Capítulo 30 - Ventos

Os ombros da garota relaxaram quando avistou a silhueta saindo dentre os galhos congelados. Era uma lebre de pelo branco e manchas marrom escuras. O animal nos observava com seus olhos azuis cheios de curiosidade.

— Garoto, te darei uma tarefa simples. Quero que capture essa lebre para mim. Vamos ver se suas habilidades e reflexos estão em dia.

Olhei para ela com certa desconfiança. Afinal, que tipo de tarefa era aquela? Fazia mesmo parte do treino ou ela estava se aproveitando de mim para ter o seu jantar garantido?

— É impossível, lebres são rápidas e podem se esgueirar pelos arbustos. Eu não tenho nem mesmo um arco — contestei.

— Por isso eu disse que será um teste para as suas habilidades. Agora vá, você tem até o pôr do sol para me trazer a lebre, estarei esperando aqui — demandou ela.

Por fim, dei ombros e aceitei a sua tarefa. Dei alguns passos à frente e a lebre já disparou a correr para dentro dos arbustos, sumindo entre a paisagem branca. Eu olhei de volta para ela com um olhar de "eu te avisei".

Fiquei durante alguns minutos procurando pelos arbustos por trilhas ou rastros da lebre. Por causa da nevasca era difícil ter acesso a algumas áreas. A lebre provavelmente havia se escondido em alguma toca.

Eu abri caminho com minha espada, cortando os galhos até finalmente achar um buraco grande o bastante para caber uma lebre lá dentro. Percebi algumas bolinhas negras congeladas em volta do buraco, eram as fezes do animal. Com certeza aquela era a sua toca.

Estiquei meu braço tentando encontrar algo lá dentro, mas a toca era bem funda. Aquilo não daria certo. Procurei ao meu redor por frutinhas para usar como isca, mas no inverno seria difícil achar qualquer coisa. No meio da procura, avistei outras tocas. Agora eu não sabia qual delas estaria habitada.

— Pense Jack... pense... — cochichei para mim mesmo, tentando bolar algo. Olhei para o céu, percebi que já estava começando a escurecer. Eu estava falhando naquela tarefa. Por mais que eu não quisesse fazer aquilo, me fazia sentir frustrado saber que não conseguiria.

Eu me recostei em uma arvore e me concentrei, buscando esvaziar a minha mente. Minha mãe sempre dizia que mente turbulenta toma atitudes precipitadas. Comecei a me lembrar dela e do quanto era calma ao tomar suas decisões. Seu jeito sereno e calmo de sempre, seu rosto alegre. Os momentos felizes da minha infância com ela fizeram minha mente se esvaziar. Concentrei em minha respiração, buscando sentir as vibrações da floresta ao meu redor. As ideias então começaram a vir, pouco a pouco, junto com a brisa do vento que batia em meu rosto.

Busquei perto das tocas por galhos que não estivessem molhados ou congelados. Alguns ninhos de passarinho também tiveram de ser sacrificados. Coletei tudo o que a floresta podia me prover. De alguma forma aquele momento de reflexão me ajudou a me conectar com a natureza.

Posicionei os galhos na frente das tocas deixando apenas uma livre, depois usei os ninhos para criar um chumaço. Foi difícil fazer faíscas usando galhos, me senti frustrado por não conseguir de primeira como a ranzinza. Depois de mais alguns longos minutos finalmente consegui. A fumaça adentrou em todas elas e, como eu suspeitava, saiu pela toca que não havia fogo. As tocas estavam interligadas.

Eu me posicionei em frente à única saída, então esperei. De repente o coelho saiu em disparada, como se fosse um raio. Eu usei todo o meu reflexo para agarrá-lo.

As sombras já começavam a tomar conta da floresta, o pôr do sol já dava a sua deixa. Pude perceber o olhar impaciente da garota ao me ver aparecendo no horizonte. Provavelmente estava arrependida de ter dito que me esperaria por tanto tempo.

— Você demorou, pensei que não conseguiria — disse ela, se apressando até mim.

Levantei meu braço, revelando a lebre. Eu o segurava firme para que não escapasse. O animal era arisco e tentava escapar de todo o jeito.

— Muito bem. Você provou que tem reflexos e habilidades para caçar uma lebre, mas não sei se foi o bastante. Qualquer um é capaz de caçar um animal indefeso hoje em dia.

— Então por que me mandou ir atrás dele? — perguntei, um pouco confuso.

— Me diga você.

Então finalmente eu entendi. Ela não queria realmente provar se eu era capaz de capturar o animal, mas sim se eu era capaz de aprender algo com a floresta. Aquele não era um teste, era um ensinamento. Eu me curvei a ela e a agradeci.

— Por que está fazendo isso? — repreendeu ela, inquieta por aquela ação repentina.

— Obrigado, eu sabia que você seria a pessoa certa para me ensinar.

— Pelo seu semblante, parece ter entendido o motivo dessa tarefa. — Ela pareceu sorrir. — Foi uma das primeiras coisas que Sir Erwin me mandou fazer quando comecei a treinar com ele. Achei que seria legal tentar com você, embora eu pensasse que seria burro demais para isso.

— Vou considerar isso como um elogio. Então... posso soltá-lo agora? — falei, apontando para a lebre que não parava de se debater em meus braços.

— Você o caçou, agora termine o serviço — apontou ela.

— Como assim terminar o serviço?

— Mate ele. — Ela retirou uma faca de sua mochila e me entregou de forma indiferente.

Eu olhei nos olhos da lebre desesperada. Seus instintos a diziam que estava em perigo, ela sabia que eu poderia tirar a sua vida a qualquer momento. A criatura estava indefesa em meus braços e só bastava uma ação para que eu tirasse a sua vida.

Encostei minha faca na nuca do animal. Seria um único e certeiro corte para que não sentisse dor. Era assim que o ferreiro havia me ensinado, mas não sabia na prática como abater um animal. Minhas mãos tremiam e o suor escorria pela minha testa. Não era uma coisa fácil. Nunca havia tirado uma vida antes.

— Vamos! — gritou a garota, impaciente.

Eu pedi perdão a floresta, segurei firme o punhal e então fiz o que achava certo. Soltei a lebre. Ela rapidamente se enfiou entre os galhos, sumindo no horizonte.

— O que você pensa que está fazendo, você jogou todo o trabalho que teve o dia todo fora! — A garota enfureceu-se, ela apontava o dedo em meu peito.

— Não posso tirar uma vida... — desculpei-me, abaixando a cabeça.

— Se você não consegue tirar a vida de um simples animal como esse, como vai fazer quando estiver em um campo de batalha. Vai hesitar na frente do seu oponente? Se fizer isso, vai estar trocando sua vida pela dele.

— Eu...

— Você não está pronto para ser um cavaleiro. Você ainda é fraco, ainda há hesitação. É melhor seguir outro caminho, essa vida não é para você — completou ela com palavras ásperas que bateram fundo em mim.

— Tem razão, eu não sirvo para ser um cavaleiro. Eu sou fraco, ingênuo e burro. Mas eu sei o que é certo e o que é errado, e tirar vidas é errado. Se for para ser um cavaleiro com essa mentalidade, eu prefiro não ser. — Chutei aquelas palavras ríspidas de volta, enfurecido com a atitude da garota. — Eu estava errado em confiar em você. No final, você não é diferente deles.

Dei as costas e saí, desejando nunca mais vê-la. Eu seguiria meu caminho sozinho a partir dali. Era preferível assim.

— Jack — gritou a garota, me chamando pelo nome pela primeira vez. — Espera.

— O que é?

— Preciso que veja algo antes de ir — insistiu ela, me puxando pelo braço.

Ela me levou até a toca da lebre. O fogo já havia se extinguido, deixando apenas fuligem e cinzas. Todas as tocas estavam destruídas, impossíveis de se habitar.

— Você vê? Sua atitude matou aquela lebre. Ela não sobreviverá ao inverno rigoroso sem os mantimentos que estocou em sua toca e sem uma casa para se esconder de outros predadores.

— Não seja ingênua, eu a dei uma chance de sobreviver. Como matá-la seria melhor que isso?

— Às vezes poupar a vida de alguém nem sempre é a melhor escolha. De qualquer forma, a vida daquele animal seria melhor aproveitada se você tivesse ido até o fim. Agora ele morrerá por nada. — A garota por mais que parecesse indiferente em suas palavras, no fundo parecia realmente respeitar aquela floresta como se fosse alguém próximo dela.

Comecei a me lembrar daquela noite e de quando o homem da cicatriz poupou a minha vida. Será que realmente não seria melhor que eu morresse naquela noite? Será que me deixar vivo não teria sido um ato de caridade, mas sim de uma crueldade ainda maior?

— De qualquer forma, quero que saiba que não irei mais treiná-lo a partir de agora — continuou a garota, se virando. O vento gélido esvoaçava seus cabelos, dando sinal que outra nevasca se aproximaria.

Eu fitava suas costas em silêncio consentindo com o que havia dito, eu já não me importava pois tinha tomado a mesma decisão.

— Amanhã, eu e Sir Erwin sairemos em uma missão importante e ficaremos algumas semanas fora. — Ela desembainhou seu florete. — Essa será a sua última chance de aprender a lutar decentemente.

— Você disse que eu nunca seria um cavaleiro, por que continuar perdendo seu tempo?

— Lute comigo mais uma vez e quem sabe terá sua resposta — continuou ela com sua postura inabalável.

— Nesse caso... vou lhe mostrar que está errada sobre mim — respondi, desembainhando minha espada também.

— Dessa vez eu irei lutar a sério. Quero ver como se sai contra um oponente em um nível muito acima de você.

Antes que eu pudesse retrucá-la, um vento forte começou a se formar. Tive que proteger os olhos com minha mão esquerda. Por entre minha mão, pude ver o vento se formar em torno da garota. Ele ribombava em volta dela, oscilando em espirais e contornando seu florete. O vento parecia tomar forma em volta de sua espada, como se ela o controlasse. Por fim, toda a sua lâmina se tornou invisível em meio àquele vento. A visão era inacreditável, eu diria estonteante.

— Jack, quando se tornar um cavaleiro, você enfrentará oponentes que usarão técnicas dos mais variados tipos — gritou a garota. Eu mal conseguia ouvir sua voz, em meio ao barulho da ventania. — Você deverá estar preparado para tudo o que vier, independente do que seja.

Sua lâmina invisível fazia a luta ser mil vezes mais complicada. Eu não conseguia distinguir a extensão dela. Qualquer erro abriria brecha para um contragolpe. Sem contar que, eu não sabia se o vento representava algum perigo.

— Quando essa batalha acabar, você vai me explicar o que raios é isso de controlar o vento — gritei, mas minha voz se perdeu, sendo levada pelo vento incessante.

Sem dar a graça de uma resposta, a garota começou com ataques rápidos e cortantes. O vento me desiquilibrava e a deixava muito mais rápida. Ela tinha razão, eu realmente tinha melhorado muito e nem havia percebido. Eu conseguia prever todos os seus movimentos. A lâmina estava oculta pelo vento, mas depois de tanto lutar, meu corpo tinha decorado sua extensão.

O vento não impedia nossas lâminas de se chocarem. O soar do metal das lâminas preenchia o vazio da floresta e, de alguma forma, se juntava à melodia sinistra que o vento emitia.

— Use sua espada como se fosse a própria extensão de seu braço — a garota falava enquanto desviava de meus golpes de forma incrivelmente rápida. O vento a deixava mais leve, como se ele fosse uma espécie de manto que a protegesse. Seu fôlego também parecia incessante, enquanto o meu, se esvaía a cada segundo daquela luta intensa.

Por uma fração de segundo, consegui seguir seu olhar, ela atacaria minha mão, afim de derrubar minha espada. Não sei se foi por instinto, mas eu reagi tão rápido quanto seu golpe e chutei a neve para cima. A neve foi em seus olhos, a distraindo por alguns segundos. Mas foi o bastante para que eu desviasse e girasse a lâmina em sua direção.

— Use o campo de batalha como arma — respondi a ela, devolvendo um sorriso.

Outro choque. Ela se defendeu de meu ataque com um movimento tão rápido que meus olhos nem puderam acompanhar. Sua espada parecia entortar com o peso da minha. A garota teve que apoiar a sua outra mão contra a lâmina para conseguir suportar a força do golpe. Eu continuei fazendo força para derrubá-la. Ela serrava os dentes, e usava o pé direito como apoio, mas estava cedendo, eu iria vencê-la.

O vento começou a aumentar, agora vindo das costas da garota. Ele a impulsionava para frente como se fossem asas, de forma que, agora eu estava perdendo o duelo de força.

Olhei nos olhos da garota e eles brilhavam, ao contrário de antes, agora demonstravam empolgação. Os meus também respondiam a altura. Aquilo era muito mais que um simples treino, era muito mais do que apenas uma luta, por isso, coloquei toda a minha força em meus braços e pernas. Eu não perderia, eu mostraria a ela o quanto eu tinha melhorado.

Então, de repente, o vento parou.

Senti uma leveza incrível, e me vi sendo jogando de cara na neve. Ela simplesmente girou para o lado e me deixou cair com o impulso de minha própria força. Que idiota eu fui de cair num golpe daquele. Quando me virei, sua lâmina estava apontada sobre meu peito. Ela finalmente parecia estar sem fôlego e suor escorria sobre sua testa. Quando olhei bem em seu rosto, percebi uma coisa.

Ela sorria.

Então, finalmente falou:

— A propósito, meu nome é Sarah.

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