Capítulo 52

— Ainda bem que você chegou — a enfermeira Aline disse com um sorriso fraco assim que me viu na entrada da enfermaria onde James se encontrava. — Ele está muito agitado e ansioso. O médico precisou aumentar a dose do remédio para ele dormir essa noite.

— Ele já sabe da alta? — questionei apertando minhas mãos tentando encontrar coragem em meio às minhas intensas dúvidas.

— Sim, soube. E também recebeu o boletim médico completo. — A mulher dos cabelos cor de caramelo cujos fios estavam bem presos no coque me olhou com piedade. Minhas constantes idas ali já tinham dado oportunidade para compartilhar muitas coisas, inclusive detalhes da minha confusa vida matrimonial. — Sinto muito, Amber.

— Obrigada — respondi com um meneio de cabeça.

— Bem, não vou segurá-los mais. Acredito que sua visita fará bem a ele.

Quando ela se despediu e voltou ao seu trabalho, encarei o pastor V. Junior ao meu lado. Ele parecia compreender bem todos os meus temores, o que não seria muito difícil, uma vez que se tornara meu conselheiro pessoal nos últimos meses. Aliás, a chegada do pastor era fruto da graça e misericórdia de Deus em minha vida. Ainda me recordo quando nosso antigo pastor Sérgio foi designado para outra cidade e um novo pastor chegou para assumir o cargo. Voddie Junior não passava despercebido em lugar algum, seja pela estrutura alta e grande, seja pela carisma e amor piedoso que o senhor exalava. A verdade é que ele tinha um carinho especial em relação ao contexto familiar cristão e eu fui uma das felizardas ao receber acompanhamento de perto com sessões de aconselhamento pastoral semanais. Não foi difícil abrir meu coração e receber consolo numa perspectiva bíblica em nossos encontros.

O pastor, entendendo exatamente os meus sentimentos, apertou levemente meu ombro direito e com um olhar amoroso, apenas disse:

— Acho que vou em busca de um café. Volto daqui a pouco. Estarei orando por você.

— Obrigada, pastor. Preciso das orações. Confesso que ainda não estou segura da minha decisão.

— Seja ela qual for, estaremos aqui para apoiá-la — disse referindo-se a esposa dele, a mulher virtuosa que cumpria o papel de Tito 2 e me ensinava a ser uma mulher piedosa segundo as Escrituras, e também à igreja, que aprendeu a me acolher apesar das minhas escolhas erradas do passado e dos crimes do meu marido.

Fui deixada à sós, respirei fundo e dei alguns passos em direção à porta aberta do quarto 402. Logo que adentrei, vi James ocupando a única maca do lugar onde ele permaneceu nos últimos dias, desde quando havia recebido alta do CTI. O guarda que o acompanhava me viu primeiro e, com a simpatia já demonstrada outras vezes, deixou claro que daria espaço para que tivéssemos privacidade suficiente para conversarmos e saiu, permanecendo na porta.

James estava olhando em direção à janela, o olhar perdido. Logo voltou a si, movendo a cabeça em minha direção quando percebeu a movimentação ao redor. Ele não sorriu, como havia feito algumas vezes durante minhas visitas passadas, mas vi em seus olhos uma emoção diferente. Ele estava visivelmente alterado.

Aquele olhar derrotado, de um homem completamente acabado, humilhado e que havia perdido praticamente tudo na vida, encheu meu coração de compaixão e ali eu decidi me dispor completamente caso fosse essa a vontade de Deus. Fiz uma breve oração silenciosa e me aproximei da maca, lentamente.

— Oi — disse apenas, sabendo que perguntar como ele estava seria desnecessário.

Faltavam palavras naquele momento, eu sabia. Por isso segurei a mão dele e apertei suavemente.

— Você já soube? — ele indagou com a voz embargada. — Soube do castigo que Deus me deu por ter magoado você e todos ao meu redor?

— Não fale assim, James — pedi sabendo que não deveria deixar a melancolia tomar conta dele ou seria ainda mais pesado o processo. — Você vai receber alta, poderá sair daqui e...

— Para que, Amber? — ele me interrompeu e apesar da firmeza na voz, eu percebi que ele segurava uma tristeza muito grande. — Para saber que eu não tenho lar? Que não tenho ninguém? Que não tenho nem uma casa para voltar? Minha mãe se foi, desgostada com o filho bandido. Meu irmão está casado e feliz, não quer um inválido atrapalhando sua vida. E eu perdi minha esposa e meu filho. Não compreendo porque o seu Deus não permitiu a minha morte naquele dia. Seria muito menos humilhante morrer numa emboscada de bandidos rivais com uma cadeirada do que ter que passar a vida toda dependendo de alguém até para trocar minhas fraldas. Aliás, eu nem tenho quem faça isso por mim. E a culpa é toda minha.

James soltou a mão da minha com certa brutalidade e a cruzou com a outra em cima do corpo imóvel. Embora aquele homem já tivesse feito tanto mal para mim, era impossível não me condoer com sua infelicidade. Ele tinha errado e muito e estava colhendo as consequências de seus pecados, contudo, era um ser humano e se encontrava numa terrível situação.

— Eu nem sei porque você está aqui, Amber. Você deixou claro que me visita apenas por pena e, sinceramente, eu não preciso de sua pena, tampouco das falsas esperanças que sua presença me dá.

— Eu estou aqui — falei tomando coragem quando percebi que ele me repelia por causa do sofrimento — porque ainda sou sua esposa, mãe de seu filho e sinto que tenho deveres com você.

— Eu não quero seu dever, Amber. Se é para isso que está aqui, para deixar claro o quanto é superior a mim, dê meia volta e não precisa mais aparecer.

Fechei os olhos com força puxando o ar. Eu sabia que James assumia aquela postura quando se sentia humilhado, mas já havia decidido que não permitiria que ele me tratasse assim, não quando as minhas intenções eram as melhores em relação a ele.

— Escuta aqui, James Bonde — eu disse com a voz firme erguendo a cabeça —, se você pensa que vou aceitar você me tratar dessa maneira, sinto muito, mas eu não vou. Acontece que, você querendo ou não, eu sou a única pessoa nessa terra que ainda se importa com você. Nem mesmo seus ditos amigos, embora tenha demonstrado um traço de solidariedade o visitando, vão estar a disposição para te ajudar. Você não tem ninguém, e isso se dá justamente por causa de suas escolhas e de seu jeito ignorante de agir, mas eu estou aqui, seja movida pela pena, seja pelo dever, seja pela minha disposição com Deus em ser útil ao homem que um dia eu fiz uma aliança que ele pouco se importou de cumprir. Mas, se você pensa que eu vou ficar aqui e aturar esse seu orgulho ferido e sua ignorância, sinto muito, mas isso eu não vou. Já se passou o tempo em que eu aceitava suas humilhações. Se está tão bem sozinho, boa sorte.

Ajustei a alça da minha bolsa e sem pestanejar virei-me para sair. Foi quando ouvi um murmúrio, meu nome sendo pronunciado seguido de um soluço. Parei, soltei o ar e me virei a tempo de ver James se derramando em lágrimas.

— Me desculpe, por favor, Amber. Não me deixe, só tenho você e o John Paul no mundo. Por favor, eu aceito o que é que você quiser me oferecer.

Fiquei parada por algum tempo encarando-o. Orei mais uma vez a Deus pedindo sabedoria e clamando para que Ele não me permitesse tomar uma decisão errada, mas dispondo mais uma vez minha vida. Depois, deixei a bolsa na cadeira ao lado da maca e voltei para o lado de James, aceitando a mão que ele me estendia.

— Eu sinto, tanto, Amber. Sinto tanta culpa quando vejo você. Eu queria poder voltar atrás e fazer tudo diferente. Eu juro que faria. Eu amo você de verdade.

— Ah, James! Eu e você sabemos que você não faria diferente, porque não depende de suas palavras. Você está preso em seus pecados, morto em seus delitos. Você precisa de Cristo, precisa que o Senhor regenere seu coração, James. Seu amor por mim não é suficiente, mas o de Cristo na cruz sim. O perdão dele é suficiente para perdoar todos os seus pecados, mas você precisa se arrepender, precisa buscar Nele a salvação para se lavar de todos os pecados.

James fez silêncio. Nós já tínhamos tido tal conversa algumas vezes e ele sempre permanecia calado. A culpa que carregava era imensa, mas não havia o arrependimento que apenas o Espírito podia produzir em sua vida, e isso, eu sabia, não dependia do meu querer, tampouco do dele. Dependia do agir do Senhor. Por isso, eu estava sempre pregando a Palavra e orando para que a semente desse um fruto verdadeiro dessa vez, ainda que por vezes me sentisse desanimada por não ver nenhum resultado.

Era nessas horas que me recordava do versículo de 1 Coríntios 7:16. "Pois você, ó mulher, como sabe se salvará o seu marido? Ou você, ó marido, como sabe se salvará a sua mulher?". Eu havia sido ingênua em achar que meu amor um dia transformaria um homem e que a salvação dele dependia unicamente de minha influência. E não era isso que a Bíblia dizia, e eu saberia se não tivesse com minhas afeições longes de meu Criador e muito perto dos meus desejos carnais.

Mas James era o pai do meu filho e ainda era meu marido. Eu não pretendia desistir de suplicar a Deus por sua salvação e ter esperança de que Deus o resgatasse.

James parou de chorar e eu busquei um papel para ele assoar o nariz. Ele agradeceu e aproveitou o momento para beijar minha mão. Fiquei um pouco constrangida com o ato, me recordando de momentos nossos do passado.

— O Dr. Antunes me informou que você vai poder cumprir prisão domiciliar, não precisará retornar para a cadeia.

— Essa não é uma notícia tão boa como você faz parecer ser. A verdade é que não querem um inválido que precisará de cuidados constantes dando trabalho para eles. Me enviaram para casa, para eu ser problema de outro, mas esqueceram de um pequeno detalhe: eu não tenho casa e não tenho outro.

— O médico me disse que embora no momento a situação seja crítica, ainda há a possibilidade de que melhore um pouco as sequelas. O Dr. Vitor estava me contando o caso de um paciente que o caso era bem mais grave que o seu e reverteu bastante. — Tentei animar ele com minhas palavras, recordando como o próprio médico havia me animado um pouco após contar sobre as limitações dos movimentos de James. — Ele hoje tem até certa independência na cadeira de rodas. Nós precisamos ficar confiantes de que com seu esforço, os cuidados necessários e com as fisioterapias o seu quadro mude, James.

— Amber, eu só consigo mexer meu pescoço e braços, o restante eu sequer sinto. Você não sabe como é insuportável tentar sentir suas pernas e não conseguir. Desejar se levantar e não poder. Eu não consigo ter esperanças. A realidade é essa, eu serei para sempre dependente de alguém, até mesmo para ajustar minhas cobertas.

— Oh, James, eu sinto tanto por você.

Minha garganta travou. Eu realmente sentia. E tive um daqueles momentos em que eu desejava que tudo tivesse sido diferente. Que ele tivesse se convertido de verdade, que não tivesse voltado ao Morro, não tivesse assaltado aquela maldita relojoaria, não fosse preso e duramente espancado na cadeia por um grupo do morro rival até desfalecer depois de receber tanta cadeiradas nas costas. Como eu queria que tudo tivesse sido apenas um sonho e eu pudesse ter uma família normal. Meu filho ter um pai presente que falasse de Cristo e o ensinasse a andar no Caminho.

Mas a realidade era que James e eu estávamos colhendo as consequências de nossos próprios pecados. E, embora eu tivesse a certeza de que Deus me perdoara e eu era uma nova mulher, eu ainda colheria os frutos da minha escolha errada em seguir meu coração e desejos próprios. E pior, meu filho também sofreria com aquilo. A diferença era que essa colheita era acompanhada da misericórdia e graça de Deus que me ajudava a encarar tudo com olhos da fé e sabendo que o Senhor estava trabalhando em mim para me tornar mais parecida com Cristo, enquanto ele nem esse consolo tinha.

E talvez por isso a ideia de levar James para morar comigo tenha surgido. Não mais de um sentimento carnal e humano, de uma vontade em comer das migalhas de amor e atenção que ele poderia me oferecer. Não. Eu já tinha encontrado aquilo em Cristo. E era por amor ao meu Deus que me ensinava amar ao próximo e ao meu inimigo que, depois de perdoar James com sinceridade, eu podia pensar na possibilidade de doar minha vida para cuidar daquele homem miserável que não tinha ninguém e, querendo ou não, era o pai do meu filho e meu marido.

— Você tem um lugar para voltar. Eu tenho um apartamento, não é muito grande, mas com algumas mudanças acredito que você ficará bem instalado.

James fitou no fundo dos meus olhos, completamente surpreso.

— Amber você... Amber, você realmente... Amber... Não brinque comigo, Amber!

Umideci os lábios sabendo do peso das minhas palavras.

— Eu conversei com o pastor, com meus pais e com o Dr. Antunes e sugeri que você ficasse por lá. Eu sei que você não tem para onde ir e bem... Você é pai do John Paul e nós já fomos casados. Nós somos casados ainda no papel, na verdade. Enfim, eu não poderia abandonar você assim, de qualquer jeito. Ao menos até vermos uma melhora, ou você conseguir alguma independência.

— Amber, eu posso nunca conseguir essa independência — ele falou ainda me encarando profundamente.

Fechei os olhos por um momento e mordi o lábio inferior.

— Eu sei — declarei. — Mas vamos torcer por sua melhora.

James me puxou para perto de si e permiti que ele me abraçasse. Era o nosso primeiro abraço sincero desde quando nos separamos e havia ali algo muito diferente. Eu conseguia ter misericórdia e um amor distinto. Quando nos afastamos, ele murmurou que não merecia tal tratamento e aproveitei a deixa para colocar todos os pratos na mesa.

— Quero esclarecer para você algumas coisas. Primeiro, eu o estou recebendo em minha casa num caráter de amizade. Embora não tenhamos nos separado oficialmente, eu não pretendo dar falsas esperanças de que me tornarei sua mulher novamente. Não é essa a minha intenção.

James balançou a cabeça concordando, apesar de eu ter certeza de que ele não acreditava nas minhas palavras.

— Segundo, não pense que aceitarei ser tratada da maneira como fui tratada no passado. Não hesitarei por um instante sequer em te mandar  para sabe-se lá onde quer que seja, se tentar manter a ideia de que pode me maltratar, seja com suas palavras, sua grosseria, suas atitudes. Eu não vou tolerar isso. Entendeu?

James fez que sim com a cabeça e dessa vez, diante da minha firmeza, eu soube que ele não pensou que poderia me driblar.

E ele etava certo. Eu não aceitaria qualquer tipo de relacionamento abusivo como uma vez tinha aceitado no passado, até porque, minha segurança e valor estava firmada em Cristo e sua Cruz, não mais no valor que um homem me dava. Esse era um ponto inegociável, eu tinha ponderado muito com o auxílio do pastor e sua esposa em relação a ele e chegado a conclusão de que ao menos isso eu havia superado, com a graça de Deus.

— E a casa é minha, então, minhas regras. Você deverá segui-las, e isso inclui abster de palavras torpes, de qualquer coisa que fira a santidade de Deus, seja na TV, na Internet ou o que quer que você faça para passar o tempo. Também espero que saiba que em nossa casa temos orações, cultos domésticos e eu ensino o John a seguir às Escrituras e não gostaria que ninguém, nem mesmo o pai, interfira nessa educação. Você acha que pode lidar com isso, James?

Eu o encarei esperando que ele compreendesse exatamente o quanto eu seria radical sobre esse assunto em especial. Não tinha decidido o quanto de contato eu permitiria que ele tivesse com nosso filho, porque ainda tinha medo da influência negativa que James poderia exercer em John Paul. Mas, foi minha mãe quem me lembrou que James estaria completamente limitado e eu estaria no controle do quanto eles interagiriam e poderia facilmente impedir um contato maior. Confesso que a limitação de James foi um dos principais motivos para eu me sentir segura, uma vez que acamado e dependente, ele estaria longe de fazer o que quisesse.

— Eu aceito suas condições, Amber. Aceitarei cada uma delas, embora deva alertar que não sei se consigo atender algum dia às suas expectativas de me tornar o homem que você merece.

Afastei-me um pouco e cruzei os braços em frente ao meu peitoral.

— Eu não tenho expectativas, James. Eu estou disposta a cuidar de você, e dessa vez estou ciente de quem você é.

Falar aquelas palavras foi como uma verdadeira libertação para mim. Percebi como eu estava segura em Cristo e nem mesmo o olhar de James era capaz de mudar minha convicção naquilo que eu cria.

Eu não sabia, na realidade, a extensão dos problemas que viriam depois disso. Não imaginava exatamente o quanto aquela atitude minha me privaria de tantas coisas e acrescentaria dias de mais lutas em nossas vidas. Não tinha sequer ideia do quanto eu precisaria me doar e dobrar para cuidar do homem ao meu lado. Não imaginava quantas lágrimas ainda seriam derramadas, quantas orações seriam feitas e quantas súplicas. Mas, eu tinha certeza, naquele momento, que estava fazendo a coisa certa.

E mais tarde eu saberia o quanto cada lágrima valeria. Enxergaria Deus trabalhando em meu ser através de todas as dificuldades vindouras para forjar o meu caráter em Cristo, para me ensinar a confiar Nele e me doar por inteira para a Glória de Seu nome.

— Obrigada, Amber — James agradeceu com sinceridade.

Dei um sorriso e fomos interrompidos pelo pastor Voddie que entrou no quarto e foi direto a encontro de James, já com suas típicas palavras firmes e amorosas. Eu me afastei e ao tirar meu celular da bolsa me deparei com a foto de John Paul, e decidi que era hora de recomeçar e deixar James aproveitar um pouco do que lhe restou na vida.

Em breve ele conheceria o filho. Não seriam mais apenas fotografias.

....

J. P.

Então, pessoal. Chegamos ao fim dessa jornada! Esse é o último capítulo. Teremos apenas o Epílogo que trará o grande desfecho dessa trama.

Esperamos que tenham gostado do rumo talvez um tanto inesperado que se conduziu, mas há uma grande mensagem por trás dessa fic. Esperamos, sinceramente, que vocês tenham entendido exatamente o ponto por trás de tudo isso.

Depois do Epílogo, que esperamos postar em breve, pedimos que leiam as notas finais. Já preparamos para nos despedir e agradecemos a cada um leitor que chegou até aqui.

Com amor,
Equipe Paixão e Pureza.

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