Capítulo 24 - O Falcão Emblemático
Acordei na manhã seguinte, todo coberto por neve. Eu sentia meu corpo enrijecido, como se eu estivesse prestes a congelar. A única parte aquecida, era meu peito. Graças ao pingente, eu não morrera congelado. Ele me aquecera durante a noite, mas agora se encontrava tão frio quanto todo aquele gelo.
Eu precisava sair dali o mais rápido possível e me aquecer. Me levantei com certa dificuldade, devido as minhas pernas estarem rijas, então segui para fora do beco. Eu me apoiava pelas paredes geladas, andando vagarosamente até a saída. O sol da manhã já despontava no horizonte, fazendo-me sentir mais aquecido. A caminhada também ajudou com que eu voltasse a sentir meus músculos funcionando novamente.
Andei até o distrito comercial, embora cedo, devido à distância da caminhada, já estava próximo das lojas abrirem. Olhei para o meu pingente e soube o que fazer. Depois daquela noite eu tinha certeza. Eu não desistiria, eu continuaria lutando até o fim.
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A porta de madeira escura rangeu quando eu entrei, chamando atenção do homem loiro de barba cheia atrás do balcão da loja. Uma loja de penhores bem enfeitada, com tapeçarias coloridas, aparentemente bem caras, e um cheiro de incenso característico, lembrando a flores silvestres.
— O abrigo para mendigos não fica aqui, garoto — disse o comerciante, enquanto acendia seu cachimbo.
Eu não disse nada, apenas andei até o balcão e depositei o pingente em cima. O homem se assustou, arregalando os olhos, quando percebeu a joia verde e brilhante em cima de seu balcão.
— Onde conseguiu isso? — Ele pegou a joia e levou bem rente aos olhos, fitando-a mais de perto. — Roubou de algum lugar?
— Herança de família.
— Sei... — falou o homem com certa desconfiança. Em seguida, soltou a fumaça de seu cachimbo, exalando o cheiro de tabaco misturado às ervas do incenso em toda a loja. — Bom. Sou um homem de negócios, e essa pedra é um ótimo negócio. Quanto quer por ela?
— Vinte arguis de prata — respondi sem rodeios, de um jeito firme para que ele entendesse que eu não era nenhuma criança boba para ser enganada.
— Hum... que tal dez arguis? — Ele tragou mais um pouco de seu cachimbo.
— Pelo visto terei que negociar com outro. — Peguei o pingente do balcão e dei de costas, pronto para ir embora.
— Espera! — ele gritou. — Quinze moedas, que tal?
— Eu disse vinte arguis de prata e nada mais — contestei, olhando-o nos olhos.
— Hunf... — bufou o comerciante, soltando mais fumaça. — Você é realmente um garoto esperto. Tudo bem, negócio fechado. Essa joia certamente vale tudo isso.
Eu sabia muito bem que a joia poderia valer mais do que vinte arguis de prata, provavelmente até oito aurums de ouro, mas não queria correr o risco de pedir muito e não conseguir vendê-la. Por isso, pedi uma quantia que pudesse me prover um modo de sair da miséria em que eu me encontrava.
O comerciante tirou de seu balcão um saquinho e começou a contar as moedas. Eu contei junto a ele, para que não me passasse a perna. Ele deixou o dinheiro em cima do balcão e estendeu a mão para mim. Eu olhei com certa desconfiança de seu gesto repentino.
— Um bom negócio só é concretizado com um aperto de mãos — exclamou o comerciante, soltando um sorriso descontraído, continuando com a mão estendida para mim. Finalmente estendi a mão e apertei a dele. — Negócio fechado, foi um prazer negociar com você.
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Fui até uma taverna localizada na cidade alta. O falcão emblemático, um nome bem chamativo para uma taverna. Na entrada, um grande emblema de um falcão de madeira se destacava. Conhecida como a melhor taverna da cidade, o falcão emblemático era o lugar preferido dos cavaleiros brancos. No momento, por ser muito cedo, estava vazia. Uma senhora de meia idade e cabelos grisalhos encaracolados, usando um avental cinza, varria o chão da taverna. Ela me olhou de soslaio quando entrei.
— É um pouco cedo demais para beber, mocinho — disse a senhora, continuando a varrer o chão.
— Eu preciso de um quarto, uma boa refeição e um lugar para me banhar — respondi, deixando dois arguis de prata na mesa próxima a ela.
Ela me olhou bem, parecendo me analisar por completo, provavelmente achando suspeito o fato de um garoto mal vestido, fedorento e magricela, ter tanto dinheiro.
— Temos um quarto com uma banheira no segundo andar. — Ela suspirou e retirou uma chave do chaveiro pendurado na parede. — A comida só ficará pronta daqui a uma hora — continuou. — Ainda não aqueci o forno, e meu marido ainda está preparando os pães, mas se estiver com muita fome, posso te servir pão e carne de ontem.
Eu aceitei sem pestanejar. Para alguém que estava há mais de um dia sem comer nada, qualquer coisa já seria um banquete. Ela rapidamente trouxe um prato com alguns pães, linguiça e um copo de leite. Eu devorei tudo sem me importar de estar sujo, ou com meus modos. Comi até me sentir satisfeito o bastante.
Depois de alguns minutos, a senhora veio me avisar que o banho já estava pronto. Ela me acompanhou até o quarto e me deixou toalhas limpas e sais de banho, em seguida fechou a porta, me deixando sozinho para me banhar.
Despi de minhas roupas e segui até a banheira. Saía uma fina fumaça da água quente e o cheiro de sais de banho exalava pelo quarto. Em frente à banheira, havia um espelho. Eu estava tão sujo que mal me reconhecia. Meu cabelo enorme, passando de meus ombros, estava todo sujo e emaranhado.
Entrei na banheira, e usei o esfregão com toda a força para sair toda a sujeira encrostada em meu corpo. Posso dizer que o banho foi bem demorado. A água estava quentinha e aconchegante. Depois de ter quase congelado na noite passada, aquilo era um alívio.
Tive certa dificuldade com o cabelo. Ele estava tão emaranhado, que tive que cortá-lo com uma lâmina que achei em cima da cômoda do espelho. Acabei gostando de me ver com cabelo curto.
Quando finalmente me cansei do banho, afinal, a água já tinha esfriado e meus dedos já estavam se esgrouvinhando, saí da banheira e me enrolei nas toalhas limpas. Me senti um pouco relutante em colocar minhas roupas imundas. Eu nem tinha percebido o quanto elas estavam sujas e fedorentas até estar limpo e cheiroso.
Ouvi alguém bater à porta. Um senhor com seus cabelos também grisalhos e barba rala, estava à porta. Trazia em suas mãos algumas roupas limpas.
— Aqui, garoto — chamou o homem, dando as roupas para mim. — Minha mulher me mandou te dar essas roupas. Ela me disse que você estava com suas roupas pendendo a pedaços. Era do meu filho, ele tinha a sua altura, então talvez sirva em você.
Eu aceitei e agradeci àquele senhor. As roupas serviram muito bem em mim. Uma calça preta e confortável e uma camisa branca com botões marrons. Me perguntava o que acontecera com o filho deles. Não saberia dizer se era certo vestir aquelas roupas.
Me sentia renovado quando deitei em uma cama macia e quentinha. Depois de tanto tempo dormindo no chão duro e gelado, cheguei a estranhar a maciez de uma cama. Eu simplesmente descansei durante toda aquela manhã.
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Passei um bom tempo pensando em uma estratégia para entrar no castelo branco. Eu também aproveitei a água que restara para lavar a minha capa. Estava cheia de rasgos e bastante surrada. Decidi deixá-la no quarto até que eu arranjasse um alfaiate.
Quando desci até a taverna, percebi que o ambiente já tinha mudado bastante. Antes vazia, a taverna agora tinha um ar alegre. Havia muitos bêbados e cavaleiros brancos enchendo a cara em suas folgas. Estavam sem suas típicas armaduras, mas eram sem dúvida alguma cavaleiros.
Uma banda de músicos itinerantes tocava uma melodia típica de taverna, com alaúdes e tambores, dando um ar hospitaleiro ao lugar. Eu reconhecia a melodia. Estavam cantando: "Em guarda, cavaleiro". Costumavam tocar essas músicas no festival de Florencia.
Me sentei à mesa vazia ao fundo e pedi cidra à senhora estalajadeira. Eu nunca tinha tomado qualquer tipo de bebida antes, mas resolvi que seria hora de experimentar. Confesso que o gosto foi horrível. Não sabia bem como tantas pessoas gostavam daquilo. Ainda por cima ficavam bêbadas de tanto beber.
— Você parece até outra pessoa agora — provocou a senhora, soltado um risinho. — Pelo visto as roupas do Kellar caíram bem em você.
— Eu agradeço pela hospitalidade. — Dei outra golada de cidra e tentei disfarçar a careta. — A senhora é muito gentil — completei, limpando a espuma em volta da minha boca
— Não me chame de senhora. Pode me chamar de Ruth. — Seu rosto sorridente mudou para uma expressão mais séria. — Garoto, sei que não é de minha conta, mas o que houve para você chegar aqui naquele estado?
Bebi toda a cidra com relutância e pensei bem no que diria. Ao fundo, observei aqueles cavaleiros na taverna. Não pareciam conversar nada além de trivialidades. Começava a me perguntar sobre a seriedade da ordem dos cavaleiros. Depois do que aquele suposto cavaleiro fizera, me perguntava se eram apenas charlatões de armadura.
Um dos cavaleiros estava mais bêbado do que o comum. Um loiro, de cabelo desgrenhado e barba por fazer, começou a dar em cima de uma moça bonita de olhos verdes que acompanhava outro cavaleiro. O outro cavaleiro, alto e forte, com uma pinta em baixo do olho direito, ficou irado e começou a discutir com o loiro.
Não demorou muito para que começassem uma briga. Ruth correu para impedir que quebrassem tudo, posso dizer que fui salvo pelo gongo. Eu não saberia como respondê-la, afinal, o que eu diria? Que um cavaleiro branco me atacou e matou uma família inteira? Ninguém acreditaria em mim.
O cavaleiro mais parrudo, por fim, deu um murro no loiro, derrubando-o de costas para uma mesa, a quebrando em pedaços. A moça que o acompanhava soltou um grito. Os outros cavaleiros pareciam curtir a cena. Eles davam risadas e apostavam em quem sairia vencedor da briga. Os músicos começaram a tocar "Vira, vira taverneiro", aproveitando o ensejo da briga.
Ruth chamou seu marido, que correu para impedir que quebrassem ainda mais a taverna, mas o cavaleiro forte apenas o empurrou para o lado e começou a andar na direção do loiro que levantava com dificuldade.
— Parem com isso! — gritei, sem nem mesmo saber por que estava fazendo aquilo. Eu não precisava me meter, mas os donos da taverna foram tão gentis comigo, que eu me sentia na obrigação de ajudar.
Todos olharam para mim e até os músicos pararam de tocar quando entrei na frente dos dois e fitei os olhos do cavaleiro grandalhão. O silêncio na taverna foi desconfortante.
— Se querem brigar, vão brigar lá fora. Não vou permitir que destruam o estabelecimento desses senhores — falei com voz firme, impondo que realmente estava objetivado a não sair dali.
O loiro finalmente conseguiu se levantar. Parecia totalmente embriagado, mal conseguia se equilibrar em pé. Ele limpou o sangue do canto da sua boca e começou a falar:
— O garoto está certo — afirmou o loiro, falando de um jeito mole. — Vamos resolver isso lá fora.
Eles saíram, seguidos pelos outros cavaleiros, que pareciam ansiosos para ver o desenrolar da briga. O cavaleiro alto e forte passou por mim e me empurrou com os ombros. Me olhou furioso pelo canto dos olhos e seguiu para fora.
— O-obrigado, meu jovem. Esses cavaleiros, quando bêbados, são realmente problemáticos. — O dono da taverna parecia feliz por eu ter feito aquilo, pelo visto, acontecia com mais frequência do que imaginava.
— Não foi nada. Depois de ter me tratado tão bem, isso é o mínimo que eu poderia fazer.
— Mesmo assim, desde que abri essa taverna, nunca alguém se dispôs a parar uma briga por nós. Por isso agradeço muitíssimo. — O taverneiro apertava minhas mãos, com um sorriso no rosto. Eu não tinha percebido como uma boa ação, por menor que seja, pudesse fazer tanta diferença.
Saí para ver o desenrolar daquela briga. Uma roda de cavaleiros estava em volta dos dois. O loiro bêbado provavelmente perderia a briga. Seu rosto estava inchado e ensanguentado, mesmo assim, ele sorria e lutava como se aquilo não passasse de uma diversão. O homem alto não tinha nem mesmo levado um soco e não aparentava estar bêbado.
— Em quem você está apostando? — Ouvi um cavaleiro perguntando para o outro, perto de mim.
— Com certeza não é no capitão, ele bêbado é um desastre. — Eles riam da cena. Eu confesso que não entendia como podiam estar apostando naquilo.
O homem forte tentou socar o rosto do loiro, mas ele abaixou bem na hora, fazendo com que o outro socasse o vento. Apesar de bêbado, seus reflexos eram ágeis. O loiro então cerrou os punhos, e levantou rapidamente, pegando o outro homem com a guarda baixa. Possivelmente mirando o queixo do outro, mas o golpe não foi assim tão efetivo. Por estar bêbado demais, ele acabou tropeçando e errando o golpe. O homem forte não perdeu tempo e deu uma joelhada na barriga do moçoilo.
Todos comemoraram com o golpe, quando o loiro caiu no chão, possivelmente já aceitando que perdeu a luta. O homem forte deu de ombros e começou a ir embora, levando sua acompanhante junto. Os outros cavaleiros começaram a se dispersar também, como se o show tivesse acabado.
— Espera! — Todos voltaram a atenção para o centro daquele palco de luta. O loiro levantava novamente, sorrindo e com um olhar empolgado. — Eu ainda não fui derrotado.
— Quantas vezes vou ter que te socar para que fique no chão? — cuspiu o brutamontes, caminhando de volta para a rodinha de pessoas.
— Você bate como uma mocinha — provocou o loiro, fazendo com que todos os outros rissem do brutamontes. Já ele, não gostou tanto, e apertou o passo para ir até seu adversário.
A cena a seguir foi bem lamentável. O cavaleiro derrubou o loiro com facilidade e subiu em cima dele, desferindo socos em seu rosto. Não foram apenas alguns socos, foram vários, seguidos de vários outros socos. A face do loiro já se encontrava rubra de tanto sangue. Até mesmo os outros cavaleiros, que pareciam empolgados, ficaram tensos com a cena. Quando o brutamontes finalmente parou, o loiro já estava inconsciente no chão daquela rua. Pessoas curiosas que passavam, também paravam para ver a cena lamentável de dois cavaleiros brancos brigando.
O brutamontes limpou o sangue de sua mão em sua roupa e começou a ir embora novamente. Mas parou, e olhou por cima dos ombros, quando o loiro começou a levantar novamente.
— Isso é tudo que você tem? Eu ainda não fui derrotado... — O loiro falava com dificuldade e suas pernas tremiam, mesmo assim, seu sorriso não sumia de seu rosto.
— Você é louco, capitão! — urrou o brutamontes, dando de costas e saindo da roda. — Você venceu, eu desisto.
Por fim, todos começaram a se dispersar após o espetáculo. Alguns cavaleiros levaram o loiro até o estábulo ao lado, afim de usar a água do cocho para lavar o sangue de seu rosto. Ele recusou a ajuda e pediu para que o deixasse sozinho. Os outros cavaleiros o obedeceram e saíram. Ele ficou lá, apoiado no coxo e engasgando com seu próprio sangue.
Comecei a andar em sua direção, eu não sabia se seria uma boa ideia ajudá-lo, mas não gostava de vê-lo naquela situação.
Senti um cheiro suave de lírios. Olhei para os lados e me assustei com os cabelos loiros que passavam por mim. Uma garota se apressava na direção do cavaleiro. Estava de costas, mas aquele cabelo, me lembrava uma pessoa.
— Nara? — gritei, correndo até ela e segurandoseu braço.
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