CAPÍTULO UM
A floresta era escura, e eu não conseguia ver nada além de um par de olhos. Suas íris eram de cores diferentes; Uma em um tom tão claro quanto a luz da lua, a outra tão vermelha quando o sangue que escorria nos cantos da sua boca.
Eles me assustavam na mesma intensidade em que me causavam a estranha sensação de que eu estava seguro.
Desde que estivesse no alcance deles.
Eles me encararam, desviando sua atenção do corpo morto no chão, me incentivando a fugir para longe. E então eu começo a correr, batendo nos galhos que me feriam a pele. Meus pés descalços pisavam firme na terra úmida, deixando as minhas pegadas, enquanto algo me perseguia.
O barulho de galhos quebrando acima de mim era alto e forte, e aquele barulho me aterrorizava. E então, quando já não tenho mais fôlego e encosto em uma árvore...
── Eu acordo. ── falo, abrindo meus olhos e acordando aos poucos do transe.
Percebo que Allana está me encarando quando me levanto, sem fazer contato visual com ela, até que a ouço estalar os lábios e suspirar.
── Esses sonhos têm acontecido com que frequência?
Me ajeito no sofá e cruzo minhas pernas, sentando em cima delas.
── Começaram quando eu fiz quinze anos. Eu não conseguia ver muita coisa neles, mas conforme os anos foram passando, começaram a se tornar mais frequentes, e agora parecem... reais. Reais demais.
── Você me disse que em muitos desses sonhos, seu pai
── Ele não era meu pai ── a corto. ── Era um monstro.
── Certo. ── Allan anota algo em seu caderninho. ── Você me contou que ele tem aparecido nesses sonhos. Como são essas aparições?
── Morte. ── sussurrei. ── Ele está sempre no mesmo lugar, e na mesma posição. Completamente morto. E essa coisa... eu sinto que de alguma forma ela sempre tenta me proteger, mas também sinto que ela quer algo além disso.
── O que exatamente ela quer?
Encarei meus dedos, e então olho novamente para Allana.
── Vingança.
Haviam se passado apenas algumas horas desde que eu tinha saído da terapia.
Eu fazia aquela tortura três vezes por semana. Se me perguntassem se estava surtindo algum resultado, minha resposta seria não sem pensar duas vezes.
Desde que meu padrasto morreu, eu não tive mais uma vida normal.
O meu normal atualmente era fazer a terapia e frequentar a faculdade. Parte da minha mente havia deletado sozinha ── tal qual um hacker deleta tudo de um computador ── tudo o que passei na infância.
Eu não sabia como havia ido parar no meio daquela floresta, não sabia como ele tinha morrido, sequer sabia dizer meu nome quando a polícia me encontrou. Eu não sabia nem como eles haviam chegado até aquela mata.
Passei um ano trancado dentro de casa. Não queria sair, nem ver ninguém, nem fazer absolutamente nada que uma criança normal gostaria de fazer na minha idade. Me lembro da minha mãe tentar por várias vezes me tirar a força de dentro do quarto, dizendo que eu precisava lutar. Foi naquela época que ela descobriu as maravilhas que a terapia poderia fazer com pessoas como eu, e desde então eu tenho frequentado a mesma terapeuta desde os dez anos.
Os primeiros dois meses foram horríveis. Eu chegava em casa todos os dias depois das sessões chorando. Me trancava no quarto e recordava coisas que nem eu nem a minha mente queriam que eu lembrasse.
É parte do processo.
Era o que elas me diziam. Mas doía. Acabava comigo.
Foram longos meses até que aquelas coisas não me afetassem mais e eu pudesse voltar a ser metade do que eu era. Fiquei um ano inteiro sem frequentar as terapias, pensando que estava pronto, mas então tudo voltou. Forte, igual a uma tempestade brava, pronta para me destruir. Sonhos frequentes, que eu não sabia se eram apenas sonhos ou uma situação real. E ainda tinha aquele homem.
Um figura que eu não sabia quem era, mas que eu sentia que me rondava. Me protegia e me assombrava. Observava e possuía o desejo de caçar. E eu tinha certeza de eu era a sua presa. De qualquer forma, eu não sentia medo dele. Não conseguia sentir isso.
── Luke ── ouvi a voz da minha mãe me tirar dos meus pensamentos. ── Chegamos.
Olhei para o lado de fora, vendo o enorme prédio da faculdade. Joguei a alça da mochila em um dos ombros e saí, parando perto da porta ao lado dela.
── Até mais tarde. Qualquer coisa, é só me ligar. E se precisar dos seus remédios
── Mãe ── suspirei, sustentando um sorriso amigável. ── Eu to legal. Ok?
Ela sorriu de volta, assentindo e sibilando um Ok antes de me deixar ir.
Em uma conversa com minha mãe e minha psiquiatra, elas entraram na conversa sobre faculdade. A regra que estipulei para voltar a estudar era a de que Allana me deixaria livre dos coquetéis de remédios e os vários calmantes que eu tomava. Quando as duas se olharam e Allana pensou em dizer que aquilo não era uma boa ideia, eu aleguei que não conseguiria me formar se ficasse andando por ai parecendo um morto vivo, e elas aceitaram.
Ambas tinham medo de que eu tivesse uma recaída devido os sonhos, mas nunca aconteceu. Mesmo com eles, eu conseguia me manter tranquilo só com as sessões ── que agora haviam aumentado um dia a mais. Era um preço justo a se pagar por ficar sem os remédios. Qualquer coisa era melhor do que aquela realidade.
── Luke! ── parei perto da escada e vi Apollo acenar para mim.
Ele se aproximou e quando pensei que me cumprimentaria com um toque, como sempre fazia, seus braços grossos e fortes me agarraram pela cintura e eu me vi sendo erguido por um cara com mais de dois metros de altura.
Apollo era facilmente confundido com um cara que estava estudando para um dia entrar em algum time de basquete profissional, quando na verdade sua paixão era a medicina veterinária. O porte físico dele era de causar inveja até em pessoas como eu, que estavam felizes com seu corpinho de minhoca.
Além de ser puro músculo, Apollo era lindo.
Os cabelos castanhos cacheados combinavam perfeitamente com a pele morena, que permanecia reluzente mesmo em um frio como o que fazia naquela cidade. Ele também não era só corpo e beleza. Apollo era simpático, bem humorado mesmo com quem não merecia sua atenção e popular entre alguns grupos da faculdade. Era o combo completo e eu me sentia sortudo por andar com alguém igual ele.
── Você está animado hoje. Mais animado que o seu normal. ── falei assim que ele me colocou de volta no chão.
── Sabe a Cat?
── Aquela garota que você jurou que parecia estar muito, muito, muito afim de você só porque ela fez a gentileza de te comprar um café como desculpa por ter esbarrado em você e derrubado o seu?
── O jeito que você diz me faz parecer uma pessoa extremamente emocionada, Luke. ── rebateu, cruzando os braços.
Coloquei a mão na frente da boca, contendo uma risada.
Começamos a caminhar em direção ao segundo andar, onde nossas salas ficavam. Embora não fôssemos da mesma turma ── eu cursava psicologia, e não, Allana não tinha me influenciado na decisão ── Apollo e eu tinhamos até que um tempo generoso entre os tempos para nos colocarmos a par sobre a vida um do outro.
── Emocionado ou não, isso não importa. Mas adivinha? Por alguma razão ela me mandou uma mensagem e nós começamos a conversar.
── Magicamente? ── levantei uma sobrancelha.
── Ela disse que me achou um cara bonito, conversou com algumas amigas dela e conseguiu o meu número.
── Quer esfregar na minha cara que você é um partidão, é? ── brinquei, abrindo a porta da sala de aula para entrar.
Apollo continuou me seguindo, e então se sentou em cima de uma das mesas. Fiz o mesmo.
── Ela me convidou para uma festa que vai rolar em uma reserva natural um pouco afastada da cidade.
── Ela te convidou para uma festa que vai rolar no meio do mato? ── ele assentiu. ── A quanto tempo ta conversando com ela?
── Uns dois dias, mais ou menos.
── Tem certeza que essa garota não vai te matar quando você chegar lá e oferecer sua alma como sacrifício em um ritual? ── Apollo arregalou os olhos e eu não contive minha risada.
Ele socou meu ombro de leve, rindo em seguida.
── Engraçadinho. Eu tava pensando em convidar você. O que acha?
Parei de rir.
── Essa festa tinha que ser no meio do mato? Florestas não são muito a minha praia.
── Por favooor. Não vai ter muita gente que eu conheço por lá. Ela é de outra instituição e não conhece muitas pessoas daqui. ── insistiu. ── Eu preciso do um apoio emocional lá para me dar força.
── Quer meu apoio emocional pra conseguir transar com ela? ── questionei, cruzando meus braços. Apollo me olhou com uma cara de cachorro que caiu da mudança, fazendo bico. Suspirei. ── Ta bom. Eu vou.
── Legal!
── Mas você vai me buscar. E eu não vou ficar de vela.
Ele assentiu, agarrando minhas bochechas para dar um beijo nela. O sinal tocou e ele foi para sua sala.
* * *
Se pelo menos o lugar onde eu estivesse sentado fosse um sofá macio de uma balada qualquer e não um tronco podre e velho de uma árvore caída no chão, estaria de bom humor e até tentaria me socializar com alguém.
Fazia apenas alguns minutos que Apollo e eu havíamos chegado na festa. Ele não brincou quando disse que o lugar era afastado da cidade, mas eu pensei que o afastado dele fosse apenas alguns minutos, e não horas. Agora eu estava segurando uma garrafa com uma bebida gaseificada sabor limão, de mal humor, um celular no bolso e um sonho; Ir pra casa.
Tinha certeza que minha mãe estava aproveitando melhor a noite dela. As duas caixas de pizza que o entregador entregou para ela quando eu estava saindo não mentiam.
Quando chegamos, Cat foi logo nos apresentando para alguns dos amigos. A garota era muita desenrolada quanto a assunto, e parecia conhecer todo mundo e ser amiga de todos. Não era nada do que eu pensei que fosse, o que era bom. Apollo era legal demais pra ficar com alguém que não fosse pelo menos metade do que ele era. Ele merecia alguém legal como ele.
Depois de alguns minutos de conversa, ele e Cat se afastaram do pessoal e eu não duvidei de que naquele momento eles estivessem se pegando em algum lugar. Ela olhava para ele como se Apollo fosse algum Deus Grego, secando os músculos do braço dele que estavam quase estourando na camisa social.
Aquela camisa dele foi motivo de grande discussão entre nós dois durante o caminho. Falei que ele estava bonito demais para uma festa daquele tipo e que Cat não aprovaria aquele visual, e que ele seria o único mais bem socialmente vestido ali. Ele riu, dizendo que eu estava sendo muito ranzinza.
Eu não tinha culpa.
Ninguém quer ir para uma festa em plena segunda feira quando se tem o resto de uma semana inteira de estudos pela frente. Eu acordaria no dia seguinte parecendo um zumbi.
Peguei meu celular e vi que ainda era meia noite. Nenhuma mensagem de Apollo me contando como a situação estava indo ── embora eu não estivesse esperando uma naquele exato momento ── , uma da minha mãe dizendo que estaria com o celular no alto caso eu ligasse para que ela fosse me buscar e uma de Allana, avisando que a próxima sessão foi remarcada para outro dia.
── Nada de importante. ── cochichei, guardando o aparelho e soltando um longo suspiro.
O tédio estava me consumindo, então tive uma ideia. Bebi o último gole da garrafa e me levantei.
Certo dia, Allana mencionou algo do tipo se quiser vencer seus medos, você precisa enfrentá-los.
Andei no meio das pessoas que dançavam perto do carro com grandes caixas de som dentro do porta malas e fui indo em direção a floresta.
Queria ficar longe de todo aquele barulho de música alta e pessoas conversando só por algumas horas. Apollo notaria o meu sumiço e assim que me mandasse uma mensagem eu voltaria.
Eu só não esperava ficar perdido depois de apenas alguns segundos andando em linha reta.
Parecia que eu havia atravessado algum tipo de portal que me levou para outro universo, porquê aquela floresta não aparentava ser a mesma de segundos atrás. Eu notei que havia me perdido quando passei duas vezes pela mesma árvore com tronco grosso e uma galho quebrado.
Os pinheiros eram muito altos, e não tinha como eu mentir; O lugar era bonito. Mas o constante quebra quebra de galhos no alto e a folhagem das copas das árvores maiores balançando com o vento começaram a me causar uma sensação estranha. Algo quase parecido com paz, mas também a sensação de que algo ou alguém me cercava.
A luz da lua iluminava alguns pontos do caminho, me permitindo ver o que pareciam ser borboletas azuis à minha frente. Suas asas eram lindas, o azul claro brilhava toda vez que a luz batia nelas.
Fui seguindo-as e me aproximei vagarosamente de uma. Estendi minha mão, permitindo que uma delas pousasse na ponta do meu dedo.
Observei-a bater suas asas mais algumas vezes, e então se afastar. Todas seguiram o mesmo caminho que ela fez, se juntando e pousando em cima de algo que parecia ser um galho muito fino.
Cheguei perto e notei que algo brilhava neles, estreitei meus olhos para tentar ver melhor e vi o que pareciam ser três colares feitos de pérolas, enrolados nos galhos.
Quando me aproximei e os toquei, recebi a resposta de que aquilo não era um galho, mas sim um par de chifres. Olhos amarelos e brilhantes me encararam como se estivessem olhando diretamente para a minha alma.
Me afastei rapidamente, jogando meu corpo para trás e caindo de bunda no chão. O que quer que fosse aquela criatura, se tornou enorme quando levantou, espantando todas as borboletas que estavam sentadas nela.
Todas vieram para cima de mim. Eu ergui minhas mãos e comecei a abana-las para que saíssem da minha frente.
A coisa pareceu não gostar da minha atitude, pois se colocou de quatro no chão ── me dando visão para suas longas garras negras ── e rornou para mim. O barulho foi ensurdecedor. Me levantei, ainda tonto, e comecei a correr. O zumbido alto que vinha do meu ouvido era horrível e começou a me deixar enjoado.
Olhei para trás, tentando ver se aquela coisa me seguia, e senti uma pancada forte na minha cabeça quando virei para frente. Cai no chão, vendo o tronco que me atingiu se transformar em dois, assim como a lua e as árvores. Passei minha mão na testa e vi o sangue nela, então girei meu corpo para o lado.
Bem longe, eu o via se aproximar de mim, envolto por uma aura que me dizia que o meu fim estava próximo.
Aos poucos, meus olhos se fecharam. Não vi mais nada.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top