Capítulo 2 - Feras da Noite

Segui Bran até a roda de soldados mais à frente. Eles pareciam assistir a algo. Fui empurrando e dando ordens para que saíssem de minha frente, e lá estava ela. Uma fera, rendida, amarrada e amordaçada. Ainda assim, vociferando e tentando avançar no soldado em cima dela.

O homem sentado em cima da fera se chamava Sir Greggory, conhecido como o Açougueiro. Um cavaleiro, que mais se aparentava com uma daquelas feras. Seu rosto todo deformado por cicatrizes, um buraco no lugar do olho esquerdo, seu cabelo desgrenhado, intercalando com falhas feitas por cicatrizes em sua cabeça, e por fim, sua barba preta e longa, combinavam com sua feiura e tamanho desproporcional. Ele não era chamado de açougueiro atoa. Antes de se tornar um cavaleiro e servir ao rei, era o carrasco do reino, por isso seu porte robusto e altura desproporcional. Um carrasco se tornar um cavaleiro branco, seria algo inaceitável há tempos atrás, mas nos tempos de hoje, qualquer homem que consiga segurar um machado enorme ou uma espada pesada como ele, é bem-vindo para ser um de nós.

Ah, é claro. Eu já estava me esquecendo da fera. Tão feia quanto Sir Greggory. Se assemelhando a um lobo de pelo escuro, mas bem maior do que um, e com a diferença de que podiam andar em pé, como um humano. Caninos grandes, capazes de estraçalhar até mesmo aço. Acreditem, já os vi comendo um homem com armadura e tudo. Suas garras, tão fortes quanto os dentes, capazes de cortar um homem ao meio sem grandes dificuldades. Tudo isso misturado com a força de um urso e a rapidez de um leopardo. As feras são imbatíveis sozinhas, agora imagine um exército delas. É por isso que estes homens têm tanto medo. É por causa desses monstros que a humanidade se acovardou e se escondeu em cavernas e atrás de muralhas.

— Olha só o que temos aqui. Parece que teremos lobo assado para o jantar! — falei aos soldados, quebrando a tensão e os fazendo rir. Sir Greggory, não riu. Não me surpreendia, ele nunca ria. — Sir Greggory, bom trabalho capturando a fera. Com certeza, será de grande ajuda se levarmos uma dessas para o rei.

Cheguei perto da fera e dei um chute em sua cabeça, fazendo-a rosnar.

— Sir Greggory, coloque a fera de joelhos — ordenei e o cavaleiro obedeceu, levantando a fera, que aparentava pesar muito mais do que um humano normal conseguiria levantar. A fera era alta, por isso, mesmo de joelhos, seus olhos batiam na altura dos meus.

Encarei a fera, olho no olho. Eu gosto de olhar nos olhos, é através dele que sabemos o que sentem. Na maioria das pessoas, só consigo ver o medo, mas nos olhos da fera, olhos negros e profundos, eu só podia ver escuridão, uma escuridão tão densa quanto a deste mundo.

— Sabe, eu queria saber se você sente medo, se sente desespero, ou até mesmo dor. — Cheguei perto o bastante para que a fera me abocanhasse, se não estivesse amordaçada com certeza o faria, e coloquei minhas mãos em seu rosto. — Eu vou fazer você sentir tudo isso, mas peço que tenha paciência, não posso fazer isso agora, mas assim que eu matar todos os seus irmãos, terei o prazer de te torturar até que eu veja o medo em seus olhos.

Larguei a fera e mandei que a levassem para a jaula, em seguida, comecei a ajudar a desmontar as barracas e jogar tudo no círculo de tralhas de madeira e corpos. Aos poucos, o acampamento começou a ficar mais vazio, não sobrando mais nada além de homens apreensivos, sem um teto e confusos.

Olhei para fora do círculo, além do mar de escuridão, e pude senti-las, as bestas sedentas por carne e sangue, apenas esperando para atravessarem e nos devorar.

— Atenção homens, levem todos os feridos para o meio do acampamento. Os que estiverem em condições de lutar ficarão em volta, protegendo a retaguarda um dos outros. Preciso que sejam fortes e não cedam às feras, pois se sentirem receio no meio da batalha, não haverá clemência por parte delas. Homens em formação! — gritei bem alto para que todos pudessem ouvir, e rapidamente todos os soldados começaram a se organizar.

— Lorde comandante, eu não tenho dúvida de sua capacidade de comandar, mas eu realmente não entendo o que pretende fazer — cochichou Sir Erwin em meu ouvido.

— Hahaha. Sir Erwin, tenho certeza de que ficará surpreso com a minha próxima ordem — respondi olhando em seus olhos, procurando sinal de fraqueza, mas assim como na fera, não encontrei.

Sir Erwin, um homem com todas as qualidades de um cavaleiro. Honrado, alto e forte. Cabelos loiros e olhos azuis como o mais profundo mar. Me lembro dos tempos de paz, de como ele era considerado ídolo entre o povo e principalmente entre as mulheres. Hoje isso não vale nada. Beleza, fama ou honra, no campo de batalha, não passam de coisas inúteis e fúteis.

— Capitão! — chamei Lorenk. — Mande que apaguem todas as tochas e lamparinas do acampamento, não quero nenhuma luz, apenas escuridão total. — Lorenk arregalou seus olhos azuis, incrédulo com tal ordem.

— C-Comandante, como nossos homens poderão lutar sem enxergar? Com certeza sucumbiremos sem luz. O senhor sabe que as feras são mais fortes na escuridão — disse Lorenk, pasmo com minha ordem. Até mesmo Erwin pareceu surpreso.

— Pensei ter dito antes para que obedecesse às minhas ordens sem questionamentos

— Mas Lorde Comandante, o que o senhor está pedindo é basicamente nos matar... — disse Lorenk, com ar de clemência. Os soldados, ouvindo nossa conversa, começaram a murmurar. Eu sei muito bem que uma ordem dessas pode trazer desconfiança, por isso, tive que agir rápido.

— Escutem seus frouxos de merda! — gritei o mais alto que pude. Acredito que até mesmo as feras tenham escutado. — Um cavaleiro que teme a escuridão, não merece o brasão do falcão em seu peito. Muito menos merece o par de bolas no vão das pernas. Vocês têm ouvidos? Pois bem, então por que precisam dos olhos para lutar? Nesta noite, ou seria neste dia, já perdi a noção de tempo nessa droga...

— É dia, senhor... — disse Bran.

— Obrigado Bran. — Acenei com a cabeça para o garoto. — Neste dia, vocês poderão ser lembrados por duas coisas; covardes, fracos e inúteis, que falharam na missão de acabar com as feras do reino e aceitaram morrer de fome dentro daquelas muralhas; ou como heróis, que deram seu próprio sangue e lutaram contra a própria morte e venceram. Vamos homens, apaguem as suas luzes, não temam a escuridão, pois Lumina, nosso Deus, está conosco, e a escuridão nunca vencerá a luz!

Eu nunca acreditei neste tal Deus da luz, Lumina. Para mim, se existisse, não seria diferente dos outros Deuses. Seria apenas mais um idiota, com poder e orgulho suficiente para tentar nos fazer o obedecer, como se fossemos ovelhas cegas.

Fitei aqueles homens e esperei suas reações tardias. Eu não era bom em discursos, mas sabia motivar quando queria. Eles confiavam em mim, o bastante para me seguirem para a morte, então só precisavam de um empurrãozinho. Assim que terminei o discurso, um dos cavaleiros gritou: "Pela luz sagrada de Lumina", em seguida de outro, e outro, até que todos estavam brandindo suas espadas e proferindo gritos de guerra.

Um a um, começaram a apagar suas tochas e lamparinas, até não sobrar nada além de escuridão. Aos poucos tudo fora ficando quieto, até que só se pudesse ouvir o sibilar do vento frio daquele dia, ou noite se preferir.

O silêncio não durou muito. Barulho de galhos sendo quebrados, junto com passos largos e pesados, reverberaram por todo o canto, cada vez mais e mais perto. Cada vez mais alto, podia-se ouvir rosnados e uma movimentação muito grande em meio às árvores. No horizonte escuro, começaram a aparecer olhos brancos e dentes amarelos. Senti a formação recuando. O medo exalando, tanto quanto o odor de mijo daqueles homens, me fez sentir que perderíamos a batalha em breve.

Os rosnados pararam de repente.

Um silêncio macabro entoou por todo o acampamento.

E então, uma fera atacou.

O silêncio rapidamente deu lugar a gritos de desespero, junto com rosnados e metal sendo estraçalhado.

— Fiquem firmes, não cedam ao medo, não cedam à escuridão. Hoje nos banharemos no sangue dessas bestas malditas! — gritei, enquanto girava a espada, decapitando uma fera que saltava à minha frente.

Sangue se esparramava para todo o lado, uma mistura de sangue de fera e sangue humano. Gritos de um lado, rosnados de outro. O barulho de espadas e garras se digladiando, isso para mim, era como... uma sinfonia. O calor da batalha, a emoção de ter sua vida e a vida de seus companheiros na ponta de uma espada, é aterrorizante e ao mesmo tempo extasiante.

Pude ouvir Raed lutando ao meu lado direito, com sua espada curva, cortando e fatiando a carne de tudo o que viesse em sua frente, seja homem ou fera. Pude sentir seu ódio por mim e pelas monstruosidades. Do lado esquerdo, podia ouvir Sir Erwin lutando majestosamente, chutando e estocando qualquer fera que tentasse passar pela barricada humana.

A luta parecia durar horas, mas passara apenas poucos minutos. Nosso número diminuía a cada segundo, junto com nossas forças. Eu não tinha escolhas. Eu queria poder esperar mais, mas sabia que não tínhamos mais tempo.

Saí da formação e corri em direção ao círculo de tralhas. Duas feras me cercaram, senti a garra de uma delas vindo na direção de meu pescoço. Desviei, me abaixando, e rapidamente subi a espada, decapitando o braço da fera. Antes que pudesse reagir, a outra pulou sobre minhas costas e fincou seus dentes em meu ombro. Eu não gritei de dor, pelo contrário, gritei de empolgação. Levei minha espada sobre as costas, perfurando a cabeça da besta maldita. Antes dela cair no chão, mais outras três vinham em minha direção.

Ao fundo pude ouvir meus homens me procurando, dizendo que fugi da batalha e que os deixei para morrer. Idiotas, mal sabiam que já estávamos todos mortos, era apenas questão de tempo.

Uma fera tentou agarrar meus pés, mas fui mais rápido e pulei, chutando a outra que vinha à minha frente. Caí pisando em cima da cabeça da fera que tentou me agarrar, e girei a espada cortando a outra que vinha ao meu lado. Aproveitando a brecha, corri em direção as tralhas. Peguei uma pedra do chão e usei contra a espada, gerando faíscas que acenderam o fogo ao entrar em contato com o óleo das lamparinas.

O círculo de fogo rapidamente foi se formando, envolvendo todo o acampamento e engolindo a escuridão. Pude ver os rostos de alívio momentâneo dos soldados ao voltarem a enxergar. Eu digo momentâneo, pois seria preferível que não enxergassem aquela cena. Estávamos totalmente cercados por centenas de feras. O chão tingia-se de vermelho, com misturas de vísceras humanas e de bestiais, reluzindo rubro à luz do fogaréu.

— Cavaleiros! — gritei, antes que eles pudessem gritar de terror. Então ergui minha espada, suja por sangue e pelo de fera. — As trevas sempre temeram a luz, também não é diferente com esses monstros. Hoje nós somos a luz, e hoje às faremos tremer e temer diante a fúria de nossas espadas. Lutem, lutem com tudo o que vocês têm, porque hoje a vitória será nossa. — Abaixei minha espada e assisti meus soldados avançarem contra as feras, que agora eram elas quem exalavam medo.

Finalmente todos entendiam.

Seu maior terror, seu maior temor.

Era a luz.

Caí de joelhos enquanto assistia meus soldados massacrando todas as feras, as quais tentavam desesperadamente fugir da luz do fogo. Uma empolgação tão grande tomou conta de mim. Não eu, mas apenas a manifestação dele. Seus resquícios, me assombrando novamente.

Aquele desgraçado sempre tentando se apossar de mim, tentando me tirar a consciência no calor da batalha. Sou conhecido como Sir Jack o louco não é por acaso. Passei minha mão na poça de sangue de fera no chão e pintei metade do meu rosto de vermelho. Virei a cabeça para trás e soltei uma gargalhada de empolgação. A chuva veio em boa hora para combinar com o momento. Ela apagaria o fogo, mas já não faria tanta diferença, visto que não sobravam muitas feras.

Senti algo queimando em minha cintura. Ah sim, aquilo. A caixa de joias. A maldita caixa de joias. Na verdade, não particularmente a caixa, mas o que havia dentro dela.

Levei minha mão até a cintura e peguei a caixa. A escuridão, as chamas, a chuva e o sangue. Tudo isso me fazia lembrar de seu conteúdo. Mas não podia abri-la, ou isso significaria meu fim, a volta de algo terrível. Significaria lembrar de tudo que já fui e já fiz, e isso, para mim, seria pior do que a própria morte.

Um brilho forte, ainda maior do que o fogo, reluzia em tons esverdeados, como jade ou esmeralda, emanando de dentro da caixa. Eu a sentia queimando em minha mão, mas não conseguia largar.

Ela me chamava. Cada vez mais forte, as vozes em minha cabeça aumentavam, cada vez mais, dizendo abra-a.

E eu abri.

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