Capítulo 33
Uma hora depois de meu pai ter voltado à Vila Capivari, mamãe e eu permanecemos sentadas à mesa. Estou ajudando-a a escolher os feijões que vamos comer no jantar daqui a pouco, e relembrar uma tarefa que costumávamos fazer juntas me dá uma sensação reconfortante.
— Nossa, você continua rápida — mostro os dentes quando ela repara meus dedos atirando numa lata vazia de molho de tomate os grãos murchos e outras pequenas impurezas. As pedrinhas tilintam no fundo da latinha.
— Quando tenho tempo, eu ajudo minha colega de quarto a separar os feijões bons dos ruins — informo.
Os olhos de mamãe se estreitam. Primeiro ela apoia os cotovelos na mesa, me olhando como se quisesse enxergar minha alma.
— Quantos anos tem essa sua colega de quarto?
— Dezenove. Por quê?
— Ela é uma moça bem comportada?
— Mãe, a Jordana é uma das melhores pessoas que eu conheci na Letícia Ballet. Ela é crente da Congregação Cristã no Brasil, e quando não está fazendo balé, está lendo a Bíblia.
— Mas o fato dela usar saia e véu não quer dizer que ela é uma boa pessoa.
— Não precisa ficar desconfiada, dona Marina. Ninguém vai me pôr no mau caminho.
Posso ir sozinha por esse caminho, completo a frase mentalmente.
É até hilário minha mãe achar que Jordana pode ser uma má influência pra mim, já que a ruiva ainda é virgem, e não diz nem palavrão de tanto que tem medo de ser castigada por Deus.
Religiões são invenções estranhas dos homens. Jordana me contou um dia que os pais dela não tinham televisão na casa, pois acreditavam se tratar de uma invenção do maligno, e que até os catorze anos nunca cortou o cabelo, deixando-o crescer até a bunda. Claro que ela não usou a palavra bunda
Mamãe dá um sorriso, dando um voto de confiança às minhas palavras.
Um silêncio curto e opressivo interrompe nossa conversa. Me ocorre que preciso pavimentar o caminho para contar a ela que estou namorando, mas não sei como. Mas será que não seria mais fácil se eu o fizesse sem rodeios.
— À que horas o Cadu volta?
Minha mãe balança a cabeça, rindo.
— Você me perguntou isso assim que entrou.
— Ah! Eu esqueci.
— Ele volta às dez.
— Puxa. Tarde.
O barulho da água começando a ferver atrai a atenção de mamãe, que arrasta para trás a cadeira de madeira e se levanta. Ela não tem pressa em despejar sobre o pó. O cheiro do café coado na hora invade minhas narinas instantaneamente, fazendo eu suspirar de satisfação.
É um dos odores que eu mais gosto de sentir, mas nos últimos dias descobri como é prazeroso sentir outros tipos de cheiro. Mas só posso dividir essas impressões com pessoas da minha idade ou com pessoas que não me julguem.
Mamãe volta com um copo de café na mão, senta-se à mesa e bebe um gole. Meus olhos encontram os dela e não sei dizer por que capto neles uma névoa de aflição.
— O que foi? — pergunto.
O ar foge por entre os lábios dela.
— Seu irmão vai ser pai.
Se eu estivesse comendo o pedaço de pão caseiro que minha mãe fez, teria engasgado.
— O quê? — pergunto para ter certeza se não ouvi mal.
— É o que você ouviu. Você ganhar um sobrinho.
— Mãe, não tem graça. A senhora só pode estar brincando. O Cadu, pai? — abano a cabeça para os lados. — Não. Não pode ser verdade.
Dou uma risada nervosa e mantenho os olhos fixos na minha mãe, esperando que ela confirme o engodo. Mas a seriedade de seu rosto, seus olhos aflitos, não deixam pairar nenhuma dúvida de que é verdade: eu vou ser tia.
— Como aconteceu isso? — mal faço a pergunta, já me sinto uma idiota. Basta que um pênis ejacule numa vagina para que a mágica aconteça.
— Ah, Bombom…! — mamãe leva a mão à testa. — Seu irmão conheceu uma menina em Santo Antônio do Pinhal. Ela é operadora de caixa no supermercado onde ele trabalha. A firma deu uma festa de confraternização numa pousada, e como os dois já vinham se paquerando…, como os dois haviam bebido um pouco…
Peço com um olhar suplicante que minha mãe não continue, a fim de que se poupe.
Suspiro irritada.
— Eu converso com ele quase toda semana e ele não me contou — espalmo as mãos na superfície da mesa. — Quando vocês ficaram sabendo? Quando iam me dar essa notícia.
Mamãe segura minha mão, delineia um sorriso amoroso com uma pequena sombra de melancolia.
— Soubemos no dia em que você foi para a Argentina. Achamos melhor não te contar, a fim de não atrapalhar sua concentração.
Balanço a cabeça em concordância; por um momento me arrependo por meu súbito ataque de raiva.
Os sonhos que eu vinha tendo com meu irmão, aquele aperto que eu sentia no peito pensando que talvez ele estivesse precisando de ajuda… Tudo isso encontrou seu denominador comum.
— O papai sabe? — Cadu e Marcelo nunca tiveram uma afinidade igual a que nós temos.
Mamãe afirma com um aceno.
— Ele recriminou demais o seu irmão, chamou-o de moleque. Sabe como seu pai é. Franco, explosivo. Mas duas horas depois, se sentou no sofá ao lado do seu irmão e fez uma coisa que nunca vou esquecer: o abraçou. Os dois choraram juntos, e seu pai prometeu que o ajudaria no que fosse preciso para ajudá-lo a cuidar da criança.
Ouvir essas palavras da minha mãe devolve o calor ao meu coração. Queria ter visto essa cena, queria ter participado. Todo esse tempo em que estive fora, imersa no meu mundo particular, fiquei à margem de um momento tão importante para a minha família.
Ser bailarina significa renunciar à muita coisa importante pra ela. Mas a minha família sempre foi importante pra mim. E por mais que eu esteja puta por Cadu não ter me contado que vai ser pai, estou feliz por saber que logo vou ganhar um sobrinho. Ou uma sobrinha.
— Não tô acreditando — junto as mãos em prece diante dos lábios. — Vou ser tia.
— E eu, que não queria ser avó antes de você e o Cadu casarem — não há lamentação na voz de Marina, apenas uma ironia com um tom de resignação. — Ainda bem que você é ajuizada — ela sorri ao segurar minha mão.
Meu sorriso se desmancha quando lembro que tenho um comunicado a fazer. Não que eu me sinta obrigada a isso, afinal Odin e eu estamos nos conhecendo. Mas não gosto de fazer nada escondida. E eu sempre me abri com minha mãe.
Tem coisas que ainda não estou pronta para contar, como por exemplo, sobre o que aconteceu entre o Léo e eu. Um dia teria que acontecer. Afinal, tenho já dezesseis anos, e não sou uma moça protestante como a Jordana – que vê o sexo antes do casamento como algo bestial, uma tentação que deve ser evitada.
Mas Odin não pode ser um segredo. Não é justo com nós dois.
— Mãe — sinto um bolo na garganta —, eu tenho uma coisa pra falar.
Os olhos dela fitam os meus, em espera.
— Eu tô namorando — falo sem rodeios.
O semblante de minha mãe se modifica instantaneamente. Sua mão se solta da minha.
— Como assim? Você sempre dizia que queria dançar muito antes de ter compromisso com alguém — não há julgamento em sua voz, apenas surpresa.
O tom de voz dela me faz supôr que a direção da nossa conversa não tomará um rumo difícil.
— Eu conheci um garoto. Ele é filho da dona da Promoarte. A gente começou a trocar ideia, gostou um do outro, e domingo passado me pediu em namoro — dou um sorriso.
Minha mãe abana a cabeça, um sorriso de repente se formando em seu rosto.
— Você e o Cadu combinaram de aprontar, não é, menina?
Reajo com uma risada discreta à observação que mamãe faz. Parece mesmo que combinamos. Mas não vou ser idiota igual ele. Não pretendo ficar grávida. Ser mãe não faz parte do meu projeto de vida.
— Como ele se chama?
— Espera — me levanto num átimo, vou à copa e pego meu celular. Abro a galeria de fotos e mostro uma que tiramos no shopping, há dois dias. É nossa primeira foto como casal.
— Nossa. Como ele é bonito — minha mãe nem disfarça a admiração.
— O nome dele é Odin. A mãe era fã de mitologia nórdica, por isso deu esse nome a ele.
— Nunca ouvi falar desse nome. Mas quando se é bonito, qualquer nome cai bem. Você tem bom gosto, filha — ela aperta meu queixo.
Mordo o lábio inferior.
— Ele trabalha como modelo. Às vezes ajuda a mãe na produtora, quase não para em São Paulo, mas sempre que vem, a gente sai.
O balançar seguido da cabeça de minha mãe junto de um olhar mais atento à foto de Odin me causa um pouco de nervosismo.
— Ele é bem alto. Quantos anos tem?
Mordo o lábio inferior.
— Mãe, que importância tem a idade dele?
Um silêncio opressivo se estabelece entre nós.
— Ele é maior de idade? — mamãe insiste.
— Eu tenho dezesseis anos — replico.
— Não perguntei sua idade, perguntei a dele.
— Mãe…
— Sofia Christina!
Levo os dedos às têmporas, acuada.
— Ele tem dezenove.
Mamãe leva a mão à testa, a preocupação nítida em seu semblante.
— Mãe, que importância tem nossa diferença de idade? — volto a insistir antes que ela apresente um argumento visando desabonar minha relação com Odin.
— Você é uma adolescente e ele é adulto.
— E daí? Ele me respeita, me trata super bem e respeita meus limites.
— Eu sei muito bem o que rapazes de dezenove anos querem com meninas adolescentes que usam maiôs de dança.
— Não, você não sabe — bato com as mãos na mesa, incapaz de guardar minha indignação. — E eu não uso maiô, uso collant — me ergo emputecida da mesa, caminho os dois passos que a separam da pia.
Não demora cinco segundos para que eu me arrependa da minha reação, e deixando um suspiro fugir por entre meus lábios, ando até mamãe, e me acocorando de frente para ela, faço com que nossos olhares se encontrem.
— Eu não sou mais criança. A senhora sabe que um dia isso iria acontecer. Eu não escolhi gostar do Odin, nem ele escolheu gostar de mim. Aconteceu e pronto.
O rosto de Marina esboça a sombra de um sorriso triste, que me faz compreender em partes o porquê dela estar preocupada. Parte disso se deve, claro, ao fato de Cadu ser pai de um filho que está na barriga de uma garota não muito mais velha que eu – e isso fará com que ele tenha que arcar com responsabilidades que talvez ele não tenha maturidade pra assumir.
Além de eu ser menor de idade, minha mãe tem medo que eu não saiba impor limites a Odin. Mas de que adianta ter esses temores? Que sentido faz viver e não aproveitar o que a vida oferece?
Durante toda a minha vida, tudo foi contado, bem pesado e bem medido pra mim. Tive que renunciar a muita coisa que eu sonhava ter, em prol do meu sonho de um dia ser a melhor bailarina do mundo e ser famosa. Mas eu mudei, eu abri os olhos, e quero ter mais. Eu quero ir à festas, quero namorar, e o mínimo que desejo é que meus pais entendam que eu posso me responsabilizar pelas minhas escolhas.
Marina põe uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha, solta um suspiro. Seus lábios se comprimem numa linha fininha, mas o sorriso subsiste, o que me deixa menos nervosa.
— É muito difícil para uma mãe reconhecer que seus filhos cresceram — ela desabafa.
Concordo com um leve balançar de cabeça.
— Mas é uma etapa natural da vida — explico e ela anui em silêncio.
— Tem razão.
Ficamos nos olhando, permanecendo num silêncio que não chega a ser incômodo. Fico pensando que talvez ela queira dizer algo mais, porém não achando nada para dizer, ri. Imito sua atitude.
— Mas você, bem, pretinha? Saiu daqui como uma menina e voltou como uma moça cheia de atitude — ela balança minha mão com vigor.
— Fique em paz, mãe. Eu sou a mesma menina marrenta de sempre. A única diferença é que agora não sou mais solteira.
Penso que a pior parte passou, já que uma atmosfera divertida se estabelece entre nós duas. Minha mãe sabe que impedir que eu tenha relacionamentos está além de suas forças.
— Está bem. Se você está feliz, se você diz que esse rapaz é bom, então não vou me intrometer. Só não deixe que isso atrapalhe seus estudos — ela acarinha meu rosto com o dorso de seu indicador, suplicando com o olhar que eu entenda que consequências um namoro pode trazer para uma moça que faz balé.
— Você trabalhou tanto para chegar até onde chegou, filha. Saiba o que está fazendo, está bem? Não jogue tudo isso fora — ela aperta minha mão.
Me recolho num silêncio passivo. Insinuo um sorriso grave, concordando com um meneio de cabeça.
— Acha que o papai pode querer me impedir de namorar com o Odin? — de repente, fico angustiada com a possibilidade de enfrentar outra batalha.
Minha mãe mexe os ombros para cima e para baixo.
— Só contando pra ele. Mas esconder isso está fora de questão. Nem sei como ele ainda nem viu essa foto de vocês.
— Bem que você podia me ajudar a amansar a fera. Quem sabe, preparar o caminho…
Minha mãe me interrompe com uma risada.
— Vai dar certo — ela é firme em sua declaração, e por algum motivo, acredito em suas palavras.
…
Eu não me lembrava de como a subida para a casa de Gigi era tão longa. Por causa das aulas de chão, sinto um pouco de dor nas panturrilhas, embora esteja há um dia sem pisar num estúdio de dança. Me aproximo da casa luxuosa, cercada por um muro de mais de três metros de altura, toco a campainha do interfone.
A loura sai pela porta de pedestres, a fecha atrás de si, e ao me ver, vem correndo até mim, me apertando num abraço acolhedor.
— Que saudade, amiga — ela me balança de um lado para o outro.
— Eu também senti muita saudade de você — retribuo ao carinho, acarinhando o rosto dela.
A primeira coisa que noto de diferente em Gigi é seu cabelo. Ela o cortou, deixando-o bem curtinho, quase indie, com uma franja caída nos olhos. Quando vi no Instagram, quase não acreditei, pois ela sempre foi apegada ao cabelo comprido.
A segunda: ela está mais magra. Penso que está levando a sério ao que dona Fernanda pediu – de se dedicar e trabalhar mais a fim de obter melhores resultados nos festivais da Pulse.
Uma coisa é certa: ela está mais linda, e parece bem mais ousada com o novo visual. A blusa de moletom cinza, a calça legging preta e o par de coturnos pretos deixaram-na empoderada.
— Quando você disse que vinha, eu não acreditei. Aliás, nem tô acreditando — a loura põe as palmas das mãos unidas em frente aos lábios. — Você tá muito bem, parece que cresceu uns dois centímetros.
A observação de Gigi faz um sorriso aparecer em meu rosto.
— Parece que faz tanto tempo, né? Lembro daquela tarde em que nós duas subimos de bicicleta até a Vila Inglesa — meus olhos se angulam nos da minha amiga, uma emoção nostálgica se apossando de mim. — Me lembro de cada palavra que a gente falou. Você me desejou boa sorte, disse que eu ficaria bem. Nunca vou me esquecer da sensação de paz que você me passou.
Gigi me segura abruptamente pelos ombros.
— Para. Não vamos lembrar disso. O importante é que você veio e vamos ter uma semana para colocarmos a fofoca em dia.
Pra mim está ótimo.
O portão de madeira começa a subir e o carro prata do pai de Gigi sai.
— Vamos, meninas? — ele sorri. Ao contrário de Hilda, que é uma mulher esnobe, Emanuel é gentil com as pessoas e nunca faz julgamentos.
Quando eu saia em competições com minha antiga escola de balé, Emanuel levava de bom grado algumas bailarinas que ficavam sem lugar nas vans. Obviamente, Hilda se revoltava, pois achava fora dos padrões o dono de uma rede de pousadas bancar um motorista de kombi de passageiros, transportando bailarinas de uma cidade pra outra.
Nós duas nos acomodamos no banco traseiro e afivelamos os cintos em volta de nossos corpos. O pai de Gigi nos leva à Vila Capivari, nos deixando no comecinho da Djalma Forjaz.
— Me ligue quando for para eu buscar vocês — o pai da minha amiga recomenda.
— Pode deixar. Tchau, pai — Gigi acena com os dedos.
Assim que desço do carro, lanço um olhar panorâmico pela rua, respirando o ar mais saudável do Brasil e me permitindo um sorriso.
Tudo continua igual. Nada mudou. A estação Emílio Ribas, de onde saem os trens vermelho-amarelo. As árvores de araucárias, símbolos de Campos do Jordão. Fecho os olhos e parece que estou sentindo o cheiro delicioso de pinhão cozido.
Não há tantas pessoas nas ruas, talvez por ser começo de semana e não estarmos mais em alta temporada. Não importa. Minha cidade é maravilhosa nas quatro estações do ano, eu amo ser jordanense e estou feliz por estar de volta.
— Bombom?
Dou um sorriso sem mostrar os dentes ao me voltar para minha amiga. Seguro suas mãos.
— Como senti falta de tudo isso — abro meu coração.
Gigi acaricia meu rosto com o dorso de seu indicador, dando um sorriso cheio de ternura. Por estar agora de cabelo curto, igual ao de um garoto, seu rosto de princesa ganhou mais expressividade.
— E aí, o que a gente faz primeiro? — ela pergunta, deixando em aberto que eu decida por nós.
Dou de ombros, estalando os lábios.
— Não sei. Acho que só caminhar um pouco, ver gente bonita. Os artistas de rua. O Jack Sparrow ainda tá lá?
A loura ri, balançando a cabeça de um jeito cheio de sensualidade para tirar a franja da frente dos olhos.
— Está sim. Vamos?
— Espere! Tem uma coisa que eu quero. O pastelão do Maluf.
Gigi ri mais alto. Ela não lembra nem de longe a garota retraída e insegura de dois meses atrás, mas estou gostando dessa sua versão mais atrevida.
— Ok. Pastelão do Maluf — a loura de franja revira os olhos. — Vamos? — ela me estende a mão.
Entrelaço meus dedos aos dela. Era uma estratégia que a gente usava para que nenhum macho cuzão se aproximasse de nós. Mas eram tempos em que eu me sentia insegura com rapazes e não tinha experiência de beijo e sexo.
Penso que, assim como eu, Gigi não é a mesma garota de antes.
3k de palavras
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