei, apenas segurei em seu braço antes que atacasse o cavaleiro.

— Ei espere, aonde pensa que vai com tanta pressa? — Meu semblante mudou, quando o braço por baixo da capa se revelou.

O braço repleto de símbolos estranhos a delatava. A mulher ruiva daquele dia, revelava sua face descontente sob seu capuz. Eu não sabia se aquilo era mesmo coincidência ou se havia algum motivo para ela estar ali. Olhei para o cavaleiro que nem mesmo notou que eu tinha saído de perto dele. Estava ocupado demais com a multidão.

— Tire suas mãos de mim ou lhe transformarei em cinzas — praguejou a mulher.

— Espere, eu... — Eu soltei seu braço, fazendo-a ficar mais calma. — O que você espera conseguir assassinando um cavaleiro?

— Eu não lhe devo explicação alguma. Vá embora, ou vai estragar tudo. — A mulher deu de costas e saiu. Eu corri até ela.

— Você conhece o Zjarr, por favor, eu preciso de sua ajuda. — Novamente segurei em seu braço, mas dessa vez ela se virou com um olhar de ira.

— Eu disse para ir embora. — A ruiva colocou a mão em meu pescoço. Senti minha pele começar a arder, como se um ferro quente lentamente se aquecesse sobre mim.

A mulher, bruscamente me soltou e deu um salto para trás. Uma flecha passou por mim no mesmo instante, atingindo o chão. Olhei para trás e Sir Wallace sorria com seu arco em mãos. As pessoas assustadas começavam a se afastar.

— Pelo visto, você pegou um peixe grande, Jack — gritou o cavaleiro com um olhar empolgado. — Excelente trabalho, escudeiro.

— Eu devia saber que era um deles — lamentou a mulher, enquanto uma pequena bola de fogo se formava em sua mão direita. — Desse jeito, não poderei fazer isso de forma discreta.

— Não, espere! — Tentei correr até a mulher, mas outra flecha passou por mim, dessa vez indo em direção à cabeça dela.

A flecha simplesmente explodiu em chamas antes de tocá-la. Era como se aquela mulher tivesse um escudo natural em sua volta. A multidão, ao ver aquilo, começou a se dispersar. Pessoas corriam desesperadas com medo dela. Suas mãos começaram a arder em chamas, cada vez mais, aumentando o tamanho das labaredas, como se preparasse um ataque massivo.

— Saia da minha frente, ou farei com que se arrependa — gritou a mulher.

Sir wallace correu até ela, agora com seu escudo. Ele passou tão rápido por mim, quanto suas flechas. A mulher nem mesmo esperou com que todos saíssem daquela rua para lançar seu ataque em nossa direção. Eu não tive tempo de me mexer e não haveria para onde escapar. Um enorme rastro de chama, tão voraz quanto um leão, veio ao nosso encontro.

A bola de fogo parou em seu obstáculo, como uma onda do mar se chocando contra uma rocha. O cavaleiro defendeu aquele golpe com seu escudo, como se não fosse nada. A chama se dissipou quando o cavaleiro fez um movimento com o escudo para o lado. Seu escudo branco estava avermelhado com o calor das chamas.

— Deixe-me apresentar, mi lady — disse o cavaleiro de um jeito pomposo, abrindo os braços. — Sou Sir Wallace, um dos sete capitães dos cavaleiros brancos e não deixarei que faça mal a nenhuma dessas pessoas.

— Você será um capitão morto a partir de agora — respondeu a mulher com desprezo.

Outra bola de fogo começava a se formar em sua mão esquerda, mas dessa vez, ela não apontou em nossa direção, mas para direção do mesmo garoto de antes que assistia aquela luta sem saber do risco que corria por permanecer na rua.

Eu olhei nos olhos daquela mulher. Seus olhos não pareciam com o de um assassino, mesmo assim, eu não apostaria neles. Eu não sabia se ela realmente teria coragem de matar aquela criança inocente, mas antes de pensar, meu corpo já reagia, antes mesmo de decidir, eu já corria em direção ao garoto. A esfera de fogo foi lançada em nossa direção sem hesitação, e essa era bem maior que a anterior. Eu me coloquei a frente do garoto e fechei os olhos. Não sabia se morreria ali, mas não deixaria que outra pessoa inocente morresse na minha frente, afinal, era isso que significava ser um cavaleiro.

Senti o calor das chamas chegar perto o bastante para me consumir. Quando abri os olhos, me deparei com a visão de Sir Wallace com seu escudo as bloqueando. A intensidade daquele fogo era colossal, eu podia perceber o escudo derretendo na mão do cavaleiro, mesmo assim, em nenhum momento, ele deu para trás. O cavaleiro continuava bloqueando aquelas chamas, ignorando o quanto aquilo era doloroso.

— Não se preocupe, eu não deixarei que ninguém morra — disse o cavaleiro, com um sorriso, se virando para nós. — Afinal, eu jurei proteger o povo de nosso reino.

As chamas de repente cessaram, dando lugar à fumaça e um cheiro característico de metal derretido que eu conhecia bem, me lembrando dos meus tempos na oficina. Sir Wallace tinha sua armadura branca, agora cinza, totalmente chamuscada. Seu escudo derretido e sua luva já preta, imaginava como sua mão deveria estar. Mesmo assim, ele começava a armar seu arco.

A mulher tinha aproveitado aquela situação para fugir. Ela já estava longe, quase desaparecendo no final da rua. Daquela distância seria impossível para qualquer humano acertar uma flecha. Mesmo assim, o cavaleiro mirava com seu arco, sem nem mesmo hesitar um instante. E se ele errasse e acertasse alguém no fim daquela rua? Eu tentei impedi-lo, mas era tarde demais. Sua mão soltou a corda e a flecha viajou em uma velocidade impossível de se acompanhar com os olhos.

A flecha acertou em cheio as costas daquela mulher, a levando ao chão. O cavaleiro correu em sua direção, com um olhar de satisfação, o mesmo olhar daquele dia. Era como se conseguisse abater sua presa no final da caçada.

— Você está bem? — perguntei ao garoto que chorava. Ele afirmou com a cabeça. — Vá para um lugar seguro, está tudo bem agora. — Sorri para ele.

O garotinho correu dali, bem mais feliz por ter sido salvo, do que assustado. Me senti aliviado ao ver aquela criança correndo para o colo de sua mãe, a quem chorava de preocupação. Meu alivio logo passou ao voltar meu olhar para o cavaleiro.

A mulher se levantava com dificuldade, enquanto o cavaleiro chegava até ela em passos lentos. Em sua mão, mais um ataque parecia estar sendo preparado, mas a intensidade de sua chama agora era menor.

— Sabe o que tem nessa flecha? — disse o cavaleiro.

— Eu vou te matar! — urrou a ruiva, soltando mais um golpe de fogo na direção do cavaleiro.

— Resposta errada. — O cavaleiro defendeu o golpe com o braço, sem se importar com as chamas que agora eram pequenas faíscas. Ele segurava o braço da mulher, que igualmente às suas chamas, não tinha mais força. — Essas flechas são feitas de rúnicas, elas inibem seu poder.

Antes que a mulher pudesse responder algo, o cavaleiro desferiu um soco em seu rosto, a derrubando. Depois começou a afundar a flecha em suas costas, ela gritava de dor. Seu sorriso sádico, mostrava o quanto ele se divertia com aquilo.

— Você ameaçou essas pessoas inocentes, talvez eu deva puni-la com a morte — sugeriu o cavaleiro, enquanto afundava a flecha.

— Pare! — gritei, segurando seu braço.

— Hem? — O cavaleiro se virou para mim, revelando sua face demoníaca, a sua verdadeira face.

— Quem é você para decidir quem deve morrer ou viver? — falei em voz alta para que todos naquela rua pudessem ouvir. — É assim que um cavaleiro honrado deve agir?

O cavaleiro me fitava com ódio nos olhos, enquanto que a multidão silenciosa assistia, esperando ver o que o cavaleiro responderia. Então sua face finalmente relaxou, despontando um sorriso descontraído.

— Eu acho que perdi a cabeça por uns instantes — respondeu o cavaleiro com uma risada. — É obvio que eu não mataria uma pessoa assim, mas quando vejo alguém ameaçando meu povo querido, isso me deixa irado.

Sir Wallace se levantou e se pôs à frente de todos com seu gestual imponente. Ele levantou seu punho que não havia sido consumido pelas chamas e tomou fôlego para falar.

— Povo de Misalem, eu Sir Wallace jurei protegê-los e assim farei, até que eu continue a viver. Nunca deixarei que nenhum mal venha nos infringir, seja ele qual for. Viva o nosso reino! — impôs-se Wallace com um sorriso e voz estrondosa.

A multidão, até então silenciosa, se tornou eufórica. Todos se aglomeravam novamente em volta do cavaleiro que agora saía como o herói da história. Salves e glórias ao cavaleiro eram proferidas pela multidão, enquanto ele prendia a mulher já desacordada. Seu olhar voltou novamente em minha direção, e novamente dizendo:

"Eu venci".

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